Eu estava capaz de dizer que há
coincidências do camandro.
Acontece que sou um gajo que não
acredita nisso das coincidências. Sem querer estar armado em Simara, ou Mayra,
ou noutra gaja qualquer com dotes de adivinhação que há por aí, tenho de dizer
que acredito piamente que a presunção que têm os que vivem deste lado da vida,
e da realidade onde felizmente me encontro, de que sabem de tudo e tudo controlam,
me soa a ridícula e despropositada.
Há 26 anos atrás, fui acordado
pela GNR onde me encontrava. Passava um fim de semana grande, em que se metia e
aproveitava um feriado, junto ao mar, em Armação de Pera, com a minha namorada
de então, que haveria de ser a mulher com quem partilho a vida, e aqueles que
são hoje, os meus cunhados e sogros.
Bateram à porta e disseram: recebemos
uma chamada para si. Tem de ligar para casa. Os telemóveis, tão banais hoje em
dia, eram ainda uma cena muito ficção científica.
Ainda hoje me recordo da luz
daquele dia, do ambiente que se respirava no ar, de serem as primeiras
mini-férias do ano, e da minha ânsia até chegar à cabine telefónica, na rua do
casino, de frente à Pizzaria.
Assim que consegui estabelecer a
ligação…
- O Dai…
- O que foi?!?!?
- Morreu…
Assim.
A seco.
Duro.
Sem uma preparação de que houve
um problema, ou que sentiu-se mal, ou foi internado, ou… nada. Foi um soco no
estômago que mo colou ao cérebro, e me deixou sem ar, atónito, sem saber o que
fazer a seguir…
Aventei com o telefone e saí da
cabine onde me faltava o ar. Saí caminhando pela rua paralela à marginal, e fui
andado até sei lá onde. Se calhar, até onde quem estava comigo e assistiu a
tudo do lado de fora da cabine, me conseguiu agarrar. Foi uma daquelas notícias
que marcam a nossa vida. A partir dali nunca mais nada iria ser igual e eu
soube-o de imediato.
Andei e acho que parei a chorar,
sem saber ainda bem o que haveria de fazer.
Recordo-me que quis apanhar um autocarro,
que não quis deixar que isto abalasse os seus tão desejados dias de férias, mas
não me deixaram. Acabou tudo ali.
Perdi assim, sem ter podido fazer
a despedida merecida à pessoa que mais me marcou na vida, e mais influenciou a
minha maneira de ser. O João Sobreiro, o meu ídolo e modelo, sabia estar. Tanto
se dava e adequava o discurso aos altos nomes das alfândegas, e dos
despachantes com que tinha de se relacionar por motivos profissionais, como ao
homenzinho do fundo da rua, a quem davam crédito para pouco mais que nada. Aos
seus olhos, todos eram seres humanos iguais, cada um com a sua dignidade muito
própria.
Quebrou num momento em que tinha
sido engolido pelo progresso, juntamente com a sua esposa, colega que também trabalhava
no mesmo ramo, quando a abertura das fronteiras pela criação do mercado único
europeu lhe tirou o pão da boca, e os deixou desempregados, com um filho a estudar
no 3º ano da faculdade, e um no ciclo preparatório, em Santo António.
Talvez o maior amante da vida e
dos seus prazeres que conheci, sempre tudo fez para que nada lhe passasse ao
lado. Partiu muito cedo, com apenas 49 anos cumpridos nem há dois meses, com
pouco mais de dois anos da idade que tenho atualmente, quando me considero
ainda um miúdo (embora saiba que já não o seja).
Foi uma vida na qual não ficou um
copo (sempre com um amigo) e um café (muitos) por beber, onde não ficou um
cigarro por fumar (dois maços, 20 + 20 não chegavam, durante quantos anos?), onde
não havia qualquer preocupação com cuidados com a atividade física, ou
alimentação. Foi uma vida onde o estouro que a máquina deu se poderia prever e
já tinha dado ameaços. Naquele então, não haviam bombeiros aqui que me salvaram
já, não haviam desfibrilhadores, o hospital de Portalegre ficava sempre longe
demais, e não houve uma segunda hipótese, não houve um aviso, não houve um ponto
de situação a partir do qual se pudesse fazer um recomeço.
A comida favorita do meu pai eram
favas. A minha mãe, ou porque não gostava, ou não tinha jeito, ou porque não as
sabia fazer, nunca as cozinhava. O que mais não faltava naquela saudosa e frondosa
Beirã da minha infância, eram amigos cujas esposas eram extraordinárias cozinheiras
e faziam gala em convidar o bom do João. Certamente seriam muitos mas eu aqui
recordo-me sempre do saudoso Sr. Sabino que adorava a companhia do meu pai, o
que era absolutamente recíproco. Eram sempre boas, bastinhas e muitíssimo bem
regadas, como manda a lei.
Há dias, a minha querida amiga de
toda a vida e cunhada Paula Lança, disse-me por sms: Olá cunhadinho. Vou mandar
umas favas à minha mãe, para ela fazer para o meu pai e para ti. Beijinhos.”
Como estive a trabalhar em casa,
e em formação pela internet, a favas chegaram cá ao defeso. Era uma bela
tupperware que… foi toda! Deu uma tijela bem grande bem cheia, bastinha, mais
um resto. Anda brruto!!!
E assim vejam bem: passado este
tempo todo de tanta saudade, dou por mim a almoçar sozinho (porque os horários
da malta cá de casa meteram programas diferentes), a comer uma favada de estalo
(que eu nem sequer comia naquele então, porque não me chegavam, e porque achava
que não gostaria), a comida favorita do meu pai, no dia em que ele partiu deste
mundo, 3 de Junho, há 26 anos atrás (hoje teria 75… novo!), arranjada por pela
minha querida cunhada, trazida pelos meus sogros, que foi quem sempre me ajudou
e acompanhou, e tanto naquele dia.
Eu só agradeço. Só posso
agradecer tanto.
Que Deus vos abençoe.
2 comentários:
Um abração....
Ai,Pedro, vai fazer 8 anos no dia 31 de Julho que o meu filho recebeu um telefonema com o mesmo propósito do seu, tinha 20 anos e estava com amigos no início de um inter-rail, naquela manhã falou com o pai, estava em Paris e à hora que foi declarada a morte, vi mais tarde, mandou uma sms ao pai a dizer que estava a caminho de Bruxelas.
O enfarte, tal como o do seu pai, também foi fulminante, sem aviso e sem segunda oportunidade, tinha feito em Junho 48 anos.
Também não tenho pai, sei bem a falta que nos faz. Engraçado, o meu pai adorava favas,dizia mesmo que,enquanto durasse a época, as podia comer todos os dias.
Um abraço para si e outro para a sua Mãe.
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