domingo, 31 de outubro de 2021

Shangri La - O meu horizonte longínquo sobre carris (Parte VII - As casas (de todos nós))

As "Manas Sobreiro" que para sempre ficarão assim, gravadas na minha cabeça (e coração), captadas pela objetiva do responsável por esta revista cultural, Prof. Dr. Jorge Oliveira


A Ti Aurora

A (taberna da) Ti Aurora era um espaço muito pequenino no largo da igreja, bem ao lado da casa do Sr. Murta, uma outra figura muito popular da terra. Creio que tinha o marido por lá a acompanhá-la, mas a memória é muito vaga, o que fazia dela uma daquelas mulheres de negócios sem medos, que era capaz de dominar o seu ambiente.

Recordo-me que naquela altura, como todos os espaços comerciais da terra, vivia muito à custa da clientela que ali chegava através dos carris, e com isto incluía ferroviários, maquinistas, trabalhadores comuns da CP, e profissionais de outras atividades ligadas à linha do comboio.

Guardo uma imagem do Sr. Valentim, funcionário da alfândega, e pai do meu querido amigo Manuel Ventura, sentado junto a uma mesa redonda, a fumar um cigarro de enrolar e a beber o seu tintinho.

A melhor história que recordo daquela casa, tem a ver com a minha tendência em andar sempre com os miúdos mais velhos. Naquela altura, eu queria era ser grande, e se eles já o eram, nada melhor que com eles acompanhar, para ver se lhe conseguia pegar o jeito, e crescer por osmose.

Por querer sempre andar atrás, quase sempre sobrava para mim, o que fazia com que fosse alvo de chacota, e bulllying, como se chama agora, mas eu não me chateava nada, nem chateio hoje. A propósito, já aqui comentei que a ligação da família do meu pai a Valência de Alcântara era muito forte, e a visita aquela localidade estremenha no sábado de tarde, era passeio frequente. Pois se nunca omiti que sempre fui muito mimado pelas minhas tias, também é verdade que gostavam muito de me comprar em Valência, o encanto dos petizes daquela altura, os berlindes, sobretudo os lindíssimos “olhos de boi”, brancos, com linhas coloridas à volta.

A festa que era quando o Pedrocas lá aparecia com um saquinho novo, recebido da nova visita ao outro lado, com tantos, todos tão luzidios, dentro do saquinho de corda verde, para… os perder num ápice, mais depressa do que o diabo esfregava o olho! Assim que lhes dava o cheiro que eu tinha a nova mercadoria, todas as portas que estavam fechadas, se escaqueiravam de imediato para… se voltarem a fechar assim que se procedia à limpeza. ~

Bastava um “Jogo da Roda” (em que cada jogador poderia ficar com os berlindes estacionados dentro do círculo, que o seu conseguisse retirar de lá, apenas embatendo contra eles de uma assentada só), para a alegria se ir desvanecendo em aflição e tristeza, à medida que as esferas negras deles (com utilização proibida para os mais novos e… “se não queres assim, não jogas!”), entravam por aquele círculo adentro como se fossem bulldozers do Bolsonaro a devastarem a preciosa floresta Amazónica. Porca miséria! Da alegria da chegada, à desolação da partida, minutos depois, era sempre um ápice.

Completamente trucidado pela minha ineficiência, regressava logo após a casa mesmo à espera de novo ralhete mais que merecido mas… eis senão quando de lá vinha era um: “ai filho, deixa lá, não chores, não te aborreças… que a gente compra-te uns novos assim que lá voltarmos”, que era já na semana seguinte, se não houvesse nada em contrário. Pois isto me enchia tanto de consolo, quanto me impedia de crescer, verdadeiramente.

E a Dona Aurora, de quem tenho apenas uma vaga imagem da figura, mas já não do rosto, também foi testemunha destas sevícias a que era submetido. Um dia mandaram-me comprar “baba de cegonha em pó”, entre risinhos de chacota que eu, do alto dos meus 6 ou 7, ou menos, não percebi.

- Dona Aurora, eu queria baba de cegonha em pó, se faz favor (sem saber muito bem se sequer levava dinheiro para isso. Talvez me fiasse…)

- Ai filho… vai-te embora que já te enganaram outra vez… Não andes com eles! Anda com os da tua idade…

- Ora!!!!

