Definição de
crooner (nome) – Um cantor, normalmente masculino, que canta numa voz doce, suave
e baixa.
O
Serviço estava cheio de contribuintes, habituados a subir a Marvão e verem ali esclarecidas
todas as suas dúvidas, fossem elas relacionadas com rendimento, património,
justiça tributária ou qualquer outra cobrança. Ali têm pela frente dois homens
que têm de ser médicos de clínica geral, que têm de saber um pouco de todos os
impostos e ali, de imediato, ao balcão, terem de ter uma resposta cabal, capaz
de os satisfazer.
Só
estou na casa há 16 anos, mas ainda me lembro bem do tempo em que em Marvão, éramos
bem mais de 6 para conseguir chegar a todos os que se nos visitavam, mas agora
os computadores… bem, mas isso é uma velha, profunda e longa questão que não a
que me trouxe aqui hoje.
Dizia
eu que a sala estava cheia de gente para atender, cobrar e o telefone não se
calava. Até que numa dessas muitas chamadas, o meu chefe se virou para mim e
disse: “Pedro, é para ti. É o Tó” (que já é por ele conhecido, por ser um cá
dos meus).
“Vou
já!, disse baixinho e algo aborrecido porque já lhe tinha explicado que ali era
o meu lugar de trabalho e…”.
Depois
de atender quem estava em mãos, aproximei-me já com a estratégia montada na
cabeça que passaria por lhe explicar isso, que temos muito serviço, que somos
poucos, mas antes que tivesse tempo para fosse o que fosse, do outro lado ouvi
um…
-
MAAAAAAAAAAANNNNNNNNNNNNNNNN! Estás fixe ? Ouve, tenho uma cena para te contar.
Estou muuuuuiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiittttttaaaaaa bem. A vida corre-me 5
estrelas! O meu pai e a minha mãe estão a recuperar bem. (Ele de um AVC e ela de um
problema qualquer também grande de saúde). Ele já vai a Santo António a conduzir, a
comprar ao Rui Boto, o jornal desportivo para ler as notícias do Sporting e têm
ido à fisioterapia. Estão aqui na Anta a receber apoio. Eu também como de lá.
Sou muita bem servido e estou muita bem. Só como dieta.
(…)
-
Caminho Muito. Todos os dias vou aos Barretos a beber café (1,5 km para cada lado).
(…)
-
Não me falta tabaco. Tenho muito tabaco. O meu o pai compra-me uns pacotes no
Rui Boto e tenho sempre que fumar.
(Tudo
isto de uma assentada só, sem eu conseguir dizer fosse o que fosse e já
mostrando algum comprometimento por não poder dar mais atenção às pessoas. 3 ou
4 minutos que pareciam horas.)
- Ouve man, crooner, sabes porque é que te
estou a ligar? Peciso que me arranjes uns cds. Não tenho música nova. E tu, de
certeza que tens muita música.
-
Ó Tó… essa cena dos cds já foi chão que deu uvas. Agora a malta não compra
fisicamente os cds e ouve-os em aplicações da net ou em podcast. Eu tenho umas
largas centenas de cds que comprei ao longo dos anos, mas estão no sótão,
arquivados/encaixotados…
- ERA ESSES! PARA EU OUVIR QUANDO ESTOU A
ESTUDAR CIÊNCIA MODERNA!
-
Ciência moderna?!?!?
-
Ouve man! Tenho que te introduzir à ciência moderna. A ciência moderna tem um
pouco de tudo: filosofia, psicologia, epistesmologia, estudo da razão pura.
-
Mas…
-
Eu sei que tu nunca tens tempo de ler. Nem para os filmes que tanto adoras tens
tempo. É só família, as tuas cenas da internet, mas tens de ler isto! Ouve-me
bem, estou nas 7 quintas. Acordo bem cedo, começo a estudar, vou andar aos
Barretos e beber café e… vou lendo, tirano apontamentos e… só me falta a
música! Quando é que me arranjas? Preciso mesmo!
-
Eh Tó… eu levei os cds que colecionava todos para o sótão e tenho lá do rock ao
clássico, coletâneas que fiz com o meu irmão, blues, pop, jazz, muito indie…
-
Mas quando é que me trazes?!?!?!?
