Eu
sempre sonhei foi ser jornalista. Foi passar a vida a escrever, a viver do
dinheiro que ganhava com as minhas palavras, a viajar, a conhecer mundo e
pessoas, a conversar e descobrir o fascínio que vive dentro delas. Se me tivessem
dito, quando eu ia a caminha de Lisboa, entre 91 e 95 (há 22 anos atrás?!?!?),
a tirar as cartas do míster, para poder ser credenciado, que haveria de fazer
carreira nas finanças, ainda por cima, no meu concelho… junto à casa de onde
saí, o mais natural era ter-me atirado para debaixo de um dos muitos elétricos,
que varriam as linhas na Junqueira, bem à porta do antigo palácio Burnay,
frente à antiga F.I.L., que albergava o Instituto Superior de Ciências Sociais
e Políticas.
No
entanto, tanto que estudei e trabalhei para estar onde estou hoje. Todos os
dias, antes de sair do meu serviço, olho para trás, para o lugarinho onde me sento,
e agradeço à providência: o ainda cá estar, e estar ali, num porto seguro, de
abrigo, que me permite olhar para as minhas obrigações, económicas e familiares,
com segurança.
Eu
gosto muito de trabalhar onde trabalho. Sobretudo porque trabalho em contato
com o público, que é a coisa que gosto realmente de fazer: relacionar-me com os
demais. Depois, porque a minha área de trabalho é muito abrangente. Como eu
costumo dizer, ao contrário de muitos colegas de cidades ou superfícies
maiores, que têm de se especializar num imposto e só se dedicar a ele, nós ali,
somos médicos de clínica geral. Temos de saber mexer em todos eles, e isso
constitui um dos grandes fascínios de estar ali. Do rendimento (IRS, IRC, IVA) ao
património (IMI, IMT, SELO), passando pelo sempre trabalhoso e meticuloso atendimento
ao balcão, passando pela exigente tesouraria, cada dia é sempre um dia diferente.
Tanto podemos ter uma manhã tranquila, onde podemos dar seguimento à
calendarização de tarefas que tínhamos programada; como podemos ter uma tarde,
em que nos aparece um dos muitos solicitadores da área, com um trabalho de
maior monta; ou um dos muitos ingleses que ali acorrem, nem que seja para pedir
ajuda a um sítio, onde podem falar inglês à vontade, que sabem que serão entendidos.
Eu
sou um humanista, um cristão, e como consciente dessa minha condição, sei que
trabalho para o Estado e a máquina fiscal que me paga, mas gosto sempre de dar
prioridade e privilegiar o ser humano que tenho à minha frente. O Estado somos
nós. Não o que tolerou o Banco Português de Negócios; a Sociedade Lusa de
Negócios que extorquiu , esbanjou, chulou (todos nós); ou as artimanhas do
senhor engenheiro José Sócrates, que tem preso há tanto tempo, sem uma acusação
sequer formalizada, e ainda vai ter de indemnizar por isso. E é por eu ser
assim, que já tive chefias que me davam o toque que “isto aqui não é a Santa
Casa da Misericórdia”, embora eu, calado, tivesse sempre a minha batuta bem
definida. Não facilitando, em nada favorecendo, mas desmistificando a máquina
fiscal, o Estado “mau”, que não é “mau”, mas que para sobreviver, tem de ser
pago por todos nós. Inclusive, nós. Só assim me poderia sentir à vontade quando
há artistas que lá entram, a fim de pagarem o imposto de circulação do seu
automóvel, e mandam para o ar a laracha: “vim cá dar-vos o vosso subsídio de
férias”.
Assim,
quem nos aparece à frente podem ser os recém-chegados do estrangeiro, um dos
tantos locais que vai declarar um óbito, ou uma fatura; como alguém que vem de
fora.
Estes,
de que aqui falo hoje, eram de fora. Mas não eram um casal, apesar de serem
homem e mulher. Pelo formato muito idêntico, pela volumetria, pela idade, pelos
perfis, deveriam ser irmãos. Confirmei assim que me perguntaram, como poderiam participar
o óbito do pai. Ao saber que eram de longe, sei que os tranquilizei quando lhes
disse que poderiam fazê-lo aqui, como em qualquer outro serviço da Autoridade
Tributária, espalhado pelo país. O pai, que era de cá, foi aqui agora enterrado,
mas tinha a residência na casa alternada de um deles, e isso baralhava-os.
Expliquei-lhes que o serviço responsável, era de fato, o da área onde estava averbado
o domicílio, à data do óbito. Mas disse-lhes que fazendo a participação aqui,
nós temos circuitos internos de comunicação, que nos permitem levar “a carta a
Garcia”.
