terça-feira, 2 de agosto de 2022

Sabes quem morreu?!?!? O Jakim!



Ouvi comentar entre os presentes que alguém tinha morrido, mas como estava ao serviço, precisamente a recolher as informações do óbito de uma pessoa de idade, concentrado nos dados a recolher, e nas informações em causa, não prestei atenção. Notei alguma incredulidade, algum espanto nos intervenientes. Falavam que estava… assim, que o tinham encontrado…, que agora vão ter que…, mas não me fixei.

 

Quando saí, à tarde, alguém, no café Pinadas, comentou que “sabes quem morreu? O Jakim!”

 

O JAKIM?!?! OOOooooohhhh… Como tal?!?!?

 

O Jakim, como eu, e a gente que o conhecia sabia, era tão novo e parecia estar tão bem….

Realmente, para se morrer, como eles costumam dizer, basta estar vivo. É um ar que se dá, e prontos! Está tudo arrumado!

 

Fiquei mal com aquilo, ópá!

 

Acordei de noite, a pensar que tinha que escrever alguma coisa sobre ele, e sobre isto. 

Não sei se quem me lê era cliente habitual deste meu lugar, mas a verdade é que com a falta de tempo cada vez maior, a oferta multimédia cada vez maior, o crescimento do aumento de formas de darmos azo ao nosso sentir, e até… por alguma preguiça e comodismo, passo por aqui menos vezes, quase só quando acontecem coisas que me puxam mesmo a atenção e o sentir, assuntos que merecem outra solenidade.

 

O Jakim, era o Joaquim… cujo apelido acho que ninguém sabe, a não ser as pessoas que se relacionavam com ele por motivos de trabalho, ou outra necessidade do seu dia a dia.

O Joaquim tinha o mal de ser alguém que sempre foi o irmão do Mané Bodes, esse sim, uma figura mesmo, mesmo, muito popular em Santo António das Areias, na Ranginha, nos Cabeçudos, nos Barretos, na Beirã, em Marvão, em toda esta parte norte do concelho, onde passou a vida a deambular sempre na esperança da boa caridade das pessoas que sempre muito o estimaram, pelo seu atraso mais que evidente, pela sua boa vontade, pela sua forma cómica de se expressar, pelo seu jeito natural tão engraçado. Quem é que não conhece um, ou outo episódio mesmo engraçado com ele?

 

O Joaquim… era sempre o “irmão do…”. Uns anos mais novo que o famoso irmão, estava sempre bem disposto, coitado, sempre a rir, sempre bem. O Joaquim tinha uma forma diferente da do mano, mas também ela muito cómica de falar porque… mal se percebia! Ria-se e expressava-se ao falar connosco, mas acabávamos todos a rir-nos sempre, sem percebermos muito bem o que era.

O Jakim andou muito tempo assim também sem pouso que se soubesse certo. Nem sempre muito tratado, nem sempre muito asseado, andava por aí, onde calhasse. Nos últimos anos, a sua vida deu uma grande volta porque passou a trabalhar para a Freguesia de Santo António das Areias, e começou a comer através da Casa do Povo da terra. Começou a andar com o seu dinheirinho no bolso, andava a trabalhar enquanto passeava a conduzir o dumper (viatura motorizada de 4 rodas, com uma pá de apoio para carregar materiais diversos), com o ar mais satisfeito e realizado do mundo. Dava gosto, caraças!!!! Passou a ir buscar as suas refeições sempre antes das horas destas à Casa do Povo, e era um regalo vê-lo ir com a sua cestinha para a trazer cheia.

- Então, Jakim!!! Já lá vais com ele, não?!? Dá para mais um?

E ele balbuciava, a rir, qualquer coisa absolutamente impercetível.

Eu ria-me, e ele também, e lá seguia em direção a casa, um quartinho que tinha conseguido junto à igreja, nesta sua nova vida.

 

O Jakim gostava muito dum tintinho. Às vezes, quando a carregava a mula, seguia assim muito pé ante pé, para não dar bandeira. Era muito engraçado, quando ia assim. De vez em quando, bebia sumo.

- SUMO, JAKIM?!?!? Andás-te-te a portar mal, outra vez, não?!?!?!

Ele justificava-se com uma explicação… claro que impercetível!, a rir.

 

“Foi o Senhor Doutor?!?”  

E ele ria-se, enquanto contava as moedinhas… para pagar.

 

Tenho tanta pena dele, o pobre. Coitado.

 

Sei que infelizmente há muitos assim, mas eu, este, conhecia-o. O Jakim, nem livro, nem filho, nem árvore. Bem, árvore talvez tenha plantado alguma, e certamente fê-lo na junta, mas foi um saco vazio que bailou ao sabor do vento, talvez há 50 e muitos anos, que eu não sei quantos tinha, mas por certo seria muito mais velho que eu.

 

Já me informei, e sei que tem mais familiares, bem inseridos na nossa vida. A mãe, que deve estar muito velhinha, também era de relacionamento difícil; mas já soube que tem uma irmã na Ranginha, que não estou a associar; uma irmã que já não vejo há muito; um irmão, a viver lá longe; e o Manuel, que passa os dias na APPACDM, junto à minha casa.

 

Não acompanharei o seu corpo ao cemitério, porque ele já não está lá, porque tudo o que se faz, deve ser feito em vida, e não depois de se partir; porque essa é uma cerimónia muito íntima, que não deveria ter assistência para lá dos portões daquele local; mas farei questão de passar pela câmara ardente, rezar, e pedir por ele.

Não sei como é que será aquilo a seguir, nem quero saber para já (a haver, haverá toda a eternidade para se descobrir), mas se houvesse alguma coisa, como tenho fé que haja, gostaria que o nosso amigo Francês, que também gostava tanto dele, e se riu tanto com ele, e comigo, o orientasse.

 

Tenho muita curiosidade para saber o resultado da autópsia. Que será que terá acontecido?

 

Como passa tudo tão depressa, Deus…

 

Que descanse em paz…

FIMMarvão 2022... Sonhando clássico sob as ruínas seculares da civilização romana

 


Na vida, não há senão benesses, bênçãos, sopros de divindade, aos quais, os menos esclarecidos, chamam de... "sorte".