 

b)    Clube

O Clube era, de longe, a instituição de recreio com mais peso naquela aldeia, segundo a minha visão. Não sei bem qual a sua origem, se tinha ou não, órgãos sociais; se tinha associados e qual era a composição da direção, mas como disse no início, isso tampouco interessa agora. O que sim interessa é que a sua localização era central na terra, bem por cima da linha do comboio, e o edifício era magnífico, sendo atualmente particular, dentro do qual se (con)vivia muito.

Quando se entrava, subiam-se umas escadinhas muito íngremes, e existiam diversas salas onde se poderia, por exemplo, jogar às cartas e outros jogos de mesa como o dominó, ver televisão (num tempo em que ainda muito poucos dispunham de uma própria, em casa) e… conviver, com uma vista lindíssima sobre a terra (com os comboios a passarem logo ali por baixo), o panorama, Santo António, um pouco acima; e Marvão, numa varanda que se debruçava sobre a linha. 

 

c)    Cantina do “Serras” da Estação

O Sr. Serras era um homem muito grande, encorpado, calvo, de barba branca, a quem a terra sempre ficou muito a dever, embora nunca lho tenha agradecido em vida, lamento-o; por ter sido uma das figuras principais na criação da associação “A Anta”, que ainda hoje presta serviços sociais à terceira idade e necessitados; é um dos principais empregadores, e motivo pelos quais a terra ainda não morreu. O Sr. Serras era casado com a Dona Zita, que trabalhava na Segurança Social ou noutro ministério público em Portalegre. Eram retornados de África, pessoas com uma visão abrangente e avançada para a época.

Na altura exploravam o espaço onde hoje está estabelecido o Train Spot, num edifício lindíssimo mesmo junto à estação, e era na pequena cantina que ladeava esta que acontecia muito do convívio entre os funcionários da estação, os da C. P., e os clientes da linha que por ali passavam nas ligações internacionais.

Às 3 horas da tarde, passava o T.E.R. e depois mais tarde do TALGO. Recordo-me daquela estação mais parecer um aeroporto em hora de ponta de chegadas, tal era a quantidade e qualidade de gentes, cores, roupas, linguagens e tamanhos, que deixavam qualquer um boquiaberto, ainda muito mais uma criança de menos de 10 anos, que por ali circulava ingenuamente.

O “Serras” era o sítio para se ler o jornal do dia, se beber um café e um bagacinho, se fazerem as palavras cruzadas ou jogar uma cartada. A cantina do “Serras” poderia ser um ponto de passagem à hora de almoço, ou um bom entretém para os homens, no final da tarde.

 

d)    Sr. João Viegas

Este era um espaço que também combinava a habitual disposição estrutural de então, que ainda hoje é presente nas grandes superfícies: um espaço para as senhoras fazerem compras para casa, ladeado por um espaço estilo taberna, para os machos conviverem, entretanto. Situada a escassos metros abaixo da linha do caminho-de-ferro, tinha um espaço central na aldeia e era por isso beneficiado em relação à concorrência.

O Sr. João Viegas era um homem baixinho, muito sério e nada de copos, que geria o espaço com muita sensatez e responsabilidade. A família ficaria muito marcada por um trágico acidente de viação, no qual faleceu a mãe da filha Nélita, uma jovem da terra que trabalhava nos telefones do escritório do Sr. Carita.

 

e)    Sr. Joaquim Ventura

Este espaço, na minha memória, era assim uma cena do tipo armazéns “Braz & Braz”, em Lisboa. Uma casa enorme, com um balcão comprido longitudinal que aos meus olhos de criança, teria dezenas de metros. Ali se vendia… de tudo, ao que me lembra. O Sr. Joaquim Ventura, que sempre me batizou por “Pedro, Penedo, da Rocha, Calhau, olho de vidro, cara de mau”, cognome que eu achava piada, mas altamente injusto, porque nunca me achei ser daquela forma, ruim. Parece que tenho na memória que caia sempre com um rebuçadinho, ou por aí. Acontece que o Sr. Joaquim Ventura era pai da Dona Mimi, que casou com o primo Manuel, filho do Sr. Carita, que era o padrinho do meu pai, cunhado da avó paterna, portanto. Quero eu dizer com isto tudo que o meu pai e o seu genro eram primos-irmãos, e eu sempre senti que o carinho ali era diferenciado. Gostava muito. Recordo-me que tinha óculos?