-
Ó companheiro… assim que tiver tempo de lá ir procurar… Eu prometo. Vá Tó, fica
bem e aquele abraço. (Senão nunca mais me desmarcava e não saia mais dali)
Pois
tive mesmo de arranjar tempo e consegui selecionar 30, 40? cds que meti num
saco de plástico forte e na bagageira do meu Kaguincha Twingo, para lhe ir
levar á Beirã, assim que possível.
Ele
bem perguntava quando seria, mas essa voragem dos tempos de que costumo falar,
fez com que a semana ou os 15 dias que eu tinha imaginado, se tivesse
prolongado por tempo a mais, mas nunca mais do dobro.
Eu
gasto o tempo todo a viver. Sei que não o aplico mal, mas gasto-o. Família,
Trabalho, Família, os meus hobbies (blogue, facebook, comunidade virtual),
Família, sem cinema e pouco ou nenhum som.
E
numa manhã destas, há duas semanas, maios ou menos, ia eu para cima, eram
8.35h/8.40h e depois da curva do infantário, sai-me uma aventesma muita grande,
de barba, calções e t-shirt, a pedir boleia de braços abertos. Mandava parar
todo e qualquer carro, mas… todos se desviavam.
“Cruzes!
É o Tó!”, pensei.
Encostei
de imediato e abri o vidro: -“foi o senhor que pediu uma limusine para Marvão?”
-
PEDRO!!!! Meu grande amigo! Calha mesmo bem, man! Deixa aí entrar.
-
Deixa-me adivinhar: tu pediste os discos na semana passada, eu disse que ia lá
nesta semana. Sabia que não podia ir lá nesta quinta porque o enfermeiro ia lá
dar-te a injeção para a bipolaridade, já hoje é sexta e tu pensaste: bom,
passa-se a semana e aquele cabrão não me vem cá trazer o que me prometeu.
Levantaste-te hoje e pensaste: vou-me a ver dele!
-
Isso!
-
Sou quase vidente. Se acabarem com as finanças e tiver de ir ver de vida,
arranjo uma tenda dos marroquinos, vou comprar uma bola de cristal à feira da
ladra, e faço-me à vida!
-
“Tenho tudo orientado”,
disse ele. “Quem me deu boleia até aqui a cima desde a Beirã, foi o Luís da
Estrelinha (vice-presidente da câmara que nunca se livrou dessa alcunha
entre as crianças que foram seus pares. Teria sido muito mais fácil para mim
ter sido o filho do João Sobreiro, mas consegui sempre impor-me por mim).
Como mora aqui, estou à boleia. Vou contigo para cima e calha mesmo bem. Mesmo
bem. Era contigo que ia ter. Ouve, vou levar os discos…
-
Epá, mas são muitos e pesados…
-
Não faz mal. Não tenho presssa. Vou mesmo na minha. Se os carros pararem para
me dar boleia (o que acho difícil. Muito
difícil, digo eu), eu digo que não quero ir porque vou na minha. A minha mãe fez-me o
almoço que trago aqui. Duas sandes impecáveis e está tudo a correr bem. Agora,
se faz favor dás-me dois euros para beber café aqui e outro nos Barretos. Bom,
vamos lá fazer a troca porque eu tenho aqui uns livros para te oferecer.
-
Eh Tózinho, mas eu não ten…
-
Lês só uma página antes de dormir. Vais ver que dormes melhor. Não é uma
leitura assim séria, estudiosa, como se fosse um trabalho, como eu faço, mas é
uma leitura.
Chegados
ao alto, disse-lhe: “vamos lá acima ao serviço para fazermos a troca e não
estarmos aqui como ciganos na rua. O meu chefe é um fixe e não há espiga.”
Demoramos minutos. Assim foi.
Dei-lhe
só um lamiré do som que lhe passava e ele deu-me os livros. Mas que não se
pense que eram livros quaisquer. Obras recentes, de Junho de 2016, numa 1ª edição,
com preço de amigo da FNAC. Juro que não sei onde é que esta alma vai buscar as
referências. Mas irei certamente lê-los. Promessa a mim próprio.
- “De Primatas a Astronautas”, de Leonard Mlodinow, com um chamariz de Stephen
Hawking, esse mesmo, o génio encadeirado: “Mlodinow nunca falha na tarefa de
tronar a ciência tão acessível quanto divertida.”
Hum…
promete!
-
“Cometa”, de Carl Sagan e Ann Druyan, 2ª edição de Abril de 2014.