 

Cá para mim, acontece sempre o que tem de ser! Ou seja, acontece o que alguns tontos, como eu, que  pensam que acham que sabem, dizem que é por intervenção divina, por algo muito maior que a sorte.

 

Nascemos, com todo o nosso potencial, porque o nosso espermatozóide (nome estranhíssimo para semente de vida), venceu a corrida contra muitos milhões de adversários, e furou o óvulo materno... para dar origem ao que haveremos de ser nós. (Benesse 1, primeira de todas.)

 

Não tive a sorte (cá está ela, de novo), de nascer junto ao mar (o que eu queria, e sonhava tanto), mas tenho próxima essa benção dos céus, sonhada pelo Sr. António Andrade e sua equipa (como o nosso Antonio Garraio recordou), mas creio que inaugurada pelo Dr. Manuel Bugalho, chamada o Centro de Lazer da Portagem, junto à praia fluvial que é o mar, sem areia, mas com a mesma frescura, e agradabilidade. (Benesse 2, que me lembrei agora, acerca da manhã de hoje.)

 

Outra benção chegou ontem, através de uma amiga muito próxima, que me permitiu assistir ao concerto noturno ocorrido mas ruínas da Cidade Romana de Ammaia, onde a "Orquestra XXI", patrocinada pelo "BPI" e pela "Fundação La Caixa", orientada pelo jovem maestro Dinis Sousa, que interpretou 3 peças belíssimas:

 

- A abertura de "Inês de Castro", a ópera perdida (e que agora, após recuperada, nunca mais será esquecida, segundo as palavras proferidas ontem, pelo maestro), do pianista, compositor, maestro e musicógrafo português, Vianna da Motta, nascido nos finais do Séc. XIX;

 

- Um "Concerto para violino e orquestra em Ré Maior" de Tchaikovsky, interpretado por uma violinista asiática absolutamente deslumbrante, que o executou na P E R F E I Ç Ã O (sem recurso a partituras!!!! De memória!!!), que prendeu, e calou qualquer esboço de reação da assistência (para além de uma torrente de aplausos) pejada de figuras de Estado, e de connaisseurs;

 

- Um "Concerto para orquestra" de Béla Bartók, compositor húngaro dos finais do Séc. XIX, princípio do XX, ideal, como disse o maestro, para ser tocado naquela ambiência, com o coro de grilos e outros animais noturnos de fundo, e um sem fim de insetos esvoaçantes em volta, correndo para a luz que rompia a escuridão.

 

Para quem, como eu, olha para uma partitura como um boi para um palácio, um concerto de música clássica providenciando por jovens artistas desta categoria, exímios executantes daquela linguagem, é muito agradável porque: é incrivelmente belo, é agradabilíssimo e prazeroso, é muito interessante por se poder assistir à forma como executam as notas musicais, e depende muito da performance do maestro, que os conduz.

 

Quando lá cheguei, com tempo para conseguir lugar para estacionar, cadeira para nos sentarmos, tempo para desfrutarmos da envolvência, vi um maestro muito jovem, de Hawaianas, como eu, quando vou à piscina, e... lá que estranhei 😧 estranhei. Contudo, depois de todos terem trajado à altura, e do mestre ter envergado o hábito negro, tudo foi tão diferente, seleto, e tão melhor...

 

Aprende-se nos livros que um maestro é um treinador de futebol, um realizador de cinema, um encenador de teatro, o que faz acontecer.

 

Ali, frente a uma orquestra, marca compasso, agita e apazigua as diferentes secções (cordas, metais, percussões...), orienta e anima o seu "exército", e para nós, assistência, traduz o sentimento e a alegria, a zanga, a confusão, a alma do som.

 

Não lhe tirei os olhos de cima.





Foi mágico!

 

Sempre agradecido,  a quem sabe quem é!

 

Longa vida ao FIIM, a todos os músicos, colaboradores, pessoal técnico, assistentes e envolvidos, e claro, ao Mágico Maestro Christoph Poppen , esse anjo na terra que um dia sonhou que Marvão merecia sonhar tão alto! Sempre agradecido! 


segunda-feira, 4 de julho de 2022

A triste sina do Esparrela

48 anos, cumpridos a 5 de Março...
Menos um ano que eu...

 

À sua memória…

 

- Ohhhhh… sabes quem morreu?!?!?, perguntou-me de manhã, quando pegou no telemóvel, e passou pelas inevitáveis redes sociais…

 

Aqueles segundos que se seguem a uma pergunta destas… parecem horas, e angústia da dúvida tolda-nos o pensamento por completo. A tentativa absurda, e desorientada de encontrar uma nome… não se coaduna, de todo!, com a admiração da pergunta. Se fosse alguém que estivesse doente, afinal, o pasmo não poderia ser tanto pelo que… fiquei ali assim… em suspenso, à espera da bomba.

 

- O Pedro! O Pedro da papelaria Tavares…

 

E eu… em silêncio… pensei… O ESPARRRELA?!?!?!?!? Mas… eu, ainda antes de ter tempo de perguntar se foi de uma causa súbita, um acidente, ainda ganhando consciência da atrocidade da notícia, ouvi…

 

- Diz que estava muito doente…

 

Pronto. E caiu-me a ficha!

 

Mas… como doente?!?!?! Se ainda há dias, há meses, no Trail de Marvão 2022, apenas a 20 de Fevereiro, ele esteve ali no mercado de Santo António, comigo, a beber umas, completamente feliz, saudável e risonho, como ele era, afinal, agradecido pela vida e pela vida que levava?

 

O Pedro era um super-atleta, porra!!!!! O Pedro corria que se desunhava e estava sempre em todas, como porta estandarte do ACP (Atletismo Clube de Portalegre), como todos aqueles seus amigos de amarelo e negro, que eram uma segunda família, ou às vezes, mesmo a primeira de convívio e amizade, e vida saudável e alegria…





 

Dois ou três telefonemas depois, mais uns quantos dedos de conversa com lagóias cá da minha praça e… afinal… este desfecho era mesmo o único esperado, desde que um cancro no pâncreas fora anunciado como o carrasco implacável, que tinha deixado à vista pouco ou nenhum tempo de navegação, com margem de margem de erro praticamente nula, como são todos estres, afinal,.

