terça-feira, 25 de maio de 2021

Bye, Robert... (see you, pal!) - a triste história do meu amigo António Joaquim Barradas

 
Assim te guardarei sempre...

Há textos que vêm ter connosco, e por mais que pensemos que não os queremos fazer, ou que nunca tenhamos equacionado que poderiam vir a acontecer… a verdade é que saem... acho porque têm mesmo de ganhar forma.

 

Lembro-me do Francês desde sempre. Um bom par de anos mais velho que eu, a sua cara sempre foi por mim associada a Castelo de Vide, que era a terra onde vivia, e para onde regressou depois de ter estado emigrado em França, com os pais. Associo-o muito àquela fase em que a vila viveu um boom de drogas duras, e foi muito martirizada pelo consumo desenfreado de estupefacientes, que levou duas ou três figuras que ficaram míticas pela tragédia, como o Reinaldo, o Boto e mais tarde, o João Saleiro, pouco mais velho que eu.

 

Rezam as lendas que regressou na frente dos velhos, com uma massas, fruto do trabalho destes, mas que muitas delas arderam na voragem do consumo, que o levou.

 

Perdi-lhe o rasto durante décadas e há um par de anos caiu por aqui, quando passou a viver numa casa dos pais ali para o Bolgão, à saída de Santo António, quando se vai para a Portagem. Começou a frequentar a minha boutique de eleição, o meu “Cheers, aquele bar”, a famosa pastelaria Caldeira, sede das babosas, e começámos a interagir os dois.

 

Destacava-se da vulgaridade porque se via que era um indivíduo vivido, rodado, com vistas largas. Na verdade, o francês sabia fazer um pouco de tudo, porque ele já tinha feito de tudo na vida: já tinha servido à mesa nos tempos áureos do Inatel da vila e no Daniel, já tinha sido caixeiro-viajante da Yoplait, onde tinha feito grandes brilharetes e vendas que me ia contando nas nossas muitas conversas de fim de tarde, no bar do Choca, quando ambos largávamos os serviços, e passávamos um bocadinho em tertúlia, antes de ir para casa. Gabava-se muitas vezes de quando tinha vendido livros aos professores, e de como tinha adorado essa fase: desde a forma como dispunha os manuais, a análise que ia fazendo das movimentações destes perante o espólio, como escolhia a altura certa para dar a “bicada” e a mim, divertia-me imenso, o poder aprender com aquelas vivências. Tantas tardes em que antes de nos encontrarmos, passava no Pingo Doce e comprava meio quilinho delas (gambas cozidas, maravilhosas, a 5 paus e pouco) que comíamos com grande deleite. Eu queria pagar-lhas, e muitas vezes lhe dava dinheiro de adianto porque ele nunca olhava a isso.

 

Eu gostava muito dele porque se via que era um gajo rodado, vivido e dava vontade de estar ao pé do Robert de Niro, com quem muita gente a achava parecido, E era, de facto. O fascínio passou para admiração quando me contou como se tinha deixado envolver pelas drogas duras, e se tinha conseguido livrar delas… sozinho!!! recorrendo unicamente a comprimidos… para o aborto!!! cujo consumo o levou a estar noites noites acordado, sem conseguir dormir. O Tonhe Jakim, le franciú, como eu o tratava e ainda tenho, e terei sempre, o seu número de telemóvel gravado, era gajo teso!

 

Contou-me montes de histórias loucas de consumo em Espanha, do que tinha feito, como, e como sempre se tinha serpenteado por entre as guardas daqui para não ser apanhado. As suas histórias da droga acabavam sempre da mesma forma: a lamentar-se de todo o mal que fez à sua mulher, uma jovem que nunca conheci, mas sempre descreveu como alguém superior, que tudo suportou até… não ter dado mais. Professora de música, perdeu para as drogas e também o amor que tinha a quem com quem queria ter contruído uma vida a dois.

 

"Mas tu mais alguma vez tentaste saber dela? Falar com ela? Pedir-lhe desculpa?!?!? Eu sei que ela agora já está novamente casada, e refez a vida, mas se te conseguisses reconciliar com o passado, isso faria toda a diferença, porque te tranquilizaria, certamente.”

Nunca consegui. Era o medo a falar mais alto.

 

O António era um gajo do caraças a trabalhar, hã? Grande artista com motosserras, e outros aparelhos de corte, foi conseguindo ter sempre mercado de trabalho, o que lhe garantia uma boa almofada económica. Na verdade, ele sabia tomar conta de um jardim (e era isso que fazia ao Dr. João Pires, que o tratava como família, e a quem ele adorava), fazer de pedreiro, ele sabia fazer um pouco de tudo, e fosse na lenha, na apanha da azeitona, ou noutra cena qualquer que desse guito, ele não tinha medo e estava lá! Para culminar, há tempos, a câmara abriu concurso para conseguir pessoal para as juntas, ele pediu-me ajuda e lá conseguimos fazer um currículo que enaltecesse todas as suas qualidades, e acabou por ficar, para grande alegria, não só dele, mas minha também.

