domingo, 14 de dezembro de 2014

Um dia difícil

Da janela onde passei uma infância e da qual nunca mais vou olhar...

A minha Leonor, de 13 anos, ontem viu o post que eu estava a fazer no facebook e disse: “valha-me Deus!”
“Valha-te Deus porquê?, Leonor.  És parva?”
“Ó pai, valha-me Deus porque o facebook não é para esses testamentos…”

Se não é para estes testamentos, agora aqui, a sós, em casa como eu gosto e mereço estar, sozinho comigo mas com o espaço todo da minha tasca virtual, posso dizer o que me vai na alma. É aqui que me confesso. É aqui que me encontro. É aqui que me descubro.
Isto é público?
Não interessa. Quero lá saber se o psicólogo tem um altifalante atrás da cadeira, para a praça toda ouvir. Eu sou transparente. Não tenho espelhos. Só vidros, porque sei bem o que vai cá dentro.

Manhã difícil. Dizem que os homens não têm medo. Mas eu estava com medo de fazer isto e de voltar àquela casa. Ainda assim, alguém tinha de ir “despejar” os últimos monos antes de uma senhora lá ir limpar a casa que sempre foi a da Cali, para que possa ser entregue antes do final do ano, que já está pago e será o último para sempre.

Uns não podem (mesmo que quisessem, que eu sei que querem), outros não estão cá (infelizmente para tudo), outros têm de trabalhar e têm mais de fazer até porque esta guerra não é a deles, outros liminarmente não querem e… o Pedro Sobreiro teve assim de se encontrar a sós com o passado e fazer uma pega de caras a esse animal pesadíssimo. Trabalho muito pesado. Não pelo esforço físico mas por ter percebido mais uma vez que as casas não são quatro paredes e um telhado. As casas têm vida, as casas têm-nos lá dentro e estão dentro de nós. Cada prateleira que tirava da parede, cada azulejo que tocava, cada armário que abria, cada até autocolante que me aparecia no chão vindo sabe-se lá de onde, que até o pensava há muito desaparecido, mexiam comigo, faziam-me suspirar e fechar os olhos.

Eu já sabia, porque já pensei muito nisso, que os passos mais importantes da nossa vida têm de ser feitos a sós. Nós sozinhos. Quando se nasce e quando se morre, por mais acompanhados que estejamos, seremos sempre nós a darmos o primeiro ou o último suspiro. É assim e nada há que possa ser feito para combater e alterar.

Quanto à casa… eu sou aquilo, eu sou ali também e tive de voltar e respirar tudo outra vez. A aparelhagem, a marquise da cozinha onde passávamos as tardes à braseira (eu, a avó Joaquina, a Maria e a Cali), o sítio onde estavam as galinhas e ia buscar os ovinhos pela mão da minha avó para comer a gemada quando ainda estavam quentinhos, o forno feito pelo primo Zé onde assávamos os cabritos a lenha na Páscoa

Tudo outra vez.

Olhei Marvão e não se via.

Deixei todos os detergentes, lixivias, vassouras e esfregonas prontos a atuar numa casa já em condições de ser entregue para ser limpa. Tudo feito com cabeça, tronco e membros. Como eu gosto.

Encontrei-me com uma vizinha querida da minha rua que me conhece desde bebé e me disse: “ai o Pedro… Sempre o Pedro… Então o que andas a fazer?”

Expliquei e disse-lhe: “Vizinha, nós temos sempre que fazer o que a nossa consciência manda. A mim não me importa o que os outros pensam. Pode-me influenciar e levar a pensar, se as pessoas estiverem próximas e me quiserem bem, mas não me obriga em nada. Tenho de pensar que eu é que sei. Posso estar errado. Mas também sei pedir desculpa porque ninguém é perfeito e eu conheço as minhas fraquezas melhor que ninguém.”

Sentia-me mal, em baixo por tudo o que passei nesse dia e ela, já sem marido e sem o único filho que tinha, que perdeu sem nunca lhe ter dado netos, contou-me que ainda há dias mandou pintar a casa toda e arranjar tudo. Isto a propósito de se ter de fazer o que se tem de fazer.
“Tu ainda tens as tuas filhas e a tua mulher, filho. E eu?”, e continuou a subir a rua, para ir almoçar sozinha, naquela casa que “em tempos tudo pareceu pequeno e agora…”

A vida não é fácil e a porra é que nem sequer tem um livro de instruções onde um gajo possa ir ler o que dizer em determinada altura. Ou então ficar calado.


Dia difícil.

87-88. Desenho de Henrique Batista
A contestatária a sair de C(um castelo) de Vide. Era finalista. Estava a acabar e a sair.
Nunca mais vi este autocolante que me apareceu hoje nas mãos do nada. Lembrava-me perfeitamente dele.
Como se o tivesse visto ontem. Há 26 anos. Um papel trouxe as memórias da noite em Pombal, da viagem ao Porto, de tantas memórias... um papel no chão trouxe isto tudo.

Aqui as tardes. Lá em baixo, as galinhas




Um esquecido que foi transferido... para minha casa

Tantos e tão bons assados...


Está lá sempre...

Estante de madeiras atadas com corda, creio que feito pelo meu pai.
Lavado e tratado sei que servirá a quem o dei.

A minha marca no cimento feita com a roda da biciclete.
O PEDRO já desapareceu. Mas valeu um ralhete


Elas riram-se mas eu gosto muito do meu enfeite novo de Natal.
Diz-me muito.

Do sempre duro regresso à minha Beirã, parei na casa do meu amigo Tó para lhe entregar dois cds que lhe prometi, com a dedicatória: "para o grande poeta, meu amigo António Gonçalves." O mundo pequenino da Deolinda e o novo e fantástico regresso dos U2. Em pijama entrou em êxtase. “Calma António. Eu disse que vinha cá, não disse?”

Ficou radiante e por força que me queria oferecer dvds, livros, filmes... “escolhe aí das prateleiras…”
“Tó, olha para mim, eu só te quero dar os discos e um abraço. Dá cá um abraço.”
“Epá, tá bem mas leva lá um cd que te vou buscar…”

E ofereceu-me ao calhas (ou talvez não porque eu não acredito em acasos) o cd que ouvi em disco até à exaustão e marcou a minha vida porque me fez perceber que as músicas não são só sons engraçados para se dançar. Também podem ensinar muito sobre a vida e esta, deste disco, marcou-me para sempre.


A Leonor viu o cd no carro e levou-o para o quarto. Obrigado António. Quem dá… recebe a dobrar.




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