 

Idas e vindas de Lisboa, chegadas de helicóptero com meia cidade à espera, a ver…

 

Um cancro no pâncreas, por Deus! Que modo de vida, que terrível mapa de ADN, que falhanço genético podem levar a um tão trágico desfecho assim, quando se é ainda tão jovem?

 

 

O Pedro chegou-me por um dos amigos que mais gosto, pela mão do meu Pescada. Conhecia-o de vista do Liceu, da Maluka, das noites de Portalegre, mas como nunca nos tínhamos cruzado por as linhas de vida jamais se terem tocado, por nunca termos sido da mesma turma, nunca termos tido amigos comuns, nunca termos chegado ao prazer do convívio.

 

Quando nos ligámos, acho que ainda estava bem antes desta fase de atleta que ocupava grande parte da sua vida, nestes últimos anos. Passear pelo seu facebook, presumindo que hoje em dia essa é a nossa pegada digital, é encontrar muito desporto, muitos amigos, muito convívio, muitas minis, muitos sorrisos, muita família e amor à família.

Como ele amava os amigos e a família…






Chega a ser impressionante mas… quando quase todos os utilizadores da rede social mais conhecida, e por todos mais utilizada, correm para meter a boca no trombone assim que lhes surge a mais pequena contrariedade, muito em busca de coros de comiseração que lhes contrarie a solidão e lhe sirva de conforto, o Pedro… não tem uma única publicação sobre a doença, fosse onde a revelasse, a dureza de lidar com ela ou com os tratamentos, ou se revoltasse contra ela, a vida, a sina, um Deus, ou o seu deus.

 

O Pedro teve de deixar, por ter recebido esta tremenda guia de marcha antes do tempo, uma jovem viúva, a Marília… e uma filhota de 17 anos, a Inês, a quem ainda no outro dia ofertou, pelo 17º aniversário, uma acelera toda XPTO, numa prova de amor que me deixou mesmo tocado.



"Amo estes sorrisinhos" escrevia ele. <3 <3 <3 
O melhor do mundo
Felicidade partilhada com os meus amores
Amo-vos muito

A sua vida era muito de entrega e partilha, de felicidade por ter junto a si quem amava, fossem a mulher e a filha, a mãe e o padrasto que ainda há dias parabenizava de forma ternurenta pelo octagésimo e picos aniversário, fossem os sempre tantos, saudáveis e atléticos amigos…


Com o Lourenço Rafael e a mãe Maria Teresa Tavares
 

Teve estofo e coragem para ter mudado de vida, perante um negócio que outrora já fora o maior do género na cidade, com mais que um espaço aberto, mas que agora definhava dia após dia, numa rua do comércio fantasmagórica, que se ajoelha perante as grandes superfícies que tudo engolem; e teve de adaptar-se a um negócio diferente, ao qual se ajustou para viver, mas não conseguiu superar a sentença de um fim anunciado, de um emissor que passa a algoz quando o transmite.

 

Não irei ao seu funeral por impossibilidade de agenda mas… de verdade que o que lamento na realidade é deixar de o ter cá, é nunca mais podermos fazer aquele almoço, ou aquele jantar como nosso amigo Pescada, que sempre enchia e alegrava as nossas conversas quando tínhamos o prazer de nos encontrarmos.

 

O que se faz, e deve fazer, é em vida. Os funerais, no meu modesto entender, da porta do cemitério para dentro, deveriam de ser exclusivos à família, pela intimidade do momento, pela força e importância.

 

A ele, vou recordá-lo sempre a rir para mim, a tratar-me por Sabi (que é o meu nome artístico em Portalegre, pelo qual muitos me conhecem, sem saber sequer que sou Pedro), sempre disposto a um convívio, a uma boa onda, a uma gargalhada ou uma corrida.

 

À família, que deve estar absolutamente destroçada, e aos todos amigos que ficaram sem ele, envio um forte abraço de pesar, de solidariedade e de força!

 

Ele, o pobre, vai ser mais um que fará parte dos meus pedidos, de uma outra forma, mas para que esteja em paz.

 

Até sempre, Pedro! Foi muito bom ter-te conhecido, e poder ter-te como amigo!


Até sempre, Amigão! <3

sexta-feira, 17 de junho de 2022

Então, afinal, assim pensavas tu...


De parceirada, na janela da casa da avózinha... <3

E prontos, cá estou eu, a cristalizar no papel, um texto que ando a escrever na cabeça há 28 anos, desde 3 de junho de 1994, mais precisamente.

 

Muitas vezes quando estou parado, a pensar, parece aos outros, que em nada, com ar abstrato e perdido, ando mergulhado nestes pensamentos que são só meus, não por egoísmo, mas porque estão em construção, e ocupam grande parte do meu viver.

 

Desde aquele então, desde aquela fatídica manhã de calor, quando estava em Armação de Pêra (aquela que sempre foi a nossa praia, porque causa de ser aquela de onde o Tio Gomes, teu cunhado, era natural), quando subitamente faleceste tu, meu pai, o que queria mesmo era saber como é que tu, com precisamente a mesma idade que tenho hoje, te sentirias perante ti mesmo, a vida, os outros; não quando estavas a sentir o aperto colossal, de muitas toneladas no peito, como relatam os depoimentos médicos habituais em geral, mas se estivesses fora dessa situação, se estivesses bem.

 

Há medida que os anos se iam aproximando deste momento, eu ia-me apercebendo que apesar de todos sempre sabermos que 49 anos é uma idade muito horrorosamente jovem para se partir… tu eras mesmo muito novo!

 

Quando eu nasci, tinhas 28, apenas, mas já carregavas em cima dos ombros, uma vida de mais do dobro, com a juventude rebelde e musical de Castelo Branco, na tarola dos Cometas Negros, e com uma guerra colonial em Moçambique às costas, a qual nunca chegaste a compreender, e da qual nunca falavas, mas que te fazia acordar em sobressalto, e em lágrimas, muitas noites, sempre a carregando contigo, por ser um fardo duro demais de injustiças e horrores.

