O seu sorriso de menino captado pela lente do seu, e meu amigo Pedro Silvério, o olho de excelência de MarvãoFoto: Facebook Pedro Silvério |
Neste período de teletrabalho, de confinamento em que me encontro, privado do contato permanente com o exterior que tanta me faz, vou vivendo numa espécie de redoma fictícia que me vai dando acesso ao que se passa lá fora… aos bochechos.
Hoje
foi o chefe que me avançou que quem tinha morrido… foi o Zé Luís.
O
Zé luís?!?!? Diacho! Nem é preciso sobrenome, alcunha, ou outra designação qualquer,
porque…o Zé Luís… era o Zé Luís. Mais nada a dizer.
A
princípio não percebi bem se também ele tinha sido o seu carrasco, se tinha
sido acidental… mas depois já percebi por conversas, que foi um fim natural.
O
Zé Luís era novo, era um homem que ainda teria muitos anos pela frente, mas… a
sua relação com o álcool, a sua alimentação, a sua atroz solidão, eram ameaças
gritantes à sua continuidade.
Assim
que eu soubesse, à exceção de alguns bons amigos que o tratavam como se fosse família,
o Zé não tinha ninguém. Nunca lhe conheci familiares, nem mulheres, nem filhos,
nem nada.
Na
volta de bicicleta desta tarde, em que subi Marvão, encontrei a minha madrinha
Dona Carminda (já sabem que é assim considerada, por ter sido por ela que soube
que estava aberto o concurso para o emprego que tenho hoje, e por isso lhe
hei-de estar sempre grato), que também era tratada por madrinha pelo Zé. Éramos
assim afilhados adotivos à força, desta Senhora maravilhosa que hoje estava
muito abalada e desgostosa. Natural, eu também estou.
Conhecia
o Zé desde sempre, mas quando fui para a câmara, tivemos assim um período em
que não estivemos tão bem. Na altura de uma festas, creio que de Marvão, num
momento em que ele já estava do meio para a frente, e eu não estava nada na
onda, foi estranhamente aborrecido, e incisivo comigo, como se me quisesse
penalizar por um cargo onde ainda nem sequer tinha estado tempo algum. Eu
fiquei magoado e ressenti-me, tendo-me afastado.
Mas
depois, o tempo, que tudo cura e tudo traz, que tudo limpa, clarifica, e
peneira, devolveu-mo, ou devolveu-me a ele. O Zé Luís era mesmo aquilo a que se
pode chamar um pobre de Cristo, alguém por quem é natural que se nutra um amor
quase que de misericórdia.
Não
conhecendo bem os motivos porque desaguou por estas bandas, sempre o conheci
como trabalhador da Câmara Municipal de
Marvão, não sei se por obra do amor a que me referi acima. Pendurado das
traseiras do camião do lixo, o Zé percorreu o nosso concelho durante vezes
incontáveis, fazendo um serviço que tem tanto de essencial, como de
menosprezado, injustamente, pela grande generalidade dos demais. Todos os
trabalhos honestos são igualmente dignos, e não é a complexidade que faz
distinguir os seus executantes dos demais, como se fosse a balança pela qual se deva orientar a sociedade.
Nos
últimos anos, não sei se por já não terá a força física suficiente para dar resposta
ao manuseamento dos pesados contentores, passava os dias em Marvão, sempre
acompanhado com o seu carrinho com dois caixotes e uma vassourinha, com os
quais ajudava a que Marvão seja um sítio absolutamente impecável, de limpeza e
asseio.
Muitas
vezes parava a contemplá-lo, ao longe, só, e… de forma egoísta e até má,
lamento e confesso-o, pedia a Deus que não me deixasse nunca cair assim,
naquele vazio adormecido que parece tranquilo, mas que deve ser sufocante.
Como
me conhecia desde miúdo, e é daqueles que ainda recordava sempre com saudade, a
forma envolvente que o meu pai tinha de viver, perguntava-me sempre de forma
carinhosa pela minha mãe, e mandava sempre, sempre, mas sempre, cumprimentos
para o meu irmão Miguel, de quem ele nunca se esquecia, por saber que tinha a sua
devoção clubística, e é um lagarto de alta escala.
Isto
ao ponto de eu ter pensado tantas vezes, meu Deus, e sabes que é tão verdade, “tenho
de cá trazer o meu irmão para estar com ele.”
Já
não vai a tempo…
Aquelas
brincadeiras que sempre tínhamos com a bola, as gargalhadas que dava quando se
ria das minhas parvoíces, dos meus desgostos quando mamava cabazadas, das
minhas neuras pelos jogos menos conseguidos, da seleção, caraças!!! que quando
jogava eu lhe dizia, antes de ir de fim-de-semana: AI ZÉ!!! NESTE FIM DE SEMANA
SOMOS OS DOIS DO MESMO, C#&Fo!!!!!”…
Foi-se.
O
Zé era uma Figura de Marvão! Não tão importante como os monumentos que cá
chamam os turistas, óbvio; mas uma guarita que, para mim, sempre lá esteve, e
já não estará mais, de agora em diante.
É
assim por estas (tristes) faltas que percebemos, que o nosso tempo também se
está a esfumar.
O
estilo calmo, completamente à vontade, as gargalhadas, a boa onda. A bondade...
Agora
que todos te choram nas redes sociais, embora saiba que muitos eram mesmo muito
amigos, e fizeram coisas por ti, creio que importa aqui, a meu ver, prestar
homenagem e aprender, para que possamos ajudar mais e melhor no futuro, quem está a viver nestas zonas
limítrofe da nossa comunidade local.
Neste
caso concreto, sei que seria muito difícil conseguir retirar os hábitos que preenchem,
dão alento e companhia, quando… do outro lado, o que temos para oferecer… é
praticamente uma mão cheia de nada. Lamento a vida adiada, adormecida, sem ter
frutificado, porque o fundo era bom.
Eu,
que tenho a benesse de acreditar:
nas
escrituras milenares,
na
força que a força nos dá,
que
esta dimensão que conhecemos não pode ser a única, porque se assim fosse, as
injustiças seriam por demais e gritantes;
que
quem sofre aqui, há-de ter a sua recompensa algures;
que
a vida terrena é a aprendizagem constante, não sei é para o quê, e espero que
ainda falte muito para que descubra;
creio
que consigo compreender a inevitabilidade da nossa finitude, de outra forma,
queria eu mais tranquila e serena.
Se
houvesse este intercomunicador para o lado de lá, dir-te-ia: “Juízo, Zé!
Aproveita para ser feliz. Vais deixar falta.
Grande
abraço!”
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