Soube
que estava menos bem de saúde, que lhe tinha dado “uma coisa qualquer”. Porque
sou amigo preocupei-me. Mas a falta de tempo fez com que houvesse sempre um…
mas. Ou o trabalho, ou as filhas, ou a vida me levaram a saber sempre mais de
mim e a não me preocupar em saber mais… dele. Depois, nesta terra pequena
sofre-se do mesmo que nas outras terras pequenas e o boato começa a ganhar
força de facto. Que estava melhor, que estava muito mal, que teve uma recaída,
que lhe tinha dado outra vez.
Há
semanas encontrei a mulher e a filha junto ao posto da GNR e pude saber mais ao
certo, em concreto. Que estava melhor e internado na Anta da Beirã. “E recebe
visitas? Hei-de lá ir vê-lo.”
Encontrei
durante esta semana nas finanças, uma empregada que me garantiu que poderia lá
ir a qualquer hora. “Assim que for ver as minhas tias à Beirã com tempo, hei-de
lá passar.” E foi no sábado.
No
caminho parei-me, sentei-me a olhar a estação e reencontrei uma beiranense com
idade para ser minha avó que comentou comigo o inevitável nestes casos: como
era e como está aquela que há-de ser sempre a nossa terra. Fomos andando e
voltei a sentar-me já a sós, para ganhar tempo e fôlego para o que iria
encontrar. Reparei que me tinha esquecido da net ligada no telemóvel e recebi um comentário do Brasil à
imagem de perfil que tinha acabado de meter no facebook, com uma camiseta do
Cachaçafest do Piauí de 2008, ano da minha visita lá. Se é verdade que a internet
é a maior invenção do meu tempo (a roda já lá vai há muito e os computadores já
existiam quando eu era puto) e transforma o mundo numa aldeia global, o
facebook faz dessa aldeia uma rua. O Brasil é logo ali, logo aqui no meu
telefone.
Mas
eu ia a outra coisa. Olhei o edifício de fora e pareceu-me enorme. Maior do que
o imaginava. Assim olhado de frente, e não de passagem de carro, parece que a
dignificação o tornou ainda mais alto, mais importante e imponente. Respirei
fundo e entrei. Uma senhora muito dócil de mais de meia idade perguntou-me o
que queria e mandou-me sentar numa salinha de espera, pequena, simples mas muito
confortável com poucos adereços. Olhei pela janela e fui pensando. Pensando que
curiosamente a Beirã de hoje parece ter sido abandonada pela Beirã saudável e
próspera do meu tempo mas aquele edifício que foi residência dos alfandegários
na minha meninice e abandonado na minha adolescência, renasceu agora fruto do
trabalho de uma associação à génese da qual a minha mãe esteve ligada porque
nasceu da vontade de um grupo esclarecido de amigos que hoje é o santo graal da
Beirã. Sem ela, provavelmente já não haveria nada ali.
Estava
expectante. Horas antes tinha ouvido ao balcão do Adro, onde bebi café que o Zé
estava mal. Quão mal estaria ele? Será que não conhecia mesmo ninguém como
comentavam? Aquela sensação que os segundos pareciam horas… O Zé chegou
acompanhado, numa cadeira adaptada à sua condição. Achei-o mais magro, com os
olhos salientes que sempre o caracterizaram a parecerem ainda mais esbugalhados
na cara esquálida. Os seus problemas com a visão, muito castigada pela diabetes,
amorteceram o não me ter reconhecido logo. Foi a voz.
“E
o senhor, o que lhe é a ele? Família?”
“Amigo.”
(com A grande… há muitos anos. O Zé Manel zangava-se quando eu o tratava por
você. “Epá não consigo que sejas tu, o que é queres? Acho que é do seu bigode.
Mete respeito.)
“E
o seu nome?”
“Pedro.
