Com o "meu" crucifixo em frente, antes de vir a mim... |
Epá… isto está a tomar uma
dimensão que pelo andar da carruagem, este blogue ainda acaba patrocinado pela
Funerária Santos, ou Trindade, ou uma outra qualquer cá da zona, que eu nem sei
bem qual é a cá de Santo António. E ainda bem.
Mas já todos sabem que este é o
meu lugarinho. O sítio onde posso dizer o que me dá na veneta, onde não tenho
de pagar as alcavalas do psiquiatra (que isto só com psicólogo não vai lá,
garanto-vos), onde realmente me ouvem, nem que seja eu a mim próprio. Aqui arrumo
as ideias, e vou organizando a “casa”, enquanto teclo. A história de sempre. A
minha, afinal: um gajo gosta mesmo é de escrever, vai trabalhar para os
impostos para poder viver (condignamente), mas realiza-se sempre é quando
desagua aqui ao final do dia, vencendo o cansaço do dia inteiro ao balcão, em
frente ao ecrã.
O assunto: mais um amigo que se
foi, e por ter “mexido” comigo durante a vida, por ter tido algo que em mim
impactou, tenho de aqui o recordar, fazendo um processo de luto muito meu.
O Ti Zé Brás entrou na minha vida
quando me casei, por também ele estar casado com uma tia-avó da minha Cristina.
Sempre o conheci assim, velhote, já curvado, com uma espinha quase dobrada
sobre si mesma, sendo-lhe praticamente impossível olhar de frente para a
paisagem. Defensor acérrimo do seu Vale de Ródão, vivia num Marvão que liga já
para a parte dos Barretos, de onde se avista Castelo de Vide. Dono de um
sentido de humor muito seu, castiço, antigo, tinha piada. Para mim, era dono de
um falar e um sentir antigo, daqueles que está acabar, que já não se fará mais.
Muito apegado à sua casa, ao seu
pedaço de terra, e sabia bem da sua contra-vontade em ir para a Santa Casa, em
Marvão, contrária à da sua esposa, que já sentia as forças de viver a
abalarem-lhe; e dos seus descendentes que tinham partido, e ido ver de vida na
vila. Isto porque o Ti Zé era muito daquele tipo de pessoas de Marvão que
cresceram com a ideia de que quem ia para a Santa Casa, entrava assim para um
corredor fundo sem retorno, onde o único destino é o inexorável de nós todos,
que é o fim de tudo nesta terra. Quis
esse mesmo destino que tudo se viesse a confirmar como ele o tinha previsto.
A tia estava muito descaída, lá,
e a sua terna amabilidade de cada vez que nos via quando a íamos visitar à sua
casa, tinha-se desfeito numa apatia confrangedora. Sem o seu poupinho, e os
cabelinhos pretos, parecia ter o dobro da idade, e não só não nos conhecia,
como não reagia aos nossos estímulos, aos nossos carinhos. Antevia-se o pior.
Que aconteceu, em pouco tempo.
Custa a perceber mas apesar do
carinho de todos os funcionários, da higiene, do empenho, do amor que se
respira naquela casa, e eu sou bem testemunha disso desde há cerca de 5 anos, desde
que tenho lá a minha tia-mãe, dá a sensação que nalgumas pessoas, há algo que
desliga quando se instalam ali, como se fosse uma antecâmara da morte. Não
creio que tenha sido assim no caso da tia, mas seguramente que foi no caso do
Ti Zé, que esteve sempre contrariado, sobretudo depois do desaparecimento da
sua companheira.
Quando faço a visita semanal à
minha tia, sempre culpabilizando-me por não ir lá todos os dias, que era o que
ela faria se tivesse consciência, e estivesse eu no seu lugar, faço sempre o
mesmo trajeto: entro pela parte superior onde estão as senhoras, e regresso
pela dos homens, em baixo, como que querendo dar um sopro de vida a todos,
dar-lhe vida naquele enclausuramento onde respiram.
As da primeira sala, quase sempre
a dormir, com muitas, muito em baixo; a sala seguinte onde muitas, muitas vezes
pintam, e está um senhor de óculos que me faz sempre adeus como se me tivesse
visto pela primeira vez; as senhoras da sala do fundo, sempre de trabalhos
manuais, muito ativas e dedicadas.
