Da janela onde passei uma infância e da qual nunca mais vou olhar... |
A
minha Leonor, de 13 anos, ontem viu o post que eu estava a fazer no facebook e
disse: “valha-me Deus!”
“Valha-te
Deus porquê?, Leonor. És parva?”
“Ó
pai, valha-me Deus porque o facebook não é para esses testamentos…”
Se
não é para estes testamentos, agora aqui, a sós, em casa como eu gosto e mereço
estar, sozinho comigo mas com o espaço todo da minha tasca virtual, posso dizer
o que me vai na alma. É aqui que me confesso. É aqui que me encontro. É aqui
que me descubro.
Isto
é público?
Não
interessa. Quero lá saber se o psicólogo tem um altifalante atrás da cadeira,
para a praça toda ouvir. Eu sou transparente. Não tenho espelhos. Só vidros,
porque sei bem o que vai cá dentro.
Manhã
difícil. Dizem que os homens não têm medo. Mas eu estava com medo de fazer isto
e de voltar àquela casa. Ainda assim, alguém tinha de ir “despejar” os últimos monos
antes de uma senhora lá ir limpar a casa que sempre foi a da Cali, para que
possa ser entregue antes do final do ano, que já está pago e será o último para
sempre.
Uns
não podem (mesmo que quisessem, que eu sei que querem), outros não estão cá
(infelizmente para tudo), outros têm de trabalhar e têm mais de fazer até
porque esta guerra não é a deles, outros liminarmente não querem e… o Pedro
Sobreiro teve assim de se encontrar a
sós com o passado e fazer uma pega de caras a esse animal pesadíssimo. Trabalho
muito pesado. Não pelo esforço físico mas por ter percebido mais uma vez que as
casas não são quatro paredes e um telhado. As casas têm vida, as casas têm-nos
lá dentro e estão dentro de nós. Cada prateleira que tirava da parede, cada
azulejo que tocava, cada armário que abria, cada até autocolante que me
aparecia no chão vindo sabe-se lá de onde, que até o pensava há muito
desaparecido, mexiam comigo, faziam-me suspirar e fechar os olhos.
Eu
já sabia, porque já pensei muito nisso, que os passos mais importantes da nossa
vida têm de ser feitos a sós. Nós sozinhos. Quando se nasce e quando se morre,
por mais acompanhados que estejamos, seremos sempre nós a darmos o primeiro ou
o último suspiro. É assim e nada há que possa ser feito para combater e alterar.
Quanto
à casa… eu sou aquilo, eu sou ali também e tive de voltar e respirar tudo outra
vez. A aparelhagem, a marquise da cozinha onde passávamos as tardes à braseira
(eu, a avó Joaquina, a Maria e a Cali), o sítio onde estavam as galinhas e ia
buscar os ovinhos pela mão da minha avó para comer a gemada quando ainda
estavam quentinhos, o forno feito pelo primo Zé onde assávamos os cabritos a
lenha na Páscoa …
Tudo
outra vez.
Olhei
Marvão e não se via.
Deixei
todos os detergentes, lixivias, vassouras e esfregonas prontos a atuar numa
casa já em condições de ser entregue para ser limpa. Tudo feito com cabeça,
tronco e membros. Como eu gosto.
Encontrei-me
com uma vizinha querida da minha rua que me conhece desde bebé e me disse: “ai
o Pedro… Sempre o Pedro… Então o que andas a fazer?”
Expliquei
e disse-lhe: “Vizinha, nós temos sempre que fazer o que a nossa consciência
manda. A mim não me importa o que os outros pensam. Pode-me influenciar e levar
a pensar, se as pessoas estiverem próximas e me quiserem bem, mas não me obriga
em nada. Tenho de pensar que eu é que sei. Posso estar errado. Mas também sei
pedir desculpa porque ninguém é perfeito e eu conheço as minhas fraquezas melhor que ninguém.”
Sentia-me
mal, em baixo por tudo o que passei nesse dia e ela, já sem marido e sem o único
filho que tinha, que perdeu sem nunca lhe ter dado netos, contou-me que ainda
há dias mandou pintar a casa toda e arranjar tudo. Isto a propósito de se ter
de fazer o que se tem de fazer.
“Tu
ainda tens as tuas filhas e a tua mulher, filho. E eu?”, e continuou a subir a
rua, para ir almoçar sozinha, naquela casa que “em tempos tudo pareceu pequeno
e agora…”
A
vida não é fácil e a porra é que nem sequer tem um livro de instruções onde um
gajo possa ir ler o que dizer em determinada altura. Ou então ficar calado.
Dia
difícil.
Aqui as tardes. Lá em baixo, as galinhas |
Um esquecido que foi transferido... para minha casa |
Tantos e tão bons assados... |
Está lá sempre... |
Estante de madeiras atadas com corda, creio que feito pelo meu pai. Lavado e tratado sei que servirá a quem o dei. |
A minha marca no cimento feita com a roda da biciclete. O PEDRO já desapareceu. Mas valeu um ralhete |
Elas riram-se mas eu gosto muito do meu enfeite novo de Natal. Diz-me muito. |
Do
sempre duro regresso à minha Beirã, parei na casa do meu amigo Tó para lhe
entregar dois cds que lhe prometi, com a dedicatória: "para o grande poeta, meu
amigo António Gonçalves." O mundo pequenino da Deolinda e o novo e fantástico
regresso dos U2. Em pijama entrou em êxtase. “Calma António. Eu disse que vinha
cá, não disse?”
Ficou
radiante e por
força que me queria oferecer dvds, livros, filmes... “escolhe aí das
prateleiras…”
“Tó,
olha para mim, eu só te quero dar os discos e um abraço. Dá cá um abraço.”
“Epá,
tá bem mas leva lá um cd que te vou buscar…”
E
ofereceu-me ao calhas (ou talvez não porque eu não acredito em acasos) o cd que
ouvi em disco até à exaustão e marcou a minha vida porque me fez perceber que
as músicas não são só sons engraçados para se dançar. Também podem ensinar
muito sobre a vida e esta, deste disco, marcou-me para sempre.
A
Leonor viu o cd no carro e levou-o para o quarto. Obrigado António. Quem dá…
recebe a dobrar.
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