 

Nessa altura, dizia-lhe eu em piada, “só te falta… uma Mulher que te oriente”, porque todos precisamos de uma!, e até lhe ia dando uma ou outra pista de companheiras interessantes, analisadas as questões desse prisma.

Que não! Que estava muito bem como estava, com as duas cadelinhas, a Violeta, que ele amava de paixão, e com a qual conduzia na sua Vespa, com ela montada no banco, numa imagem de grande estilo!; e a mais nova, seria (Panda?), que tratava como ninguém, e a quem nada faltava.

 

Sempre risonho e bem disposto, era um gajo que tinha apresentação e andava sempre barbeado e arranjado, com roupa que dantes era sempre de marca, como ele dizia, até que… se deixou enrolar pelo álcool. 

O álcool, a ele, como a todos nós, quando em excesso, só nos apequena, diminui, faz regredir, ser menor. O António, deixou-se levar, levar, foi caindo numa espiral de destruição, e mergulhou de cabeça no olho do furacão da desgraça. Foi-se desleixando ao ponto de ter perdido o norte. As conversas deixaram de ser interessantes e começaram a ser repetitivas, entediantes, a barba foi ficando por fazer, a roupa seria muitas vezes aquela com que dormia, e o asseio foi-se perdendo. As pessoas foram-se afastando mais dele, e eu, para o castigar, e lhe mostrar que no meu entender, aquele caminho também não era o certo, também deixei de lhe abrir o flanco. Muito me doeu, mas tinha de ser, para um bem maior.

 

Quando estávamos mais juntos, no passado, e havia uma comunicação de amizade sincera, que era mútua e profunda, e ele sempre me agradeceu muito o apoio que lhe dei para conseguir o seu emprego, chegámos a almoçar semanalmente n’“O Castelo”, do meu primo Jorge, com pagantes de “uma vez tu, outra eu”. Num dia destes, quando já estava em órbita (bagaço ao pequeno almoço não augura um bom dia, a ninguém), ligou-me para me convidar para ir beber café com ele, e eu, que tinha almoçado no serviço, agradeci mas recusei porque já tinha tomado, mas aproveitei a ocasião para lhe fazer um último pedido para que atinasse.

“Por favor, António! Eu recordo-me quando foi do confinamento, e dos bares estarem fechados, de tu me teres confiado que te sentias fantástico por não beberes! Eu recordo-me da tua cara de alegria por esses dias, da tua sensação, do teu alívio, até pelo que poupavas por não beberes. ÓPÁ, EU PEÇO-TE POR FAVOR: NÃO BEBAS!!! NÃO BEBAS!!! Vamos ver de um tratamento qualquer, vamos aos alcoólicos anónimos, vamos à merda, mas a um lado qualquer que te possam ajudar!!! Beber é um prazer da vida quando há regra, porque o álcool é uma víbora!”

 

A partir daí, o álcool que ia tendo sempre dentro dele, e o seu feitio muito pessoal e particular, que tinha a ver com o passado elitista dos dinheiros de França, dos consumos exagerados, de alguma fobia da perseguição; encostaram-me à boxe e eu passei de “Pedro Amigo”, para “Pedro Pressão”, e deixei de contar.

 

Quando decidi triocar o meu Caguincha, e me ofereceram um valor ridículo e uma pechincha por ele, o Francês que se mostrou sempre interessado no bólide, chegou-se à frente. Eu disse-lhe: “meu amigo, é assim: o que eu peço são os 100€ que a destruição me dá por ele, mais 200€ que investi para passar na Inspeção.” Ele, muito aprumadinho, no dia a seguir foi ter comigo à Conservatória, bateu a nota e ficou selado! Isto era como ele era! Sem espinhas!

 

Há dias, dizia-me ele que cansado, extremamente cansado (o que seria certamente natural porque dormia pouco, e trabalhava muito), mas se calhar já pouco sóbrio, foi contra um muro perto da sua casa e deixou-o ali com a frontaria toda escavacada, onde está ainda hoje, o que tem causado grande celeuma às pessoas que me conheciam no carro, e comentam; mas o Sabi espetou-se?!?!?!