 

Ai, João Sobreiro... sempre usaste bigode, o que te fazia mais velho, e te dava um ar mais pesado. Sempre te vi assim, como pai, como mais velho, com respeito e de certa forma, inalcançável. A grande conclusão era que se quando partiste, olhavas para a montanha da vida, do mesmo ponto que eu a vejo hoje… eras um puto apenas! (que é como eu sinto que sou!)

 

Eu posso ter… aquilo que mais me orgulho até hoje: ter gerado e ajudado a criar duas filhas que amo mais que a vida (porque a daria por elas no instante seguinte, sem pestanejar), posso ter criado um lar, posso ter feito a história de vida com a Mulher de Sempre, desde os 15 (?!? na 1ª vez?, com diversos interregnos, mas sempre ligados), posso ter construído a vivenda dos meus sonhos, posso ter lutado por arranjar um emprego condigno, seguro, do Estado, que considero não mal remunerado, apesar de ser fora daquilo que era a minha formação académica; posso ter sido o vice-presidente do meu concelho, posso tudo isto mas… sou um puto! As diferenças entre aquele Pedro que teimava em andar de calções de banho na rua, quando montava a sua bicicleta BMX na Beirã, no Verão, e este que escreve aqui agora… não são muitas! São, se calhar, nenhumas!

 

É certo que posso ter em mim, todas as limitações da sociedade, posso ter assimilado os papéis condignos, embora de vez em quando resvale para alguma rebeldia adolescente que persiste em continuar viva, mas percebo cada vez mais porque é que o Peter Pan, do escocês James Barrie, a história do menino que nunca quis ser grande e crescer, é, para além de ser o meu livro de vida, capaz de ser mesmo a minha.

 

Tento sempre ajudar os outros e ser irmão (seja de quem for, seja um pobre desgraçado, um renegado, um leproso, desde que me mereça a confiança), combato as injustiças (custe-me o preço que custar), não tenho limites e sou irreverente (por achar que sou sempre capaz de chegar, mesmo onde me dizem que não), digo tudo aquilo que tenho a dizer, seja a quem for, sem medos de consequências; sou humilde (porque sei que por muito que tenha, nada é meu e nada tenho; porque a vida nesta terra, que não somos dela, é uma passagem e um fogacho), entrego-me sempre à primeira, e sou leal a quem me quer; sou Amor, que é o sentimento mais forte e mais bonito nesta terra.

 

O meu pai nunca me bateu, o que não posso dizer de um apontamento ou outro da minha mãe, mas que foram sempre merecidos e só me fizeram bem!

 

Sei reconhecer que não foi um pai perfeito, e ele também se sabia assim. Apesar de sempre zelar pelo nosso bem estar e tudo fazer por nós, teve sempre consciência que a sua vida, era a sua vida, a sua oportunidade de viver, e aproveitou-a da melhor maneira que a ele lhe pareceu. Apesar disso, teve um efeito em mim que foi a pessoa que mais me impactou, moldou e mais gostei de conhecer (perdoa-me mãe. Sei que tu também foste assim!), ao ponto da minha vida nunca mais ter sido a mesma.

 

O meu pai desapareceu numa manhã em que se sentiu mal, com um forte aperto no peito, e por isso não pôde ir levar o meu irmão, de então 14 anos, à escola de Santo António onde estudava, a 4 quilómetros de distância, que foi conduzido pela minha mãe, que… quando regressou… ele já não estava, ou tinha acabado de partir.

Naquele então, não existiam Bombeiros Voluntários de Marvão, os de Castelo de Vide ficavam muito distantes, e o Hospital de Portalegre parecia quase à distância de Lisboa. Houve uma enorme negligência de todos nós, por todos os sintomas que vinha revelando nos últimos meses, muita submissão à sua vontade em fugir dos médicos e à medicina em geral, por estar certo que lhe iriam cortar com aquilo que eram os seus hábitos favoritos de toda vida, que fazia questão em manter, custasse o que custasse.

 

O seu desaparecimento foi, para ele, um momento. Terrível e certamente extremamente doloroso e aterrador, mas que aconteceu de uma vez, só, derradeira, fulcral, determinante.

Não se viu, nem o vimos… definhar numa cama de hospital, a ser comido por uma doença ruim, desgastante, cruel, avassaladora em dias que pareceriam meses, anos, décadas; nem se viu, nem o vimos ficar apanhado por uma trombose qualquer, diminuído, aprisionado de um corpo cujos membros já não lhe obedeciam aos movimentos que queria fazer.

 

Deixou foi uma mulher viúva com 43 anos naquela data, e dois filhos, um de 20 anos, outro de 14; um a estudar na faculdade em Lisboa, o outro, aqui, como contei; e nós nunca mais fomos os mesmos. Eu, recém licenciado em Comunicação Social, não me senti com capacidade, nem background (até com direito de pedir o financeiro) para andar por Lisboa à procura de emprego, com as televisões privadas a rebentarem, mas com a família desfeita por aqui; e o Miguel, que era o seu grande companheiro de sempre, ainda estava a aprender a ser gente, quanto mais.

 

Mas o João Sobreiro… foda-se!!!!, o João Sobreiro tinha um nível (sempre sabendo até onde poderia ir, e quando deveria parar), uma classe (que o permitia saber estar tanto com a alta, como com o pastor mais modesto, analfabeto), uma cultura (sempre a ler, sempre com as palavras cruzadas que acabava de forma exímia, deixando-me boquiaberto), uma alegria de viver (sempre bem disposto, sempre de viola às costas, sempre a fazer a festa onde quer que entrava), tinha um amor por nós (mulher, filhos, mãe, irmãs, sobrinhos, primos), e por tantos, tantos amigos do emprego, daquilo em que se metia como os escuteiros, as caçadas, as ramboiadas, os tempos de Castelo Branco (onde ainda é lembrado com tanta saudade), que é recordado ainda hoje! por Homens que vão às lágrimas, por se recordarem de tempos que já não voltam, e pelos belos momentos que passaram juntos.