 

f)     Sr. António do carro de praça

O Sr. António, homem de média estatura, não muito alto, mas muito robusto, é provavelmente dono dos “apertos de mão” mais convincentes que me lembro. Sendo uma figura que conheço de toda a vida, claro que fico sempre feliz de o rever, mas… a pensar duas vezes depois de lhe ter esticado a mão. Já tenho reparado nos rostos, dele e dos outros intervenientes no mesmo ato, e… pelo ar, que me parece que a firmeza se repete, e não se verifica apenas comigo.

Recordo-me desde sempre dele como dono da mercearia cujo alvará viria depois a ser comprado pelas minhas tias, que sempre conciliou com o serviço de táxi. É bom de recordar que naquela altura nem toda a gente tinha carro (bem me recordo quando os meus pais compraram o primeiro Renault 5 branco), e aquele tipo de serviço era muito requisitado, então.

Quando trespassaram o espaço, mudaram-se para a parte de baixo da linha, e abriram um café com serviço de refeições, num prédio que construíram.

 

g)    Casa Nicau

Era incrível, e muito sintomático da vida que fervilhava naquela pequena aldeia, que se agigantava sempre que passava um comboio (de mercadorias, e sobretudo, internacional); a quantidade de espaços comerciais que nela existia. De todos eles, embora não fosse o que tivesse as melhores condições (a azinhaga ao lado, era o W. C., penso eu de que; porque nunca me lembro de ter puxado o autoclismo numa lá dentro), esta casa era, muito pelo carisma do proprietário, o Sr. Joaquim Nicau, aquela que para mim, mais se destacava. Condutor da camioneta da carreira da Rodoviária Nacional, comprou o alvará ao Sr. Batista, que nunca me recordo já de ver aberto, porque não é do meu tempo.

Tendo sido sempre colega de escola do seu filho mais novo, acompanhei sempre aquela casa que, enquanto o pai trabalhava fora, era assegurada pela esposa, a D. Teresa, que assumia a mercearia e a taberna, também. Sendo muito popular entre os jovens, e os homens por ter tido sempre as mais populares máquinas de arcada, flippers e matraquilhos; a casa vivia sobretudo do carisma do progenitor, que muito pelo trato interpessoal que tinha devido à sua atividade profissional (interagia diariamente com centenas de pessoas); e do toque para a cozinha da dona da casa.

O “estimado amigo” que era a forma como tratava os clientes, e se lhe colou como alcunha para sempre; era um verdadeiro barman de 1ª linha de aldeia, que sobre tudo sabia falar, opinar, não deixar ninguém indiferente. Sportinguista dos 7 viol(ai!) costados, pegou a devoção ao filho mais novo, e transformou aquela casa num núcleo daquela clube na aldeia. Bem-disposto, bem falante, e uma figura perante a qual ninguém poderia ficar indiferente, sempre viveu com esforço, devoção e glória as suas paixões sportinguistas e socialistas, o único campo em que o vermelho entrava na sua vida.

 

h)    Pastelaria “O Leque”

Foi fundada numa casa de raíz, construída nos anos 80 pelo Sr. João da Cunha Felino, antigo guarda-fiscal, um beirão natural de Monsanto, de extrema educação e cortesia. Extremamente carinhoso e afável, este Senhor, casado com uma outra figura da terra, a D.ª Conceição, funcionária de apoio das atividades na escola da terra, filha do antigo proprietário da casa onde foi fundada a Casa Nicau; idealizou criar ali mais um espaço para se poder ocupar nos tempos livres, talvez a pensar já na reforma.

“O Leque” tinha um caráter que a diferenciava de todos espaços concorrentes por ter um ar mais citadino, com um espaço específico pensado para as senhoras, com mesinhas redondas de camilas; uma zona para os homens mais parecido com um bar que com uma tasca, e um reservado idealizado para o petisco.

 

i)     Manas Sobreiro, da mercearia Sobreiro

Cartoon desenhado pelo pai na parede da taberna

 Por último, mas não em último, como dizem os ingleses; deixei a casa que me diz mais, pelas razões óbvias. Num momento muito particular da vida da nossa família, marcado pelo desaparecimento prematuro do meu tio Lázaro Duarte Gomes, com 60 anos de idade, apenas; as minhas tias, Maria que enviuvou, e Cremilde, solteira; que não detinham uma ocupação concreta, foram impulsionadas pelos meus pais, para comprarem em conjunto com eles, o alvará da loja no largo do fontanário, que pertencia ao Sr. António Sobreira, do carro de praça. Desta forma, estariam ocupadas mentalmente, durante toda a semana e, trabalhando, acabariam com dois problemas, numa solução só. A perspetiva económica nunca foi o intuito primordial, nem poderia ser numa terra, que embora tivesse uma população diária muito significativa à conta da atividade dos comboios, tinha tantas casas que… basicamente, vendiam o mesmo.

