A minha Audrey Hepburn... quando me apaixonei por ela... Nunca conheci mulher tão bonita... |
Quando entrei na salinha onde
costuma estar, fui de mansinho e tentei não assustar o sossego reinante.
Algumas, das 10 ou 12, deram por mim e sorriram. Não estava sentada no seu
sítio habitual, de costas para a televisão, e fiquei deveras feliz por o pedido
que fiz na semana passada às empregadas, ter sido aceite. Não quis um
tratamento diferenciado das demais colegas, mas apenas peeguntei se não seria
possível que pudesse estar numa ou outra vez, numa cadeira em que pudesse ver a
televisão. Não que eu acreditasse que ela ligasse, mas era uma tentativa de fazer
com que ela estivesse, nem que fosse, uma vez, por outra, com algo que lhe
chamasse a atenção. O que me custava mesmo era que ela estivesse sempre no mesmo
sítio, e nunca pudesse ver, quando havia algumas colegas que não lhe prestavam
nunca atenção nenhuma, e estavivessem sempre viradas para ela.
Hoje, quando a imagem dava
movimento, luzes e cores, ela olhava.
Que bom.
A minha Caly, com “y”, como ela
gostava de assinar, numa modernice muito avant-garde, faz hoje 88 anos.
Quando cheguei dormia. Muito.
Estava com a cabeça tombada sobre si. Quando a fitei, as colegas murmuraram-me,
“tem estado mal…“
“MAL?!?!? COMO ASSIM?!?!!?”
“Esteve a oxigénio. Tem estado a
babar-se muito…”
Sem perguntar mais, agradeci, e
fui ver da responsável, a Rosalina, se me podia acrescentar algo.
Tranquilizou-me. Disse que como
tinha um pouco de febre, a tinham medicado, e colocado um pouco a soro.
Agradeci-lhe, e voltei, para
junta dela, que entretanto tinha acordado.
“OLÁ!!!!! (baixinho…) QUEM FAZ
ANOS, QUEM É?!?!?! (sorrindo com a tristeza avassaladora de perceber que vi que
não fazia a mais menor ideia de que raio estava eu a falar.)
Cantei-lhe os parabéns, devagarinho,
batendo palmas baixinho, e ela, olhando para mim como se estivesse sentado a 10
quilómetros de distância.
Que sensação tão estranha e dura
esta, o estar tão feliz por estar a celebrar o aniversário da minha familiar
direta mais antiga com vida (a mãe e a mana Maria duraram até aos 86, o pai Leopoldo
partiu com 72, a tia Mirene não passou muito da meia idade; o irmão João, meu
pai, foi com 49, e o seu sobrinho João da Covilhã, também não chegou aos 50…),
e sentir que ela… já não está cá.
O que era esta mulher, meu Deus…
ultra elegante, lindíssima, sempre bem arranjada e vestida, muito meticulosa em
tudo o que fazia, os bordados, o pudim de ovos… e hoje…
Como é vã, esta sensação de estar
vivo… Como se esvai tudo, como não somos nada…
Os olhos sem brilho, vagos,
opacos, como se fossem janelas para um cérebro que, também ele, está a
definhar, a esvair-se.
Sem conseguir balbuciar uma
palavra, uma emoção, um laivo de vida… apenas estando.
A Caly... bebé |
O avô Sobreiro, no início da sua carreira ferroviária, que o levaria a inspetor |
O avô Leopoldo e a avó Joaquina, os meus avós paternos |
A tia Maria, nos 80, quando enviuvou |
O Shôr Ajudante de Despachante, João Sobreiro, com cartão válido até 16 de Janeiro de 1994. Faleceria 6 meses depois, subitamente. |
Afinal, está cá como todos estamos,
por uma vontade superior a nós, mortais, que nos trouxe aqui, e nos fez fazer
parte deste domínio. Ela está pelo mesmo motivo que eu não fui já, não
conseguimos explicar porquê, que isso são compreensões que estão para lá do
nosso entendimento.
A minha única e grande
satisfação, é poder lidar com a angústia de não lhe poder retribuir todo o amor
que me deu em vida, por a saber muito bem colocada, numa Casa, Santa, onde é
amada, respeitada, tratada com carinho, bem lavada, bem alimentada com muita
paciência, e bem arranjada, sempre bem vestida e condicionada.
Despedi-me com um cumprimento
generalizado a todas, que passem o resto de uma boa noite, e um bom fim de
semana, e sai, como sempre, derrotado, por não podermos estar a celebrar
algures, todos juntos, num jantar num sítio qualquer, para depois a irmos levar
à sua casinha, onde vivia sozinha com os seus tarecos, e o seu fogãozinho, onde
ainda fazia a sua comidinha.
Perder um pai sem estar doente
aparentemente, de um dia para o outro, com apenas mais 3 anos que eu, é um
coice da vida do qual jamais conseguimos recuperar. Mas ver quem amamos tanto
apagar-se assim, lentamente, e arder, estando sem estar…
Parabéns, Caly.
Gosto tanto de ti…
Sou tão teu…
De vacances na Armação de Pêra natal do tio Lazarinho, as beldades da família nos 70s: a filha Maria de Fátima, João e Alzira Sobreiro, e Cremilde, junto ao palácio vermelho |
Com o já desaparecido primo João, a banhos |
A tríade das manas Sobreiro: Caly, Mirene e Maria, num jantar convívio de família |
Com o seu menino que nunca pariu, Pedro, o gorducho do irmão João. Um seu filho para a vida <3 |
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