 

O João fez aquilo que é mais importante: deixou marca! Bateu fundo em quem com ele contatou. Deixou o mundo diferente do que encontrou!

 

Hoje teria 77 anos, e… tanta gente que é feliz, se sente bem, e faz feliz os que estão à sua volta com essa idade. Tantas coisas que poderiam ser ainda feitas…

A sua irmã, Cremilde, ainda cá está, Graças a Deus, na Santa Casa da Misericórdia de Marvão, com 91 anos, embora a demência do Alzheimer, já a tenha levado há muito, e apenas restar um corpo muito débil, um escombro que nós muito amamos, e persistimos em continuar a visitar, e amar, como um monumento ainda vivo que tanto amamos.

 

Aqui chegado, pois, a constatação maior e a certeza é que o tempo, o tempo, é o bem mais precioso que temos na vida, e ai daquele que não o souber bem aproveitar! Mal nos damos conta… já foi!!!

 

Peço a Deus que te tenha em descanso, e se acredito nessa entidade máxima, não acredito que haja céus, ou infernos, mas antes outras vidas, outras dimensões que decorrem desta. Aspiro piamente, a que chegado o momento em que tenhamos de “subir de nível”, muitas coisas nos sejam explicadas, e palavra de honra que gostava mesmo de te voltar a encontrar! Adoraria poder dar-te um abraço dos nossos, daqueles que me davas quando sabias das boas notas que tinha tido, e ficávamos ali assim abraçados, colados um, ao outro, assim bem apertados, até sentir os ossos e me começar a faltar o ar.

 

Vai por ti, meu velho!   

 

Saudades!!!

As saudades que eu tenho de falar e tu me ouvires...(quando ainda nem sequer televisão tínhamos),

 

segunda-feira, 16 de maio de 2022

Shangri La - O meu horizonte longínquo sobre carris (Parte IX - Canastrões)

Depois de algum tempo de interregno, depois de uma paragem sem motivo aparente, mas que é apenas um sinal dos tempos que vivo, e vivemos, publico o último capítulo do meu contributo para as memórias das freguesias de Santo António das Areias e Beirã.

 

Segue-se um conjunto de memórias, das quais me vou lembrando quando quero escrever sobre o passado…

O mítico Raul

a)    Raúl

Numa galeria de figuras da minha terra, a primeira tem claramente de ser esta, que dos cromos, era o maior: o Raúl era um rapazinho, já homem, que nós achávamos não tão velho, embora soubéssemos mais avançado que nós, que andaria aí pela casa dos 40, quando nós ainda éramos pequenos. O Raúl tinha assim um corpo apequenado, de bracinhos pequeninos, e perninhas esquálidas. Andava sempre “bem” vestido, de camisinha, às vezes fato, por vezes gravata, mas sempre de chapéu. Provavelmente teria sofrido um ataque qualquer quando era mais novo, ou teria vindo assim de nascença, mas como era diminuído, o pobre, era muitas vezes alvo de gozo e troça dos miúdos, que nisto aqui, são cruéis. Não digo éramos, porque nunca o tratei mal, e até sempre nutri por ele, um carinho muito grande, porque nunca foi violento. O Raúl não articulava bem as palavras, ora as balbuciava, ora as murmurava, e quase sempre se babava, quando o fazia.

O Raúl era indissociável do seu carrinho de mão, que era como se fosse uma extensão de si mesmo. O carrinho estava sempre carregadinho de pedras, algumas bem grandes e pesadas, que ele acartava para o alto de um monte, ali para junto do ribeiro, para conseguir construir uma “câja” para ele e para a “Nina”, que era a sua apaixonada, mas de quem eu já não me recordo muito bem se sabia quem era. Dias inteiros, as vezes bem de manhãzinhas, e noite até, num trabalho incessante para a conquista de um sonho perdido que nunca conseguiu.

O que eu sim me recordo assim mesmo muito engraçado, e faz-me sorrir quando relembrei, era quando alguém o incomodava, importunava, lhe fazia frente, e ele prontamente ameaçava em ir a “Xantantônho” à “câsadaquexa”, traduzindo, a Santo António das Areias, à casa da queixa, ou seja, à GNR.

Lamento tanto que o seu desaparecimento não tenha guardado um lugar na minha memória, mas a verdade é que lhe perdi o rasto. Não me consigo recordar aquando se deu o seu fim, em que momento da minha vida de migrante da terra o perdi, mas a verdade é que se foi, e para mim, hoje que olho para trás, sinto que o hei-de sempre recordar assim, a beber um Sumol fresquinho, talvez de laranja (creio que não bebia álcool), para atenuar o calor, enquanto voltava a pegar no carrinho de mão cheio de pedras e se fazia à estrada sob um sol abrasador de Verão.

 

b)    O “Calcinhas”

O “Calcinhas”, figura mítica e a 3 dimensões desta galeria, era todo um figurão. Já homem de bem mais que meia-idade, de quem parece que estou a ver a sua cara, e ouvir o seu riso; vivia na Beirã mas creio que não era de lá. Tinha um emprego altamente conceituado na alfândega, e era um senhor muito bem remunerado que vivia bem, quer-se dizer, bem… em termos financeiros, porque… de resto, não tinha esposa, filhos e familiares mais próximos. Era um solteirão já bem avançado, que fazia as delícias da pequenada, quando nos ia contando as suas aventuras e desventuras nas visitas que fazia às casas das meninas de região. O seu Volkswagen carocha branco, com diversos pacotes de leite no tablier traseiro, para desintoxicar dos excessos da noite anterior, percorre todos os tempos da minha meninice.

Era baixinho, estava assim sempre meio vermelhote (?), e cheirava a perfume manhoso. Era calvo mas tinha o pouco cabelo sempre impecavelmente penteado, puxado para trás?


Mudo

Todas as terras tinham um mudo, e o da Beirã… era bem castiço. Não me consigo recordar de onde era oriundo, mas se o visse hoje ao longe, reconhecê-lo-ia de imediato. Não é que fosse mudo de todo, e fartava-se de nos dizer que mudez, não é surdez; e conseguia ouvir algumas coisas, como quando abria os braços esticados, emitia um som com os lábios a baterem como se fosse um motor, e olhava o céu, imitando um avião.