Haviam outros garantes diferenciadores, e o trato pessoal era sempre determinante para onde pendia o fiel da balança. “As manas”, até e sobretudo por não terem uma figura masculina por detrás do balcão, foram carinhosamente apadrinhadas pelos trabalhadores da C.P. (maquinistas, revisores, outros trabalhadores de manutenção das linhas) que por ali passavam diariamente a comer o farnel que as esposas lhe preparavam de casa. Por vezes, ali se faziam umas tortilhas de batata à espanhola (absolutamente divinais, como só a minha tia sabia fazer), e um ou outro petisco circunstancial, como um ovo estrelado à antiga em azeite, uma latinha de atum, sardinhas com tomate, ou anchovas, que eram comprados… na mercearia do lado, ou seja, ali.

O espaço ganhava outra vida quando o meu pai, saia do escritório, por volta da 18h, e reforçava o staff, dando um apoio suplementar na parte do bar. Nesse então, o público-alvo deixava de ser a dona de casa que vinha buscar o arroz para fazer com tomate, a fim de acompanhar os carapauzinhos fritos; para passar a ser o marido que vinha beber um tinto, conversar um bocado e, ouvir um ou outro fadinho, que a guitarra estava sempre detrás do balcão. Ficarão sempre na história, as tertúlias que muitas vezes se prolongavam noite dentro, e por vezes, até já à madrugada, quando os convivas, ou os motivos, eram especiais.

A morte prematura do meu pai, com 49 anos apenas, vítima de um enfarto do miocárdio, muito provocado pelos hábitos tabágicos absolutamente fora do normal (ninguém resiste a 2/3 maços diários por muito tempo), aliados a uma propensão genética a complicações cardíacas (a morte ainda mais prematura do irmão com apenas 14 anos, nas escadas do Sr. João Viegas; e a intervenção à sua irmã Irene numa das primeiras operações em Portugal de coração aberto, eram bem prova disso), ditou também o fim daquele espaço.



Com o passar dos anos, e o envelhecimento das minhas tias, ainda mais gritante no caso da Cremilde, que foi caindo gradualmente aos pés da demência, agora pomposamente chamada com o nome de um cidadão estrangeiro (Alzheimer); a loja foi definhando, até fechar. Deixaram de ser compradas as caixas de chocolatinhos da Regina, e de outros bombons bons; de chupas e toda a espécie de pastilhas elásticas com que se deliciavam as minhas filhas, e qualquer criança que por lá passasse, para se ir tornando cada vez mais um espaço comunitário, onde as vizinhas passavam a tomar um cafezinho, quase sempre de oferta, e para elas não estarem fechadas em casa. Voltando às origens, enfim.

Fazendo sempre um ponto de honra em nunca deixar de acompanhar a quem sempre me apoiou a mim, fiz questão de as ir visitando sempre que podia e confesso que me doía muito, quando dava com as duas a dormir, de cabeça deitada sobre a camila onde estava a braseira quentinha, enquanto o velhinho rádio baixinho debitava o terço na Renascença.

Nos últimos tempos já viviam as duas juntas na casa da minha tia Cremilde, de porta trancada por dentro, para evitar que esta acordasse a meio da noite, enquanto a Maria dormia, e saísse pelas ruas da Beirã, soluçando por vezes em choro compulsivo, por não conseguir encontrar aquilo que queria, mas nem sequer sabendo que jamais poderia reencontrar, porque o passado jamais volta assim.

Por saber, sofrer tanto devido a esta a sua ansiedade pela incapacidade de tomar conta da irmã; e sobretudo devido à degradação do seu estado de saúde (à causa de uma complicação de pele, na testa, que lhe obrigava a visitas frequentes ao IPO a Lisboa), muito a influenciei para que fossem para um quartinho particular para a Santa Casa de Marvão, que sabia que era esta a única possibilidade de as conseguir manter juntas. Depois da tranquilidade de o ter feito, descansei, por as saber sempre acompanhadas, bem alimentadas, bem higienizadas, com supervisão médica constante, em segurança.