Obras
cheias de apontamentos, índices, notas e recortes. Mas onde é que este homem
tem a cabeça? E onde é que a gente que pensa nele, se é que pensa, pensa que
ele a tem?
Habitue-me
a admirar o Tó Gordo, era assim que o conhecíamos, porque era mesmo anafado,
desde que me lembro. Dono de uma inteligência rara, foi sempre idolatrado por
todos os pais da pequena aldeia onde nasci, por ser um exemplo de filho.
“Mete
os olhos no Tó!”, “Havias de ser assim” eram paragonas que se ouviam por toda a
Beirã, um pouco por todas as casas.
Um
par de anos mais velho que eu, um bom par de anos, uma década?, já ia distante
quando eu comecei a ganhar consciência. Ele já fazia a barba, andava de colete
e cabelo pelos ombros quando eu comecei a fazer xixi no urinol dos grandes.
Num
nosso tempo onde os miúdos bons daqui, do concelho, de agora, arranjam empregos
lá fora (Seguros, Miguel Miranda) e dão aulas no estrangeiro (Arquitetura, Rui
Pinto), o Tó foi um dos primeiros a desbravar esse caminho para Lisboa. E logo
para estudar Filosofia, creio que na Clássica.
Filho
único de uma família tipo da Beirã (pai guarda-fiscal; mãe doméstica), sempre
viveu num lar honrado, de pessoas muito respeitadas, honestas, trabalhadoras.
Miúdo nada problemático, com uma forma de pensar muito alternativa, sempre foi
muito católico e lembro-me da sua ida a Taizé. Eu também queria ter uma cruz daquelas,
em forma de pomba. Eu também queria ter sido assim.
Em
Lisboa, o Tó perdeu-se. Cortou-se o vínculo, sei lá como. Mas por deslumbre ou
más influências, entrou na vida alternativa. O álcool e as drogas apoderaram-se
dele. Deixei de ter notícias. Deixei de o ver e de saber dele.
Certo
dia fui a Lisboa com os meus pais, de comboio e em Santa Apolónia
encontrámo-lo. Fortuitamente. Recordo-me de ter visto a minha mãe chorar, pelo
choque de o ter visto assim desarranjado. Não sei se estaria dentro de si e que
discurso deu, mas estaria certamente muito longe do Tó da Beirã que todos
conhecíamos.
Soube
por amigos e vim a saber por ele depois também que o Tó chegou a ser uma figura
do Bairro Alto, daquelas típicas, características, como a velha do “pontapé na
cona!”
Só
soube que estava de regresso quando me apercebi que se tinha passado completamente.
Do tipo andar despido, ofender a mãe e todo nú a fugir em Portalegre, de uma
vez que o levaram para o hospital.
Nesse
entretanto, os anos também foram passando por mim. Casei-me, nasceu-me uma
filha e comecei a ir frequentando o quarto do Tó. Sempre com um som de fundo,
sempre com o seu hábito de escrita e com o seu bom trato e educação.
Li
os poemas dele que adorava, e me maravilhavam pela arte da escrita por imagens,
sempre com um Mário Cesarini e um Herberto Hélder como ídolos, por trás.
Noites
em que ouvimos, dissecámos e escamoteámos o FMI do José Mário Branco. Quem nos
haveria de dizer então que haveria de voltar…
“Vamos
então beber o cafezinho?”, perguntou naquela manhã, em jeito de quem já estava
a dever tempo à estrada, que havia-de caminhar a seguir.
Um
café, um cigarro, dois homens a falar como rezava cada um a Deus à noite, e na
importância de sabermos agradecer cada dia, como se fosse o último. Porque a
vida é uma bênção e porque a sua consciência nos faz limpar de muitos
artifícios nocivos que teimam em afastar-nos daquilo que é essencial e
verdadeiramente importante.
Disse-me, seguro e confiante: "Estou muito mais magro. Só como dieta. Não se nota?" - Porra Tó... Ainda bem que me dizes isso. Já temia que não estivesses bem de saúde" |
Vi-o
descer a calçada, com o saco com o farnel que a mamã lhe aviou e os discos que
o amigo lhe emprestou. A vida é efémera. Na realidade, não valemos mais do que
aquilo que somos, sentimos, respiramos, vivemos no momento.
Fui
feliz naquela manhã, diferente de todas as outras.
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