Mandava-nos à merda, quando gozávamos com ele, enrolando o dedo polegar à volta do nariz.

 

d)    Sr. Cardoso, “O Cardosão”

De todas, a mais erudita das figuras, era todo um cavalheiro. Calvo, sempre muito bem vestido e composto, natural do norte, tenho ideia que de boas famílias, vivia com a sua esposa, a D. Aurócia (?), e não tinha descendência. A sua casa, enorme, na rua da igreja, tinha um escritório na parte de baixo; repleta de livros em estantes, onde passava as tardes e as noites a ler. Fumador inveterado, adorava receber a malta nova que nos sentávamos no chão, boquiabertos, a admirar as suas preleções. Quem nunca fumou o seu primeiro cigarrinho com o Cardosão? Saudades imensas…

 

e)    Sr. Sabino

Alto, bonacheirão, com ar simpático e sempre bem-disposto, o Sr. Sabino trabalhava na alfândega, e era um companheirão mais velho do meu pai, que vivia no prédio (dos moradores) da alfândega, onde hoje funciona a Unidade de Cuidados Continuados d’ “A ANTA”. Ficarão para sempre eternas as enormes favadas (único prato que a minha mãe não cozinhava, por não gostar) que os dois comiam em conjunto, na casa deste, sempre extraordinariamente bem molhadas. De resto, toda a Beirã tinha um pedacinho de terra onde produzia favas, ou lhas davam, ou as conseguiam, e quando assim era… convidavam o João Sobreiro que, claro que aceitava, por ser o seu prato favorito. Até hoje eu as como, nem que seja por ficar a pensar nele.

 

f)     João Forte

De festa, mãe Alzira sorridente com Sr. Sabino, e o João Forte

O João Forte, figura ainda viva, personagem de sempre da Beirã, atravessa décadas e passou de século com a particularidade de, aos meus olhos, estar sempre igual. Com uma forma muito própria de vestir, sempre com o seu gorro de lã, e o seu estilo informal, ainda hoje, quando entra nas finanças onde trabalho, parece que se estabelece um túnel em direção ao passado, e a Beirã volta a ser o que era, com comboios e tudo.

Filho de famílias abastadas, que foram deitando a perder todo o seu património, nem eu sei muito bem porquê, creio que vive na mítica Broca, creio que sem grandes condições, mas ainda vai felizmente rodando por aí, como se fosse imune à passagem do tempo.

 

g)    O menino Augusto

Irmão do João Forte, ainda hoje vivo também, o “menino” Augusto, como ele próprio se batizou, e gostava de ser tratado, era, e é, uma figura absolutamente fascinante, fora de qualquer baralho. Tendo sido estudante no colégio de Tomar, uma escola de elite daquele então, cuja frequência atesta bem a saúde financeira da família, sempre teve de tudo, menos de parvo; embora muitos assim o achassem, e eu estou em crer que sempre gozou foi com eles, ao fazer-se passar por tal.

Sei que teve casado e tem filhas, mas eu entro no filme já muito depois, e sempre o conheci como uma figura… que não tem nada a ver com nada.

Não lhe conheci trabalho, qualquer zelo na apresentação e indumentária, mas sempre muito amigo da pinga, e a sua fama de sempre alcoolicamente bem-disposto, cruza tempos e gerações.

Lá está, houve quem nunca o compreendesse, quem o ostracizasse, quem o ofendesse, mas eu sempre nutri por ele enorme carinho, admiração, e estima sincera. Ainda hoje, quando o reencontro na Clínica Sanvimed, onde ambos somos clientes, me conta sempre como está da sua maleita que ainda não percebi bem se foi um ataque de sarampo que teve em criança, que agora, de vez em quando sai????; se foi um ”cobro”?!?!?, se foi lá o que foi. Ele diz sempre que o Dr. Vitoriano lhe salvou a vida porque os médicos do hospital de Portalegre não sabiam o que lhe haviam de fazer, como se isso fosse mesmo verdade.

Recordo com muita saudade, os discursos que fazia em plena Carreira de Cima, Castelo de Vide, nos anos 80, quando eu lá estudava, estando já num estado bem avançado, muito do meio para a frente, e começava a dar num tom bem alto, as suas fantásticas preleções sobre tudo e sobre nada, sempre com enorme eloquência, espírito argumentatório, capacidade de persuasão, e profundidade filosófica. Certo dia, há bem mais de 30 anos, mas que jamais me esquecerei, do nada, lançou para quem quis ouvir, esta dúvida existencial, onde equacionava toda a economia de mercado: Eu, Augusto da Mota Forte, plantei uma alface. Veio o coelho… comeu a alface. Veio o caçador… matou o coelho. Ora eu, Augusto da Mota Forte, tenho ou não tenho direito a uma pata desse coelho?


h)    Sr. Murta

     Nos anos do Zé Manuel Bonacho, na garagem dos seus pais, na rua onde eu vivia, que se enchia sempre de comida e amigos. Com o Sr. Murta a fumar, como era habitual nele, o Zé Manuel Dias, o Prof. Tavares, então padre da paróquia, que me batizou, lá atrás; o Zé Manuel, com a sua caraterística barba e o seu ar inocente, a minha tia Cremilde, rindo ao lado; a minha madrinha Fatinha e a minha mãe. Estou ao centro, a rir. A piada deveria de ser mesmo muito boa. 

Já conheci o Sr. Murta sempre assim, com este ar das fotos; ou pelo menos, já como homem de meia idade. Distinto Senhor e vereador da câmara, era dono de uma casa lindíssima, junto à igreja, com uma horta e fantástica tangerineira, cujos ramos deixavam cair os belíssimos frutos para o largo em frente desta, que nós devorávamos. Desconheço a sua ligação à terra, até em termos laborais, porque sempre me lembro de ouvir a sua ligação aos aviões (ou estarei a fazer confusão?).