Soube (muito tempo) depois pela minha vizinha da Beirã, esposa do Sr. Graça, que lá trabalhava (que pela terra ser tão pequena, éramos, somos e seremos, de cada vez que nos virmos, vizinhos), a primeira noite da minha tia Maria na Santa Casa foi de grande sobressalto, e pânico até, porque sentia que iria morrer.

- Ó Dona Maria!!! Que disparate tão grande, valha-me Deus! Então as senhoras estavam tão sozinhas e aqui estão tão acompanhadas, sempre com vigilantes a acompanharem o vosso descanso, sempre com uma equipa médica por perto, sempre com tanto gente para garantir o vosso bem-estar, e agora… diz-me que vai morrer? – disse a vizinha.

Não foi nessa noite, foi na noite a seguir. E não houve nada, nem ninguém que lhe valesse. Para mim, que a conhecia, estimava, prezava, amava como ninguém da mesma forma que eu (cada um, é como cada qual, e eu hei-de sempre ter a minha); morreu de desgosto. Morreu por depois de 86 anos de vida, não ter tido sítio algum para ficar nesse final da caminhada, senão aquela casa onde haverá sempre o estigma de serem despejados todos aqueles que não têm ninguém para lhes dar colo, quando eles deram tanto durante a vida.

Esta é uma dor que viverá sempre comigo.

Todos sabíamos que lutava há tantos anos com o problema cancerígeno, mas ainda hoje não sei bem o que se lhe sucedeu para se finar. Esfumou-se, e eu, que tinha ido a Algés para assistir ao Nos Alive com a minha Leonor, levei um choque tremendo, por ter sido inesperado, e sobretudo, por ter sido um interveniente crucial nesta situação. Sem remorsos, mas com algum, ou muito peso na consciência pelas circunstâncias, regressei praticamente sem dormir nessa noite deitada a altas horas, acordada em sobressalto pelo telemóvel, onde o choro lamurioso da filha me deu a notícia. Assisti à preparação do túmulo, numa das minhas duas campas de família no cemitério da Beirã, e vi a reordenação dos restos mortais dos que já lá estavam, para conseguir ser feita a deposição dos seus.

A Cremilde continua, graças a Deus, naquela casa onde seguramente nem sabe onde está, mas sei eu, que a visito com regularidade semanal, está como se estivesse num casulo, onde não lhe falta amor, compreensão, e até lhe é dada a comidinha toda triturada, porque até isso, até de mastigar se esqueceu já. Até que, como em todos nós, Deus queira.

domingo, 17 de outubro de 2021

Shangri LA… - O meu horizonte longínquo sobre carris (PT VI) - Coisas a que brincávamos (naquela Beirã idílica)...

Com os óculos de ler do meu pai... tinha cá uma graça...

Para além de todos os jogos possíveis e imaginários de crianças que viviam numa aldeia situada no interior, no campo, existiam alguns inventados por nós, com regras muito próprias, que a existirem noutros lados, teriam pouco, ou nada a ver:

a)    Jogar aos castelos

Consistia basicamente num versão do jogo da apanhada, mas com regras muito próprias. Teriam de existir duas equipas com um número de participantes discutível e variável (dos 4 aos 20) que teria de ser dividido pelas duas, de forma homogénea. Uma equipa ficava de guardiã do espaço a conquistar (o adro da igreja da Beirã), e a outra equipa teria de fugir pela aldeia. Quando a equipa fugitiva dobrava a curva da Rua Vivas (a da igreja), a equipa que defendia o castelo poderia disponibilizar os membros que entendesse para os ir apanhar. Geralmente ficavam apenas dois, mais que suficientes, a guardarem o castelo (não mais que dois metros de entrada) para apanharem algum que chegasse ao último reduto.

O ideal seria, para um elemento da equipa fugitiva que queria conquistar o castelo, fugir a todos os caçadores, conseguir aproximar-se do castelo, e entrar nele sem ser apanhado, ganhando-o. Ou então, do ponto de vista da equipa que defendia, seria encontrar os fugitivos, e apanhá-los, um a um. Este jogo poderia ser muito rápido, como durar noites inteiras sem nunca ter sido resolvido. Acredito que ainda haja muitos nesta fase… há alguns anos.