Pedro Sobreiro”
As
palavras surtiram nele o mesmo efeito que o “Abre-te sésamo” dos 40 ladrões. O
meu nome despoletou um efeito que lhe abriu a gruta das emoções. Ainda com
algumas limitações na mobilidade, foram os olhos ou a emoção que caiu deles em
catadupa que abriram o jogo. O Zé Manel estava lá, aprisionado naquele corpo
que o limitava mas com o mesmo cérebro, o mesmo sentir, o mesmo coração. A
amizade, o querer bem aproxima muito as pessoas. Às vezes, faz delas mais
próximas do que se fossem família. Cada lágrima era um grito de revolta por se
ver assim de um momento para o outro depois de ter sofrido tanto com a saúde,
um lamento, uma dor. E ficámos ali assim em silêncio, os dois, de mãos dadas.
Ele a gritar em silêncio com os olhos fitos no nada e eu a olhar para o chão,
para não interferir com aquele momento tão íntimo, tão seu. Muitos minutos
muito grandes.
Silêncio
e dor.
Quando
voltou a pouco e pouco a si, foi respirando mais e mais fundo.
Dei-lhe
espaço e vagar. “E então, Zé? Como te sentes?” foi a forma de entrar neste
mundo ainda novo ao qual se está a ambientar. Com um discurso completamente
lógico e compreensível, talvez um pouco limitado com a articulação das
palavras, disse que se sentia muito bem apoiado e instalado. Disse que o apoio
da família o motiva muito e que a mulher, a filha e o filho nunca o deixam
sentir só. Disse-me que está à espera de ser avô nos tempos mais próximos e no
rosto acendeu-lhe uma esperança que lhe fez brilhar os olhos. “É o meu filho…
está quase a ser pai.”
“Mais
um benfiquista, Zé! Tem de ser!”
Ele
sorriu, disse que sim e a bola tirou-nos dali, fez-nos ir um bocadinho ao campo
dos sonhos embalado pela paixão benfiquista que nos assola a ambos. Com a sua
maneira generosa e bondosa de ser, fiquei com a impressão que ainda me perguntou
pelas minhas pequenas mas a estrela ali era ele e não eu.
“Tratam-te
bem, Zé? Comes bem? Não te falta nada? Vês televisão? Ouves rádio?”
Disse-me
que perdeu muito o apetite e pela falta de visão não se sente muito impelido a
ler mas que a televisão é sempre uma boa opção embora os jogos do mundial sejam
a horas difíceis. Relembrou-me de cabeça os jogos do calendário desse dia e
afastou-me os fantasmas de que poderia estar menos bem de cabeça.
“Sabes
o que te aconteceu, Zé?” (fiz um esforço pelo tu de há umas semanas a esta
parte e tem resultado) e quando lho perguntei também eu não sabia ao certo.
Provavelmente já me deveriam ter dito o que foi mas a minha cabeça já não é a
mesma e quando perguntei, não sabia, de facto. Ele também não. “Achas que foi uma
coisa que te deu? Achas que foi a tensão?”
“Não
sei. Foi de tarde. Não sei o que foi mas acho que foi de tarde.”
O
seu quinto Machado esclareceu-me depois no regresso à aldeia que foram 3 AVCs
que fizeram mossa. Segundo soube, esteve no hospital já com sintomas e a
triagem pode não ter sido exímia porque se repetiram. Agora está a recuperar, a
apostar que a fisioterapia lhe consegue devolver alguma da qualidade de vida
que perdeu.
De
vez em quando olhava a janela e queria ver o que se passava lá fora. Mas senti-o
machucado, como se um comboio lhe tivesse passado por cima.
Eram
horas de jantar e ainda tinha de passar a ver as minhas meninas (de 84 e 86).
Mas hei-de lá regressar. Com muito mais frequência. É nestas alturas que os
amigos nos podem ajudar. E eu já estou a pensar no que lhe vou dizer em
próximas conversas, que há-de passar muito pela ideia que apesar de tudo, teve
uma nova oportunidade de ver as coisas que a vida ainda lhe pode dar, como um
neto.
Tem
58 anos. O meu pai tinha 49 e naquela manhã só queria acordar.
1 comentário:
O meu pai tombou ao 4º AVC. As melhoras do seu amigo.
Um abraço
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