O seu filho Luís Murta, quase que um ídolo para nós crianças, ou pelo menos para mim, o era; tinha numa casa anexa à dos pais, uma coleção de aviões em miniatura que montava, diversos desenhos, e ligações a tudo aquilo que adorávamos.

Após da sua morte, o filho mais novo, Zé Luís, partiu para a cidade; e o Luís explora há décadas uma casa destinada a artigos de caça e pesca, de altíssima qualidade, em Castelo de Vide.

 

i)     Bonachinho (José Manuel Bonacho)

O Zé Manuel Bonacho era para nós, rapazes dos setentas, uma espécie de irmão mais velho, que nos acompanhava e levava para todo o lado, sobretudo para a célebre discoteca “A Maluka”, nos Fortios, em alta nesse então, destino de quase todos os fins de semana, à sexta e sábado. Filho de pai soldado da Guarda Fiscal, mas de uma família com terras e abastada, era um solteirão inveterado, a quem creio que nunca foi conhecida nenhuma namorada. Licenciado, tinha uma profissão muito segura e credenciada na região de saúde do Alentejo. Foi-se deixando ficar. Também um fumador inveterado faleceu de doença súbita, inesperada, creio que de uma embolia cerebral, irremediavelmente cedo demais, ainda antes dos 50, tal e qual o seu vizinho de cima tinha sido, uns anos antes.

 

j)     Paulinho Cascavél, o Carcacinha

Oriundo de uma família de muitos irmãos, os Pereiras, chegada mais tarde à terra; creio que oriundos do Pereiro; o Paulinho Cascavél, ou Carcacinha, como nos habituámos carinhosamente a tratar, também merece um lugar de destaque nesta galeria. Tendo entrado muito novo para o serviço militar, ali fez toda a sua vida, tendo atingido o posto de cabo, acho eu. Figura muito caraterística, com uma piada natural incrível, adaptava-se a todas as situações e conseguia nunca cair em falso, porque era natural e nunca se armava ao pingarelho. Era o que era.

Memórias incríveis de quando vínhamos juntos de fim-de-semana no comboio da beira-baixa, e começámos a conversa que um tinha um chouriço, que seria tão bom de comer então: e outro trazia um barrrozinho daqueles para ofertar a alguém, onde se costumavam assar os ditos cujos; outro trazia álcool (já não me lembro de puro, se do outro), mas dali a estarmos a assar chouriços em pleno comboio foi um instante, sempre com um vigia em cada janela da carruagem, não fossemos nós ser apanhados e presos.

Essa e as aulas de ordem unida em plenos carris, numa noite de festa na terra, enquanto a banda tocava, e os níveis alcoólicos ferviam, são postais eternos para todo o sempre.

Também faleceu cedo demais, pagando de forma pesada, o seu comportamento desviante e libertino numa Lisboa dos anos 90 a escape livre, quando as doenças mortais com nomes pequenos de siglas, ceifavam vidas incautas, castigando-as  sem dó, nem piedade.

Muito amigo, do seu amigo, geria uma hortazinha de onde tinha muito prazer e alegria em dar.

Ficará sempre até sempre…

 

k)    Zé Maria da Graça

Pai de três belas meninas da terra, casado com uma senhora creio que dos lados de Nisa,  Montalvão, ou por aí; o Zé Maria da Graça personificava na perfeição a imagem-tipo dos guardas-fiscais, a tal franja considerável da população masculina. Homem muto correto, bom, e educado, dava-se bem com toda a gente, a todos queria bem, e por todos era querido. Não sendo de muitos estudos, que não eram necessários para aquela carreira, sabia estar, se posicionar, e bem parecer. Tinha nível. Conhecia-me de toda a via, desde gaiato.

Voltei a apanhá-lo quando já era homem, e nutrimos uma amizade boa, sincera e do melhor. Cliente habitual da Casa Nicau, da qual passou a ser ainda mais asssíduo quando o estabelecimento passou para a frente da sua casa, era um companheirão, e recordo com saudade imensa, as tardes de tertúlia que passsámos a beber cerveja e a comermos “meio quilinho delas”, sendo que elas eram deliciosas gambas fritas pela D. Teresa Nicau, com pãozinho torrado, e molhinho de muita margarina derretida com sumo de limão. Coisa tão boa…

Metia-se comigo, e gostava muito de na paródia, à frente de pessoas com as quais não estávamos habitualmente, dizer: “vá, dá cá um beijinho ao pai”, o que eu correspondia de imediato, com um repenicado na bochecha, para ele me dizer de seguida, às gargalhadas, “Ai… eu adoro este gaiato! Gosto mais dele do que se fosse meu filho!”

A sua morte súbita, quando caiu redondo para o chão, do nada, no quintal de frente da sua casa, consternou-me imenso, e deu-me um abanão tremendo por sentir que também o meu tempo se está a esvair, ao ver grandes da minha galeria de ídolos e amigos ir-se esfumando.


Tó Gonçalves

1-      Encontro de jovens na Beirã, com um grupo católico trazido pelo padre Fernando Farinha, ao centro da imagem, com o meu irmão às cavalitas, por volta de 82. Do lado direito do padre, em cima do muro estavam o Quim Carita (a fazer músculo), o Zé Dias (a sorrir), eu, e os primos Chico António e Chico Zé, alguns dos que habitualmente por lá passavam férias. Por debaixo de nós estava o Tó Gonçalves, de colete e crachás, muito em voga naquele então.


Os dois amigos, na Beirã, numa foto recente

A bem de ver, acho que nunca houve criança alguma na Beirã, que não tivesse ouvido dos pais dizer, certo dia, quando procuravam um exemplo a seguir: mete os olhos no Tó Gordo!