 

b)    (Ir ao) Tanque da Broca

Nos anos 80, a Broca era já uma exploração decrépita e tenho ideia que pouca ou nenhuma atividade mantinha regularmente. Por vezes via o então proprietário, o Sr. João Forte, figura caraterística ainda viva, de grandes barbas longas, sempre de gorro de malha, fizesse frio ou calor, com duas ou três vaquitas pela estrada acima, mas a propriedade original fora fundada pelo seu pai, que faleceu centenário, e nunca cheguei a conhecer sendo eu já grande. Tinha diversas construções, uma das quais, um aviário; outra, uma vacaria, mas o encanto dos petizes da altura era o tanque, um espaço não muito grande mas que tinha sempre água a correr, onde os animais iam beber água. Era adornado com ervas, musgo, um ou outro inseto que se movia à tona da água; e os pais, não viam com os melhores olhos a atividade balnear dos petizes por lá.

Lembro-me que de uma vez, das muito poucas que o meu pai me meteu a mão em cima, trazia as cuecas molhadas na mão quase à hora de jantar, quando fui inquirido do porquê daquele preparo (não cheguei a tempo de as meter logo no saco da roupa suja, atrás da porta da casa de banho), e não consegui mais que uma desculpa esfarrapada que me valeu um açoite, porque revelei o motivo proibido que originou aquela situação.

Ir ao tanque da Broca era o máximo! Era a nossa Portagem.

 

c)    Corridas (de equilíbrio) em cima da linha (do comboio)

Conseguir manter o equilíbrio enquanto se caminhava rápido sobre os carris, era um desafio simples e que poderia ser um bom entretém. Atendendo a que junto ao depósito da água, existem diversas linhas, principais e acessórias, para que ficassem estacionados algumas carruagens que transportavam carros e mercadorias, poderia ser bem divertido num período de férias de verão, quando muitas crianças chegadas de fora, vinham visitar os familiares.

 

d)    Ir aos pássaros

Este era um passatempo claramente para os indivíduos mais velhos, já proprietários de uma pressão de ar, ou com a possibilidade de terem acesso a uma de um pai, irmão, primo, tio e por aí fora. Consistia em descobrir uma árvore onde os pássaros, habitualmente pardais, pernoitassem, para depois disparar sobre eles enquanto dormiam com recurso a uma lâmpada forte para os focar. Não só nunca gostei de pássaros fritos (não têm chicha! Aquilo é só ossos!), como sempre me pareceu da maior cobardia tal conceito, de matar enquanto dormem! Deus m’a livre! O meu coraçãozito de criança boa nunca me permitiu achar piada a tal entretém, e sempre me pareceu mais um exercício de cobardia, de luta desigual, que outra coisa qualquer.

Havia também a variável de “Ir às rãs”, mas também nunca gostei das suas patas fritas, como também sempre achei completamente absurdo andar aos tiros de pressão de ar aos animais. Sempre fui menina, aqui, ostracizado pelos demais machos que se queriam fazer grandes.


  Na minha festa do 3º aniversário, 1976, numa autêntica foto de geração, com (da esq. para dir., e de cima para baixo): Zé Luís Murta, “Bela” Carita, ladeados por uns olhos que não consigo identificar; a vizinha Paula, rindo, e outro rosto irreconhecível ao lado. Ao centro, os gémeos “Quim” e “Xana” Carita, com Rui da Paz no meio de ambos. Depois “Zé Fernando”, muito sério, e “Zé Manuel Pop” Dias. 

  Em baixo, Filipe Maridalho, rindo às gargalhadas; Vítor Felino, eu, a minha vizinha de Lisboa de quem gostava muito, muito (a São?), que nunca mais vi. 

 Ao lado temos outro roto que não consigo identificar, e claro que o Tó Manel Mimoso, com um sorriso único, presidente daqueila freguesia até agora.


e)    Polícias e ladrões / índio e Cowboys / Detetives e Espiões

Creio que faz parte do imaginário infantil desde sempre brincar aos bons e aos maus, no seguimento dessa luta ancestral entre o bem e o mal, seja no campo, ou na cidade. Qualquer criança da Beirã nos 70 brincava assim, como certamente se teria brincado desta forma nos anos 60, e se brincou nos 80. Não sendo, pois, um exclusivo da infância rural, e certamente também teria entretido muitos petizes pelas urbes desse país fora, o que eu sim posso garantir é que aqui assumia contornos verdadeiramente hilariantes Agora que penso nisso, recordo que a discussão “estás morto ou não” mantida entre dois contrários situados em cabeços contíguos, era coisa para demorar… muito tempo… e quem ganhava sempre era… o mais velho (claro!)