Disse
que nos podíamos sentar, para estarmos mais confortáveis (o processo ainda pode
levar algum tempo), mas preferiam ficar de pé. Não seria para crescer, porque
eram belos exemplares da espécie humana, e já deveriam andar na casa dos largos
cinquentas, mas assim preferiram.
Ali
foram avançando os documentos que fui pedindo, e dando os inputs necessários
para instruir a declaração. Ali, lado a lado, mano a mano, enquanto eu escrevia
e fazia o trabalho dentro do balcão, em silêncio, estiveram os dois, sós, como
há muito certamente não estavam. Uma situação, por certo, constrangedora. Para
eles, e para mim. Participar o óbito de um progenitor, é sempre um momento de
grande pesar. Pela vida que se perdeu, pela importância que teve para as suas
vidas (poderem existir), e porque é um prenúncio que, o próximo fim, pela lógica
da vida, poderá e deverá ser o seu.
Tenho
a sorte de poder ter um pequeno rádio no serviço, a fazer-me companhia,
baixinho. Na minha rádio de sempre, ouço as notícias, o tempo, e a nossa música
de hoje, que quebra o gelo do silêncio, e aquece os dias.
Neste
cenário, dos dois de pé ao balcão, e eu ao computador, começou a tocar esta
música, verdadeiramente assombrosa.
Assombrosa
porque, o Agir é um puto notável. Apesar de ser de ascendência aristocrática na
música portuguesa (não é filho do Paulo de Carvalho quem quer), escolheu sempre
o caminho mais difícil para assumir o seu talento, e renegou o nome do
progenitor, para se afirmar num nome estrangeiro? Compõe o que canta, é músico
com todas as letras (e notas), e tem um visual, que marca! Porque não se limita
por preconceitos, nem por falsas ilusões. É… o que é.
Nunca
tive curiosidade de arranjar e ouvir o seu disco, mas vou ouvindo por aí, e simpatizo
imenso com esta postura. Isso faz com que mesmo as suas músicas que não me
engracem tanto, me mereçam sempre uma segunda e uma terceira leitura. Algo que
esta… dispensa. Poderosa! Poderosa em tudo. Para a abrilhantar, foi descobrir
uma das vozes mais bonitas e envolventes de Portugal.
Nesse
dia, estando sós (o chefe fazia o habitual trabalho de chefia, supervisão,
acompanhamento, quando há mais gente), e criou-se ali um momento estranho em
que parece que todos três estávamos a prestar atenção à música, no segundo
ouvido. A eles, deverá ter batido de uma forma diferente, pelo momento, pelo
que faziam, pelo tanto que ficou por fazer em vida.
Já
eu digo, e com este momento reforcei, que a maior riqueza que há na vida, não é
o ouro, os diamantes, ou as jóias. A maior riqueza que nós, seres vivos, temos,
é o tempo. O tempo que ainda temos para viver. O tempo que nos resta, o que com
ele fazemos. E só quando somos sobressaltados por um desaparecimento como este,
ou lhe passamos a prestar verdadeira atenção, por motivo de se ver afunilado
por uma doença “daquelas”, passa a ser verdadeiramente considerado.
Nós…
efémeros, fortuitos, vagos, tendemos a agigantar-nos, a pensar-nos maiores que
aquilo que realmente somos.
“Lembra-te
que é pó, e em pó te irás tornar”, diziam eles. Não deverá isto ser um fardo
pesado do destino, mas antes uma consciência que só nos pode permitir, ao pensarmos
nela, viver de uma forma mais despreocupada, mais leve (embora não vaga), mais
consciente, mais feliz.
A
vida é uma passagem para a outra margem.
Eu
até admito que possa estar enganado. Ninguém o saberá, até um dia, que todos
queremos longe, sob o ponto de vista de cada um. Mas se o estiver, a minha
profunda convicção que esta é uma história, muito fraca e falível, se terminar
nesta vida terrena, dá-me, quanto mais não seja, um benefício da dúvida, no
qual é muito mais feliz viver-se, do que quando não se acredita em nada.
(E é tudo uma questão de disposição, de abertura, de querer. A mais fácil é quando a vida se nos encarrega de ensinar o caminho, como foi no meu caso. Outra, é descendo da altivez humana de se achar vivo, dono de si, e cortar o cordão umbilical, dizendo que já que cá se está (neste mundo), não se precisa de acreditar em mais nada. Outra é lendo o(s) livro(s) sagrado(s), mergulhar na esssência de si. Ouvir-se...)
Sem comentários:
Enviar um comentário