segunda-feira, 28 de agosto de 2017

Quando a vida passa por nós...


Eu sempre sonhei foi ser jornalista. Foi passar a vida a escrever, a viver do dinheiro que ganhava com as minhas palavras, a viajar, a conhecer mundo e pessoas, a conversar e descobrir o fascínio que vive dentro delas. Se me tivessem dito, quando eu ia a caminha de Lisboa, entre 91 e 95 (há 22 anos atrás?!?!?), a tirar as cartas do míster, para poder ser credenciado, que haveria de fazer carreira nas finanças, ainda por cima, no meu concelho… junto à casa de onde saí, o mais natural era ter-me atirado para debaixo de um dos muitos elétricos, que varriam as linhas na Junqueira, bem à porta do antigo palácio Burnay, frente à antiga F.I.L., que albergava o Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas.

No entanto, tanto que estudei e trabalhei para estar onde estou hoje. Todos os dias, antes de sair do meu serviço, olho para trás, para o lugarinho onde me sento, e agradeço à providência: o ainda cá estar, e estar ali, num porto seguro, de abrigo, que me permite olhar para as minhas obrigações, económicas e familiares, com segurança.

Eu gosto muito de trabalhar onde trabalho. Sobretudo porque trabalho em contato com o público, que é a coisa que gosto realmente de fazer: relacionar-me com os demais. Depois, porque a minha área de trabalho é muito abrangente. Como eu costumo dizer, ao contrário de muitos colegas de cidades ou superfícies maiores, que têm de se especializar num imposto e só se dedicar a ele, nós ali, somos médicos de clínica geral. Temos de saber mexer em todos eles, e isso constitui um dos grandes fascínios de estar ali. Do rendimento (IRS, IRC, IVA) ao património (IMI, IMT, SELO), passando pelo sempre trabalhoso e meticuloso atendimento ao balcão, passando pela exigente tesouraria, cada dia é sempre um dia diferente. Tanto podemos ter uma manhã tranquila, onde podemos dar seguimento à calendarização de tarefas que tínhamos programada; como podemos ter uma tarde, em que nos aparece um dos muitos solicitadores da área, com um trabalho de maior monta; ou um dos muitos ingleses que ali acorrem, nem que seja para pedir ajuda a um sítio, onde podem falar inglês à vontade, que sabem que serão entendidos.

Eu sou um humanista, um cristão, e como consciente dessa minha condição, sei que trabalho para o Estado e a máquina fiscal que me paga, mas gosto sempre de dar prioridade e privilegiar o ser humano que tenho à minha frente. O Estado somos nós. Não o que tolerou o Banco Português de Negócios; a Sociedade Lusa de Negócios que extorquiu , esbanjou, chulou (todos nós); ou as artimanhas do senhor engenheiro José Sócrates, que tem preso há tanto tempo, sem uma acusação sequer formalizada, e ainda vai ter de indemnizar por isso. E é por eu ser assim, que já tive chefias que me davam o toque que “isto aqui não é a Santa Casa da Misericórdia”, embora eu, calado, tivesse sempre a minha batuta bem definida. Não facilitando, em nada favorecendo, mas desmistificando a máquina fiscal, o Estado “mau”, que não é “mau”, mas que para sobreviver, tem de ser pago por todos nós. Inclusive, nós. Só assim me poderia sentir à vontade quando há artistas que lá entram, a fim de pagarem o imposto de circulação do seu automóvel, e mandam para o ar a laracha: “vim cá dar-vos o vosso subsídio de férias”.

Assim, quem nos aparece à frente podem ser os recém-chegados do estrangeiro, um dos tantos locais que vai declarar um óbito, ou uma fatura; como alguém que vem de fora.

Estes, de que aqui falo hoje, eram de fora. Mas não eram um casal, apesar de serem homem e mulher. Pelo formato muito idêntico, pela volumetria, pela idade, pelos perfis, deveriam ser irmãos. Confirmei assim que me perguntaram, como poderiam participar o óbito do pai. Ao saber que eram de longe, sei que os tranquilizei quando lhes disse que poderiam fazê-lo aqui, como em qualquer outro serviço da Autoridade Tributária, espalhado pelo país. O pai, que era de cá, foi aqui agora enterrado, mas tinha a residência na casa alternada de um deles, e isso baralhava-os. Expliquei-lhes que o serviço responsável, era de fato, o da área onde estava averbado o domicílio, à data do óbito. Mas disse-lhes que fazendo a participação aqui, nós temos circuitos internos de comunicação, que nos permitem levar “a carta a Garcia”.