Diversos elementos, e equipamentos poderiam ser adicionados para adensar a trama, mas uma nova arma comprada algures, talvez em Valência de Alcântara de onde vinham muitas e frescas novidades (não se esqueçam que em Portalegre ainda não existiam grandes superfícies comerciais, e era tudo caríssimo), ou um recém-construído (um atira-chinas, por exemplo, que consistia num pau comprido aí com um meio metro, que levava um elástico dobrado pregado numa das extremidades, para poder projetar uma carica (china) espalmada que segurava numa mola de roupa pregada na outra ponta) seriam fabulosos para adensarem o mistério.

 

f)     Jogar ao alho

O “Lá vai alho” era um jogo dos antigos populares que foi muito bem integrado pela nova geração porque o tradicional, que consistia numa equipa de dimensão variável dependente da composição da outra, que saltava para as cavalitas da que por sorte ficava de cabeça baixa a suportar os colegas, a “levar com o alho”, portanto; foi adaptado numa versão hard em que o pessoal se mandava “à maluca”, e avacalhava a situação. Aí, dava diversão. E mazelas! Mesmo.

A versão do lenço foi abandonada porque precisamente lhe faltava esta componente radical.

 

g)    Visita aos vagões estacionados ao lado da linha

Os vagões estacionados ao lado da linha, que serviam de camarata para os funcionários que estavam longe de casa e ali pernoitavam, consistiam um festim para a criançada ávida de novos conhecimentos. Ali tínhamos muitas vezes o primeiro contato com revistas para adultos que por lá eram abandonadas, visivelmente utilizadas, de páginas coladas, e ficávamos deslumbrados com esta educação sexual alternativa hardcore. É bom que se note que ainda não estávamos nos 80, o Estado Novo só tinha terminado há um par de anos, e tudo era muito longínquo.

“Gina”, “Tânia”, “Weekend Sex” passaram a integrar o nosso vocabulário… e as nossas prateleiras escondidas em casa.

 

h)    Ir aos tortulhos

Sempre que as condições meteorológicas o permitiam, e o sol rasgava as nuvens depois de temporadas de chuva, os fungos por todos mais desejados conhecidos como tortulhos, brotavam da terra em lugares específicos, cujas condições morfológicas, de luz e exposição, os tornavam num el dorado a perseguir.

Havendo alguns destes sítios perfeitamente identificados, eram supervisionados por espertalhões que tomavam aquele espaço como se fosse seu, muito porque o proprietário da terra não se preocupava com essa prática, e asssim ninguém lhes fazia frente.

Este repasto que sempre adorei, era confecionado por alguns com ovos mexidos, de omelete, mas na minha casa eram habitualmente cozinhados apenas grelhados à moda do meu pai, sob uma chapa, ao fogão, com duas ou três pedrinhas de sal no chapéu, virado ao contrário, formando um molhinho delicioso e suculento. Claro que para evitar que esses míscaros fossem venenosos, e pudessem ser motivo de um final trágico, era sempre colocado sobre eles um anel de prata, que, caso não ficasse negro, conferia a validade do produto.

Nunca cheguei a saber se esta cautela era mesmo válida, e me poderia servir de descanso, mas até à data, graças a Deus, resultou sempre.

Certo dia, alguém me convidou para também eu “ir a eles”. Ou porque tinha chovido muito e haviam muitos, ou porque alguém soprou que sabia de um sítio, enchi-me de coragem… e fui!    

Quase que me recordo do ar de espanto e felicidade do meu pai, pela minha intrépida audácia, mas assim que os começou a tirar do saco e a olhar bem para eles (e se eu procurei sempre os branquinhos com a anilha branca à volta do pé), foi fazendo um monte maior e um mais pequenito, com muitos menos.

- Então pai? Estes poucos não prestam?

Olhou para mim com um ar de misericórdia, e disse baixinho: não filho, estes poucachinhos, são os únicos que são bons. Os outros… é melhor não comermos.

Agora gosto muito que mos possam oferecer… Só.

 

i)     Andar de Carrinhos de Rolamentos

Então era assim: os rolamentos vinham não sei bem de onde, mas a verdade é que se pegássemos em quatro, e lhe metêssemos dois paus redondos a unir, de dois em dois, com uma madeira em cima, tínhamos um carrinho de rolamentos. Atualmente, existe inclusive, uma corrida deles no Porto da Espada, que já vai sendo muito popular.

As viaturas poderiam ter diversos formatos, atendendo ao tipo e tamanho do rolamento utilizado. Muitas vezes, eram utilizados dois maiores no eixo de trás, o que sempre conferia um ar racé, e desportivo. A memória que tenho era que o meu pai era muito jeitoso para bricolages, e o meu era dos mais rápidos de então.

