quinta-feira, 21 de março de 2019

Cremilde, os 88 do bastião da família Sobreiro

A minha Audrey Hepburn... quando me apaixonei por ela...
Nunca conheci mulher tão bonita...




Quando entrei na salinha onde costuma estar, fui de mansinho e tentei não assustar o sossego reinante. Algumas, das 10 ou 12, deram por mim e sorriram. Não estava sentada no seu sítio habitual, de costas para a televisão, e fiquei deveras feliz por o pedido que fiz na semana passada às empregadas, ter sido aceite. Não quis um tratamento diferenciado das demais colegas, mas apenas peeguntei se não seria possível que pudesse estar numa ou outra vez, numa cadeira em que pudesse ver a televisão. Não que eu acreditasse que ela ligasse, mas era uma tentativa de fazer com que ela estivesse, nem que fosse, uma vez, por outra, com algo que lhe chamasse a atenção. O que me custava mesmo era que ela estivesse sempre no mesmo sítio, e nunca pudesse ver, quando havia algumas colegas que não lhe prestavam nunca atenção nenhuma, e estavivessem sempre viradas para ela.
Hoje, quando a imagem dava movimento, luzes e cores, ela olhava.
Que bom.
A minha Caly, com “y”, como ela gostava de assinar, numa modernice muito avant-garde, faz hoje 88 anos.

Quando cheguei dormia. Muito. Estava com a cabeça tombada sobre si. Quando a fitei, as colegas murmuraram-me, “tem estado mal…“
“MAL?!?!? COMO ASSIM?!?!!?”
“Esteve a oxigénio. Tem estado a babar-se muito…”
Sem perguntar mais, agradeci, e fui ver da responsável, a Rosalina, se me podia acrescentar algo.
Tranquilizou-me. Disse que como tinha um pouco de febre, a tinham medicado, e colocado um pouco a soro.

Agradeci-lhe, e voltei, para junta dela, que entretanto tinha acordado.



“OLÁ!!!!! (baixinho…) QUEM FAZ ANOS, QUEM É?!?!?! (sorrindo com a tristeza avassaladora de perceber que vi que não fazia a mais menor ideia de que raio estava eu a falar.)


Cantei-lhe os parabéns, devagarinho, batendo palmas baixinho, e ela, olhando para mim como se estivesse sentado a 10 quilómetros de distância.
Que sensação tão estranha e dura esta, o estar tão feliz por estar a celebrar o aniversário da minha familiar direta mais antiga com vida (a mãe e a mana Maria duraram até aos 86, o pai Leopoldo partiu com 72, a tia Mirene não passou muito da meia idade; o irmão João, meu pai, foi com 49, e o seu sobrinho João da Covilhã, também não chegou aos 50…), e sentir que ela… já não está cá.
O que era esta mulher, meu Deus… ultra elegante, lindíssima, sempre bem arranjada e vestida, muito meticulosa em tudo o que fazia, os bordados, o pudim de ovos… e hoje…
Como é vã, esta sensação de estar vivo… Como se esvai tudo, como não somos nada…

Os olhos sem brilho, vagos, opacos, como se fossem janelas para um cérebro que, também ele, está a definhar, a esvair-se.
Sem conseguir balbuciar uma palavra, uma emoção, um laivo de vida… apenas estando.

A Caly... bebé

O avô Sobreiro, no início da sua carreira ferroviária, que o levaria a inspetor


O avô Leopoldo e a avó Joaquina, os meus avós paternos

A tia Maria, nos 80, quando enviuvou

O Shôr Ajudante de Despachante, João Sobreiro, com cartão válido até 16 de Janeiro de 1994.
Faleceria 6 meses depois, subitamente.

Afinal, está cá como todos estamos, por uma vontade superior a nós, mortais, que nos trouxe aqui, e nos fez fazer parte deste domínio. Ela está pelo mesmo motivo que eu não fui já, não conseguimos explicar porquê, que isso são compreensões que estão para lá do nosso entendimento.

A minha única e grande satisfação, é poder lidar com a angústia de não lhe poder retribuir todo o amor que me deu em vida, por a saber muito bem colocada, numa Casa, Santa, onde é amada, respeitada, tratada com carinho, bem lavada, bem alimentada com muita paciência, e bem arranjada, sempre bem vestida e condicionada.

Despedi-me com um cumprimento generalizado a todas, que passem o resto de uma boa noite, e um bom fim de semana, e sai, como sempre, derrotado, por não podermos estar a celebrar algures, todos juntos, num jantar num sítio qualquer, para depois a irmos levar à sua casinha, onde vivia sozinha com os seus tarecos, e o seu fogãozinho, onde ainda fazia a sua comidinha.


Perder um pai sem estar doente aparentemente, de um dia para o outro, com apenas mais 3 anos que eu, é um coice da vida do qual jamais conseguimos recuperar. Mas ver quem amamos tanto apagar-se assim, lentamente, e arder, estando sem estar…

Parabéns, Caly.
Gosto tanto de ti…
Sou tão teu…


De vacances na Armação de Pêra natal do tio Lazarinho, as beldades da família nos 70s:
a filha Maria de Fátima, João e Alzira Sobreiro, e Cremilde, junto ao palácio vermelho

Com o já desaparecido primo João, a banhos

A tríade das manas Sobreiro: Caly, Mirene e Maria, num jantar convívio de família

Quando os tempos eram magníficos, num carrossel das festas de Valência da Alcântara, e o pai chefiava a estação:
a lindíssima Tia Mirene, à esquerda; a prima Maria Isabel Carita ao centro, e a Cremilde, do lado direito.
Lá atrás, um galifão espanhol todo sorridente. Pudera...

Com o seu menino que nunca pariu, Pedro, o gorducho do irmão João.
Um seu filho para a vida
<3

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