O Tó, para os amigos; gordo porque de magrinho nunca teve nada, era o António Manuel Vaz Gonçalves, uma criança e um aluno brilhante, que por todos era elogiado, e sempre foi identificado como um exemplo a seguir. Também filho de um guarda fiscal, um Senhor guarda, o Sr. Gonçalves, sempre muito calmo e correto, foi revelando desde muito novo, que era também uma carta fora do baralho. Seguindo um percurso académico notável, entrou para a universidade em Lisboa, para cursar Filosofia e… mudou. Os excessos da vida académica, citadina, e o afastamento das raízes, fizeram com que se tivesse transformado num barco à deriva que chegou a tocar os limites da sanidade. Meu amigo pessoal, por quem nutro uma enorme estima, carinho e admiração, chegou, depois desta fase mais difícil, de internamentos complicados, e processos muito difíceis; a escrever uma notável obra poética, tão clara e visual, que sempre admirei pela forma como as palavras cortavam o ar. Depois da tenebrosa travessia pelos infernos da perdição, nunca de problemas duros e pesados, segundo me contou; mas sim de uma relação proibida com o álcool; chegou a tirar um curso de Inglês na Escola Superior de Educação de Portalegre, e não estou já bem certo se não chegou mesmo a lecionar.

Ultimamente tenho notado, com grande mágoa, que o seu estado de saúde se tem estado a agravar, e de cada vez parece mais que vive num mundo isolado, só seu, que por mais que o queiram ajudar, se fecha sobre si mesmo, e fica impenetrável.

Não creio que no dia 5 de Dezembro, muitos mais se tenham lembrado de o abraçar para o felicitar pelo seu aniversário.

A alegria correspondida com que me olha sempre, comove-me sem chorar.

 

l)     João Sobreiro

Foto clássica do pai, com a sua companheira de sempre...

De figuras da terra, claro que não poderia passar por esta, que obviamente não poderia ter  outro lugar, senão este, o derradeiro. O João Sobreiro foi um verdadeiro cometa negro, como a célebre banda albicastrense a que pertenceu, que marcou a sua juventude e de toda a região. Escrever sobre o ser que me deu a vida, e sinto que me corre ainda hoje nas veias, é duro e doce ao mesmo tempo, é libertador e recompensador, é justo mas com sabor a injustiça, como foi o seu desaparecimento.

Figura muito popular em Castelo Branco nos anos 60, filho do tal ferroviário que chegou a chefe daquela estação, depois da Beirã, e até de Valência de Alcântara, onde se reformou como inspetor; nunca foi um apaixonado pela escola.

Viveu a década quente do século passado em alta rotação, quase com o estatuto de estrela pop/rock, estrelando nos bailes de finalistas da região, tendo tido o seu auge num concurso de música moderna portuguesa no Monumental, em Lisboa, que perderam apenas para os “Sheiks”, do Paulo de Carvalho. Abandonou a ribalta quando teve de partir para uma guerra ultramarina que não compreendia, e chegou a doar a sua estimada bateria Ludwig, que ostentava sempre como grande relíquia, por ser igual à do Ringo Starr, dos Beatles, um dos seus ídolos; não esperando regressar.

Nunca tendo brilhado nas aulas, apesar da belíssima caligrafia e da técnica de desenho que nunca explorou convenientemente, no meu entender, foi cumprindo os minímos para prosseguir. Quando voltou de além-mar, aceitou o convite de emprego do seu tio/padrinho João Dinis Carita, como ajudante de despachante, e fixou-se na Beirã, para onde trouxe a sua então namorada, depois mulher, a idanhense Alzira Ereio. A Beirã naquela atura era então uma terra de pleno emprego, onde se sabia que as pessoas que dependiam dos serviços viviam bem, se respirava saúde social, e se fomentava uma frondosa vida comunitária.

O João Sobreiro afirmou-se então, como um homem que sabia estar e, sobretudo, alguém ao lado do qual se estava bem, junto do qual havia boa disposição e alegria de viver. Sempre acompanhado com a sua viola acústica, que levava para todo o lado, e lhe permitia abrir alas em qualquer lugar, a confraternizar com os seus amigos (cartadas, sueca e truco; e matraquilhos, eram o seu forte), que eram sempre muitos; o João fazia a festa. Fosse depois de uma caçada, numa jantarada, numa tarde/noite de bola, a seguir o seu Sporting; ou noutra festa qualquer, poderiam haver muitos a dar nas vistas, mas nenhum com a sua forma exuberante e sincera.

Para quem não o conhecesse, poderia parecer um bom-vivant, talvez vago, até; mas quem soubesse bem como era, saberia bem destacar em si, os aspetos menos conhecidos de bom leitor, do amante de palavras cruzadas, de apaixonado de cowboyadas, em livro, ou cinema.

Dono de um coração puro que poucos conheciam (as farras e os excessos eram sempre um assunto muito mais apetecível), tinha gestos e pormenores que jamais esquecerei, como depois de a sua mãe, a minha querida avó Joaquina, ter falecido; após diversas idas ao hospital de Portalegre para tentar debelar o seu sofrimento, me ter vindo oferecer numa caixinha pequenina de plástico de ourivesaria, que sei que ainda tenho em minha casa algures, com alguns dos seus cabelinhos brancos caídos nas viagens, no banco do nosso Peugeot 205 vermelho.

Há 25 anos atrás não havia bombeiros, não havia VMER, não haviam prontos socorros imediatos, Portalegre ficava sempre longe demais, e aquela indisposição matinal, por vezes frequente, sempre recuperável, parecia que haveria de passar. Mas infelizmente não passou, e assim ficou uma viúva guerreira que teve de refazer a sua vida, começar tudo de novo na escola básica integrada de Santo António, reintegrada no mercado de trabalho por concurso, longe do seu serviço, que entretanto fechara, para assim conseguir que um filho universitário conseguisse terminar os estudos superiores; e que o outro, que ainda estava no início da sua escalada académica, conseguisse um lugar ao sol, terminando o seu também.

Do João ficou a saudade imensa, diária, dolorosa, enquanto eu durar; e a ânsia silenciosa de um dia conseguirmos voltar a dar um abraço dos nossos, daqueles que dávamos quando me queria premiar sempre que sabia que tinha alcançado um sucesso escolar, e onde ficávamos ali assim, colados, apertados, a suster a respiração, sem nada dizer, ambos a sentirmo-nos a transbordar de orgulho.

Tenho tentado ser um bom menino, pai.

Onde quer que estejas, um dia, que oxalá esteja longe, por haver sempre tanto a fazer por aqui, vou ver de ti.