       De visita ao Cristo-rei e a Lisboa: Gina, Vítor Felino, Bela Carita, com Miguel Sobreiro à frente, eu e Paulo Varela, Zé Dias e os manos Carita. 

sábado, 9 de outubro de 2021

Já estás no teu lugar, agora!!! (a triste história do juiz "já foste!")

 


Este sujeito, já bem conhecido de todos nós, o juiz Rui Fonseca e Castro, destacou-se porque é dono da opinião que a pandemia Covid 19, provocada pelo coronavírus, que literalmente abalou o nosso planeta inteiro, que provocou 4,43 milhões de mortes em todo o mundo… não existe!

Se fosse o Zé da Calçada, um pobre desgraçado sem trabalho, família, escolaridade, eira nem beira, já seria estranho… mas como esta é a opinião de um juiz do qual se espera, no mínimo, que mantenha um comportamento social que seja digno de exemplo para com os outros concidadãos… a bizarria e estranheza aumentam.

 

 

O Conselho Superior da Magistratura, ou seja, a nata dos juizes, ou a entidade reguladora da sua atuação, moveu-lhe um processo disciplinar no sentido de apurar as suas responsabilidades, e definir punições.

 

 

O rapazinho este, quando foi ouvido, insultou polícias e magistrados quando seguia no caminho para ser ouvido, no processo disciplinar de que foi alvo. Ao longo de uma hora de alegações, o magistrado intitulou-se como o rosto dos injustiçados e reprimidos no que diz respeito ao combate a esta pandemia que, segundo garante, não existe nem provocou mortes, como se fosse uma auto-proclamada “mega-estrela anti-covid”.



https://sicnoticias.pt/pais/2021-09-07-Juiz-negacionista-agressivo-com-PSPO-meu-lugar-e-este-acima-de-si.-O-senhor-esta-abaixo-de-mim-5e142e6a

 

Como se para isso não bastasse, rejeitou a evidência científica que está na base das vacinas e ainda acusou os membros do órgão que tutela os juizes, de pertencerem a sociedades secretas. Não basta?

Enfim, bastou, embora tenha tardado tempo a mais, porque o plenário do Conselho Superior da Magistratura (CSM) deliberou, esta quinta-feira, dia 7, por unanimidade, a sua demissão, que pode ser alvo de recurso, mas tem efeitos imediatos, por  ter nove dias úteis consecutivas de faltas injustificadas e não comunicadas, as quais ocorreram entre 1 de março de 2021 a 12 de março de 2021, com prejuízo para o serviço judicial, já que tais faltas implicaram o adiamento de audiências de julgamento agendadas", como comunicou a vogal do CSM. No entanto, outra infração refere-se ao facto de "ter proferido um despacho durante uma audiência de julgamento no dia 24 de março de 2021, no qual emitiu instruções contrárias ao disposto na lei, no que respeita às obrigações de cuidados sanitários, no âmbito da pandemia de covid-19.”

No comunicado, lido pela porta-voz, foi referido que "a sanção de demissão implica o imediato desligamento do serviço do senhor juiz de direito Rui Fonseca e Castro, é recorrível para o Supremo Tribunal de Justiça, no prazo de 30 dias, mas não suspende os efeitos da deliberação do plenário do CSM". Portanto, mais e melhores capítulos vêm a caminho.

O prémio “VALENTIA E SABER GUARDAR O DEVER À CAUSA” atribuído pelo vosso Tio Sabi vai direitinho para os agentes da PSP que quando olharam de frente este martuto com ar de G. I. Joe Gingão, de t-shirt preta com os dizeres “habeas corpus” (que tenhas corpo) gravado na t-shirt preta, envergada sobre umas gangas velhas, a gritar-lhe “PONHA-SE NO SEU LUGAR!!!!!”, “VOCÊ ESTÁ ABAIXO DE MIM”; souberam manter um ar imperturbável, impávido e sereno, sem esboçarem o mínimo gesto, quando certamente o que lhes apetecia, como a mim, era enfiar-lhe com a cronha da G3 no centro dos cornos, e de lhe pisarem o focinho quando caído no chão, para lhe gritarem a ele então que para fazer cumprir a lei, estavam eles ali!!!

Peca por tardia, a decisão. Na minha opinião, deveria ser na manhã seguinte.