Disse que nos podíamos sentar, para estarmos mais confortáveis (o processo ainda pode levar algum tempo), mas preferiam ficar de pé. Não seria para crescer, porque eram belos exemplares da espécie humana, e já deveriam andar na casa dos largos cinquentas, mas assim preferiram.

Ali foram avançando os documentos que fui pedindo, e dando os inputs necessários para instruir a declaração. Ali, lado a lado, mano a mano, enquanto eu escrevia e fazia o trabalho dentro do balcão, em silêncio, estiveram os dois, sós, como há muito certamente não estavam. Uma situação, por certo, constrangedora. Para eles, e para mim. Participar o óbito de um progenitor, é sempre um momento de grande pesar. Pela vida que se perdeu, pela importância que teve para as suas vidas (poderem existir), e porque é um prenúncio que, o próximo fim, pela lógica da vida, poderá e deverá ser o seu.

Tenho a sorte de poder ter um pequeno rádio no serviço, a fazer-me companhia, baixinho. Na minha rádio de sempre, ouço as notícias, o tempo, e a nossa música de hoje, que quebra o gelo do silêncio, e aquece os dias.

Neste cenário, dos dois de pé ao balcão, e eu ao computador, começou a tocar esta música, verdadeiramente assombrosa.


Assombrosa porque, o Agir é um puto notável. Apesar de ser de ascendência aristocrática na música portuguesa (não é filho do Paulo de Carvalho quem quer), escolheu sempre o caminho mais difícil para assumir o seu talento, e renegou o nome do progenitor, para se afirmar num nome estrangeiro? Compõe o que canta, é músico com todas as letras (e notas), e tem um visual, que marca! Porque não se limita por preconceitos, nem por falsas ilusões. É… o que é.

Nunca tive curiosidade de arranjar e ouvir o seu disco, mas vou ouvindo por aí, e simpatizo imenso com esta postura. Isso faz com que mesmo as suas músicas que não me engracem tanto, me mereçam sempre uma segunda e uma terceira leitura. Algo que esta… dispensa. Poderosa! Poderosa em tudo. Para a abrilhantar, foi descobrir uma das vozes mais bonitas e envolventes de Portugal.

Nesse dia, estando sós (o chefe fazia o habitual trabalho de chefia, supervisão, acompanhamento, quando há mais gente), e criou-se ali um momento estranho em que parece que todos três estávamos a prestar atenção à música, no segundo ouvido. A eles, deverá ter batido de uma forma diferente, pelo momento, pelo que faziam, pelo tanto que ficou por fazer em vida.

Já eu digo, e com este momento reforcei, que a maior riqueza que há na vida, não é o ouro, os diamantes, ou as jóias. A maior riqueza que nós, seres vivos, temos, é o tempo. O tempo que ainda temos para viver. O tempo que nos resta, o que com ele fazemos. E só quando somos sobressaltados por um desaparecimento como este, ou lhe passamos a prestar verdadeira atenção, por motivo de se ver afunilado por uma doença “daquelas”, passa a ser verdadeiramente considerado.

Nós… efémeros, fortuitos, vagos, tendemos a agigantar-nos, a pensar-nos maiores que aquilo que realmente somos.

“Lembra-te que é pó, e em pó te irás tornar”, diziam eles. Não deverá isto ser um fardo pesado do destino, mas antes uma consciência que só nos pode permitir, ao pensarmos nela, viver de uma forma mais despreocupada, mais leve (embora não vaga), mais consciente, mais feliz.

A vida é uma passagem para a outra margem.

Eu até admito que possa estar enganado. Ninguém o saberá, até um dia, que todos queremos longe, sob o ponto de vista de cada um. Mas se o estiver, a minha profunda convicção que esta é uma história, muito fraca e falível, se terminar nesta vida terrena, dá-me, quanto mais não seja, um benefício da dúvida, no qual é muito mais feliz viver-se, do que quando não se acredita em nada.

(E é tudo uma questão de disposição, de abertura, de querer. A mais fácil é quando a vida se nos encarrega de ensinar o caminho, como foi no meu caso. Outra, é descendo da altivez humana de se achar vivo, dono de si, e cortar o cordão umbilical, dizendo que já que cá se está (neste mundo), não se precisa de acreditar em mais nada. Outra é lendo o(s) livro(s) sagrado(s), mergulhar na esssência de si. Ouvir-se...) 

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