 

O António não teve por aqui muitos amigos. Teve dois ou três bons amigos, que se preocuparam com ele e o queriam bem, mas sempre teve muitos anticorpos, muita gente que nunca o quis ver, porque ele também não era o mais fácil e dócil. Tinha a sua cena…

 

Há uns 5 dias, uma amiga mútua, a Teresa, companheira do saudoso Peter, que nos deixou também derreado ao álcool, ligou-me e estivemos durante muito tempo ao telefone a falar sobre o António. Perguntava ela, porque sabia do amigos que éramos, em conforme achava o estado dele. Eu contei-lhe tudo, agradeci-lhe imenso a chamada, e ofereci-me para ajudar no que fosse necessário, embora achasse que nessa conversa, talvez fosse preferível ir ela e a Tânia, outra amiga de sempre, para ambas, que ele muito considerava, tentarem usar o seu charme feminino e dar-lhe a volta.

Nessa tarde, fui ao Chocolate desenjoar o estudo tributário que estava a fazer, e soube que alguém tinha dado com o António mal em casa, em coma alcoólico, tinham chamado o INEM, e o tinham levado para o Hospital.

 

“OH! Porra! Tenho de lhe ligar, pensei! Amanhã vou ligar-lhe!”

 

Vim para casa, voltei aos estudos, e mais tarde nessa mesma manhã, a Teresa com quem tinha estado a falar no dia antes para se tentar encontrar uma solução, mandou-me uma mensagem pelo Whatsapp, que eu nem quero voltar a olhar para ela, mas falava qualquer coisa em lamentar por já irmos tarde.

 

MAS TARDE COMO, POR DEUS?!?!?!?!?

 

Infelizmente certo que estas notícias tão tristes, quando saem… têm sempre razão de ser, fiz dois ou três telefonemas e… sempre era verdade: o Francês fugiu do hospital, correu para uma árvore que sabia que seria suficientemente forte, e pendurou de vez todos os seus problemas.

 

A dor que me atravessa o coração é lancinante, dura, fria, e jamais desaparecerá. Eu quando sou Amigo, sou Amigo mesmo, não é apenas para aparecer a sorrir ao lado no facebook. Eu gosto de olhar para mim como sendo um daqueles amigos que deixam tudo para ir atrás do que precisam, mesmo que não precise de nada que nós possamos fazer, como aqueles que eu sei, foram atrás de mim para Lisboa, naquela madrugada de 30 de Julho de 2011, em que tive o acidente e ia morrendo.

 

Recebi esta notícia tão dura na quinta-feira, em véspera de ir para Lisboa para fazer um exame da Autoridade Tributária a que pertenço, e fiquei esbanzalhado, atónito, derrotado, sem chão! Nunca esperei! Nunca me passou sequer pela cabeça, que o desespero o pudesse levar a tal, sobretudo depois de saber do inferno de que ele já se tinha visto livre antes.

 

Completamente em baixo... jamais o esquecerei. O meu amigo.

 

O António era extremamente profissional e como tinha nível, atraia pessoas com categoria como a do Dr. João Pires, que o aperfilhou como capataz da sua finca; a Teresa do Peter; a Tania Martins do Trainspot que ele sempre elogiava porque dizia que trabalhava mais e melhor que dois homens, ou o Eng. Ricardo Sá, que comprou a sua casa na Água da Cuba, e de quem passei a ser amigo, também. Pessoas normais, mas absolutamente genuínas e boas, francamente boas.

 

Hoje, alguns juntámo-nos à conversa no final do funeral, ao qual eu já não esperava ter podido ir (porque me ausentei e soube de forma que me deixa a pensar, minutos antes de se ter iniciado), e todos concordámos que foi uma profunda depressão, potenciada com o inflamável combustível do álcool, que levou a este triste fim.

A minha dor, enquanto Amigo que falhou, não terá fim, e durará sempre tanto quanto eu. Não fui suficiente, não fui capaz, falhei!

 

Se eu ao menos lhe pudesse ter dito… que ao fechar o livro da sua vida desta forma abrupta… rasgando-lhe assim as últimas páginas que poderiam ser douradas, rendeu-se, foi fraco em toda a bravura que se necessita para se cometer um ato destes, e entregou-se… ao lado de quem o deveria ter ajudado e nunca lhe deu a mão… que poderia ter feito toda a diferença.

 

Ele… que me confessou tantas vezes, a revolta que sentiu por ter visto que a mãe não teria um funeral católico, se soubesse que as suas exéquias foram expressas com português do Brasil…

 

Mas na quarta-feira, meu irmão, a missa do nosso Amigo Padre Marcelino, com quem estivemos tantas vezes em tertúlia no final da eucaristia, vai pela tua intenção, te garanto.

 

Jamais esta data será esquecida no meu calendário.

 

Até sempre, Robert! See you, pal!