quinta-feira, 4 de junho de 2020

A tal favada (de estalo!)

 



Eu estava capaz de dizer que há coincidências do camandro.


Acontece que sou um gajo que não acredita nisso das coincidências. Sem querer estar armado em Simara, ou Mayra, ou noutra gaja qualquer com dotes de adivinhação que há por aí, tenho de dizer que acredito piamente que a presunção que têm os que vivem deste lado da vida, e da realidade onde felizmente me encontro, de que sabem de tudo e tudo controlam, me soa a ridícula e despropositada.


Há 26 anos atrás, fui acordado pela GNR onde me encontrava. Passava um fim de semana grande, em que se metia e aproveitava um feriado, junto ao mar, em Armação de Pera, com a minha namorada de então, que haveria de ser a mulher com quem partilho a vida, e aqueles que são hoje, os meus cunhados e sogros.


Bateram à porta e disseram: recebemos uma chamada para si. Tem de ligar para casa. Os telemóveis, tão banais hoje em dia, eram ainda uma cena muito ficção científica.


Ainda hoje me recordo da luz daquele dia, do ambiente que se respirava no ar, de serem as primeiras mini-férias do ano, e da minha ânsia até chegar à cabine telefónica, na rua do casino, de frente à Pizzaria.


Assim que consegui estabelecer a ligação…

- O Dai…

- O que foi?!?!?

- Morreu…

Assim.
A seco.
Duro.
Sem uma preparação de que houve um problema, ou que sentiu-se mal, ou foi internado, ou… nada. Foi um soco no estômago que mo colou ao cérebro, e me deixou sem ar, atónito, sem saber o que fazer a seguir…


Aventei com o telefone e saí da cabine onde me faltava o ar. Saí caminhando pela rua paralela à marginal, e fui andado até sei lá onde. Se calhar, até onde quem estava comigo e assistiu a tudo do lado de fora da cabine, me conseguiu agarrar. Foi uma daquelas notícias que marcam a nossa vida. A partir dali nunca mais nada iria ser igual e eu soube-o de imediato.


Andei e acho que parei a chorar, sem saber ainda bem o que haveria de fazer.


Recordo-me que quis apanhar um autocarro, que não quis deixar que isto abalasse os seus tão desejados dias de férias, mas não me deixaram. Acabou tudo ali.


Perdi assim, sem ter podido fazer a despedida merecida à pessoa que mais me marcou na vida, e mais influenciou a minha maneira de ser. O João Sobreiro, o meu ídolo e modelo, sabia estar. Tanto se dava e adequava o discurso aos altos nomes das alfândegas, e dos despachantes com que tinha de se relacionar por motivos profissionais, como ao homenzinho do fundo da rua, a quem davam crédito para pouco mais que nada. Aos seus olhos, todos eram seres humanos iguais, cada um com a sua dignidade muito própria.


Quebrou num momento em que tinha sido engolido pelo progresso, juntamente com a sua esposa, colega que também trabalhava no mesmo ramo, quando a abertura das fronteiras pela criação do mercado único europeu lhe tirou o pão da boca, e os deixou desempregados, com um filho a estudar no 3º ano da faculdade, e um no ciclo preparatório, em Santo António.


Talvez o maior amante da vida e dos seus prazeres que conheci, sempre tudo fez para que nada lhe passasse ao lado. Partiu muito cedo, com apenas 49 anos cumpridos nem há dois meses, com pouco mais de dois anos da idade que tenho atualmente, quando me considero ainda um miúdo (embora saiba que já não o seja).


Foi uma vida na qual não ficou um copo (sempre com um amigo) e um café (muitos) por beber, onde não ficou um cigarro por fumar (dois maços, 20 + 20 não chegavam, durante quantos anos?), onde não havia qualquer preocupação com cuidados com a atividade física, ou alimentação. Foi uma vida onde o estouro que a máquina deu se poderia prever e já tinha dado ameaços. Naquele então, não haviam bombeiros aqui que me salvaram já, não haviam desfibrilhadores, o hospital de Portalegre ficava sempre longe demais, e não houve uma segunda hipótese, não houve um aviso, não houve um ponto de situação a partir do qual se pudesse fazer um recomeço.


A comida favorita do meu pai eram favas. A minha mãe, ou porque não gostava, ou não tinha jeito, ou porque não as sabia fazer, nunca as cozinhava. O que mais não faltava naquela saudosa e frondosa Beirã da minha infância, eram amigos cujas esposas eram extraordinárias cozinheiras e faziam gala em convidar o bom do João. Certamente seriam muitos mas eu aqui recordo-me sempre do saudoso Sr. Sabino que adorava a companhia do meu pai, o que era absolutamente recíproco. Eram sempre boas, bastinhas e muitíssimo bem regadas, como manda a lei.


Há dias, a minha querida amiga de toda a vida e cunhada Paula Lança, disse-me por sms: Olá cunhadinho. Vou mandar umas favas à minha mãe, para ela fazer para o meu pai e para ti. Beijinhos.”


Como estive a trabalhar em casa, e em formação pela internet, a favas chegaram cá ao defeso. Era uma bela tupperware que… foi toda! Deu uma tijela bem grande bem cheia, bastinha, mais um resto. Anda brruto!!!


E assim vejam bem: passado este tempo todo de tanta saudade, dou por mim a almoçar sozinho (porque os horários da malta cá de casa meteram programas diferentes), a comer uma favada de estalo (que eu nem sequer comia naquele então, porque não me chegavam, e porque achava que não gostaria), a comida favorita do meu pai, no dia em que ele partiu deste mundo, 3 de Junho, há 26 anos atrás (hoje teria 75… novo!), arranjada por pela minha querida cunhada, trazida pelos meus sogros, que foi quem sempre me ajudou e acompanhou, e tanto naquele dia.


Eu só agradeço. Só posso agradecer tanto.  


Que Deus vos abençoe.



2 comentários:

nuno mota disse...

Um abração....

Helena Barreta disse...

Ai,Pedro, vai fazer 8 anos no dia 31 de Julho que o meu filho recebeu um telefonema com o mesmo propósito do seu, tinha 20 anos e estava com amigos no início de um inter-rail, naquela manhã falou com o pai, estava em Paris e à hora que foi declarada a morte, vi mais tarde, mandou uma sms ao pai a dizer que estava a caminho de Bruxelas.

O enfarte, tal como o do seu pai, também foi fulminante, sem aviso e sem segunda oportunidade, tinha feito em Junho 48 anos.

Também não tenho pai, sei bem a falta que nos faz. Engraçado, o meu pai adorava favas,dizia mesmo que,enquanto durasse a época, as podia comer todos os dias.

Um abraço para si e outro para a sua Mãe.