Depois da visita ao “hospital”,
que é como se chama a parte onde ela está, saio pelo rés do chão, onde
aproveito para me “meter” com os homens: o amigo Machado, sempre ultra-tecnológico,
agarrado ao seu portátil onde vê a bola, e acompanha as redes sociais; o meu
amigo Chico lá da Beirã, que está igualzinho àquele que conheci em criança, de olhos
gigantes aumentados pelos óculos cú de copo de toda a vida; um tontinho que eu não
conhecia senão dali mas se ri sempre imenso quando o fito, e se escangalha todo
quando lhe digo baixinho: foste tu… ai, ai….enquanto levo a mão à boca fingindo
tapar um segredo: o Ti Manel, o pai do meu amigo César que não teve a minha
sorte, e ficou paraplégico no acidente que teve; e tantos outros… onde estava
também o Tio Zé Brás.
Encafuado no sofá, como se
estivesse a ser engolido por ele, passou a ter um olhar ainda mais distante,
sozinho, triste, desde eu partiu a sua mulher. Pela familiaridade que temos,
tinha para com ele sempre um cumprimento especial. Chegava-me junto, tocava-o
(e como eu percebi ali a importância do toque… Há muitas tardes em que apenas
sorrio e encho de festas a minha tia, sem nunca tentar dizer sequer uma palavra),
e perguntava-lhe:
- Então Tio, como é que está hoje?
- Eeeeeeehhhhhh…
- Já comeu?
- Já comi. Já comi… (Como se
estivesse a despachar-me)
E a clássica: Então está tudo
bem?
- Eh… práqui estou à espera…
À espera disto que aconteceu
agora. Não creio que estivesse doente, e havia-os por lá seguramente bem piores,
mas… foi-se.
Não dizem que os elefantes que
morrem de ordem natural, sem serem chacinados, ou assassinados, vão todos
morrer ao mesmo sítio? Deve ser o mesmo.
O Tio Zé Brás era um artista.
Sempre conheci, e me apaixonei, desde que vi o primeiro, dos seus trabalhinhos
em madeira. Com uma navalhinha, ia debulhando a peça em bruto, e dali nasciam alfaias
agrícolas em miniatura, pequenos apetrechos da vida mundana que os seus olhos
iam absorvendo e cristalizavam com o seu engenho. Isso ou bonecos sarrafeiros
com grandes pilas, com mangalhos que arrastavam pelo cháo. Uma vez ofereceu-me
uns sapatinhos de madeira do tamanho de
um dedal que têm estado sempre no meu carro. Gosto de olhar para eles e
lembrar-me da nossa amizade.
A sua obra maior que eu adquiri
foi no São Marcos de há 2 ou 3 anos, um cristo cruxificado absolutamente
magnífico que dormiu imenso tempo por cima do nosso leito enquanto dormíamos, e
agora deu lugar a uma reprodução de um Van Gogh lindíssimo, o meu pintor de
eleição, que retrata um casal de agricultores que descansa sobre a palha, Muito
apropriado, portanto.
Pediu-me já não sei bem se 10,
15, ou 20 euros. Muito menos que aquilo que eu sabia que valeria para mim
sentimentalmente, e poderia vir a valer num futuro que é agora. Hoje, para mim,
não tem preço.
No funeral da sua esposa, no
cemitério de Marvão, recordo-me que o apanhei quando saia, após o corpo ter
sido devolvido à terra, e quando lhe disse “sinto muito”, disse que sim com a
cabeça, como se estivesse a fazer um esforço para perceber a minha
solidariedade, mas como se já tivesse entrado num transe que o haveria de levar
a deixar de estar neste mundo… em paz, respeitando a ordem natural das coisas.
Ontem, ao balcão das finanças,
enquanto trabalhava, comentei a sua partida com o seu vizinho Michael Ibelings,
da Quinta da Saimeira, que ele ternamente chamava por “Mgúúúel”. Sentindo-me
próximo dele, mais ainda depois do nosso relacionamento no movimento político “Marvão
para Todos”, das últimas eleições, abordei a partida trágica e súbita do Tio Zé,
como por aqui descrevo. Apesar de saber que é estrangeiro, e não tão dado a
mostrar as suas emoções quanto nós, portugas, o Miguel não conseguiu esconder a
emoção que deixou transparecer no brilho dos olhos quando abordou os passeios que
davam juntos, e aquilo que lhe conseguiu mostrar.
A vida… é dar, e receber.
E há algo que não se explica, mas
se traduz numa paz de alma indescritível quando sentimos que fizemos o bem.
Essa é a minha grande busca.
Que descanse em paz…
Ao neto André Babinha, à filha Dionísia,
e ao genro Vicente Ribeiro, envio um beijo enorme e as maiores condolências.
Na dor, nunca se esqueçam: não é
para sempre. Nós todos estamos em contagem decrescente. Vamos todos desfrutar do
tempo que ainda temos. Esse fim está sempre certo.
1 comentário:
Obrigado Pedro pela bela homenagem. Zé Bráz era uma pessoa especial.
Abraço Michiel Ibelings
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