Uma foto do meu querido amigo Pedro Silvério, creio eu, da última vez que te levei à torre de menagem do castelo de Marvão. Hoje seria impossível. E a tu cara? Ai meu Deus... que alto| |
Nestes
últimos estranhos tempos de recolhimento e aprendizagem comum, tenho-me
apercebido que muitas pessoas têm, de sua livre e espontânea vontade, iniciado
diários digitais nas diversas redes sociais, que funcionam como um manual de
sobrevivência ao isolamento, pois o convívio é, para nós, seres vivos,
absolutamente essencial, por sermos gregários e necessitarmos uns dos outros
como de ar para respirar. Perante esta manifestação, constato que o que está
realmente ali de essencial, não é aquilo que mostram aos outros, os jogos que
os entretêm em família, os ambientes onde vivem, mas o facto de combaterem a
solidão, por mais acompanhados que estejam. Aquilo pode não chegar a ninguém, o
que certamente não será o caso, mas a eles sabe-lhes como se fosse um maná dos
céus: aquece, consola, satisfaz, tranquiliza, rejuvenesce, é um sinal de
esperança e sanidade.
Sorrio
por dentro e percebo que este blogue é também precisamente não mais que isso, e
quem por cá costuma passar, ou o segue desde o início, há mais de 10 anos desta
aventura que é, no fundo, a minha vida; sabe-o perfeitamente.
Hoje
vivo um enorme dia de festa e aqui o quero partilhar, embora seja uma festa tão
completamente diferente da festa que poderia ser se tudo fosse tão diferente,
mas a verdade é que é festa na mesma! A minha Calizita completa hoje 89 anos de
vida, no dia em que começa a Primavera. Eu, que de todos os seus tão amados
sobrinhos, sinto que fui sempre diferente pelas contingências que rodearam a
minha vinda a este mundo, quero felicitá-la como o filho que nunca teve, porque
ela sempre foi uma segunda mãe para mim. Só não pariu, termo técnico utilizado
pelos que sabem, mas sempre foi uma fonte de amor, de aconchego tremenda, que
sempre me acompanhou ao longo da minha vida.
Calizita,
falo-te como se percebesses o que estou a dizer, a conversa fosse percetível, e
assim para ti, entendível. Faço-o porque para mim é mais fácil assim, porque é
melhor.
Fazes
anos e… não só não te lembras do que isso significa, como não te posso ir ver.
Gosto
tanto de ti…
Quero-te
tão bem. Amo-te tanto…
Não
me consigo lembrar de uma única vez na vida que te tenhas zangado comigo! Das
vezes em que tentaste, se é que o fizeste, porque não me lembro de uma só, antes
te deixavas rir e acabávamos os dois sem saber porque tinha começado tudo.
Falam-me
em ti, e eu… que passava os dias contigo na casa da tua mãe, a minha querida avózinha
Joaquina, lembro-me de estar muito pequenino, deitado na tua cama à noite,
resguardado do frio, embora morasse apenas a escassos metros dali, ao cimo da
rua. Nunca ouve pessoa no mundo da qual recebesse um amor tão puro, tão
benevolente, tão condescendente, tão sem pedir nada em troca. A mãe de verdade
sempre exigiu, e bem (comportamentos, pessoais e cívicos, prestações escolares…),
ralhava sempre que tinha de ensinar; a mulher sempre esperou um companheiro e
tudo o que ele deve dar, em todos os campos da vida conjugal, e desde que há
filhas, mais ainda; as outras tias tinham os seus próprios filhos, que
obviamente lhe ocupavam a atenção; mas… sei que sempre fui o teu menino, que
nasceu quando solteira como sempre foste, tinhas 42; e nem o meu irmão, que
chegou 6 anos depois, mereceu a mesma atenção porque, lá está, as tuas
contingências eram outras, a mercearia já estava aberta, e tudo era tão
diferente nesse então.
Agora acatamos, claro, as
orientações da Santa Casa da Misericórdia onde te encontras, que reduziu as
visitas a um familiar, e é a minha mãe quem habitualmente te visita, mas quando
assim não era, não passava uma semana sem que fosse ver como estavas, embora já
não saibas o que é isso do tempo. No final de cada visita, em vez da felicidade
do dever cumprido, ficava sempre antes com um sabor amargo na boca, e era
incapaz de deixar de me sentir um canalha, por deixar a sós que tudo fez por
mim.
Com as amigas da tua nova família, que tanto te tratam bem... A mina gratidão não tem fim... |
Depois das despedidas feitas fico sempre a olhar a sala onde costumas estar sentada, com todas as tuas colegas, tendo uma imagem da tua Nossa Senhora do Carmo colocada em cima do armário em frente, e respiro sempre fundo, pensando duas coisas: no bem que estás ali, e até quando cá te terei.
O
facto de ter conseguido que entrasses para a Santa Casa foi o garante que fez
com que pudesses estar ali mais 6 anos tão tranquilos, já desde 2014, quando
entraste; tão bem vigiados, tão higienizados, tão bem alimentados, tão felizes.
O
darem-te a comidinha na boca como aos passarinhos, muitas vezes passada, porque
até de mastigar te esqueceste; o estares sempre asseada, a cheirares bem; bem
vestida e aconchegada, bem vigiada medicamente, deixam-me estar tranquilo.
Das
vezes que lá estou, sempre que entra uma funcionária com quem tenho mais
proximidade, ou porque tem uma filha um pouco mais nova, mas da minha idade; ou
porque tem um filho a quem já dei explicações, de quem sou amigo e vizinho; ou
porque somos da mesma idade e mais próximos, diz: olha Cali…. Ai quem temos cá
hoje? É o menino? É o Pedro da Cali? Derreto-me todo por ver a alegria nos teus
olhos, com o ar de quem está mesmo a perceber e quase diz que sim, que o amor
ainda está em ti.
Há
muito que acredito que todos temos um plano a seguir nesta vida, e não somos só
nós que o definimos. Tu que lês, pensa na tua vida, e cedo perceberás que para
estares no sítio onde estás hoje, muita coisa aconteceu para teres essa
família, esse emprego, essa situação na vida, e muitas delas não foram
decididas por ti.
Não
sou egoísta ao ponto de pedir a Deus que te mantenha por cá mais um ano nesta
vida, embora isso seja aquilo que mais sonho e desejo. Não vegetas mas apenas
estás. Eu adoro sempre ver-te porque és minha, e esse corpo onde vives, foi
sempre o que me habituei a amar durante a vida toda. Esta situação é como se
tivesse um Ferrari na garagem… sem motor, que sei que já não me pode levar a
passear com grande estilo por onde quer que passe, nem dos 0 aos 100 km em
escassos segundos, mas que me enche de orgulho e amor apesar de estar já muito marcado pelo tempo, por ter de estar
suspenso por um guindaste. Mas está!
Causa-me
muita estranheza ver ao ponto em que podemos chegar. Como eras, meu Deus, que
primor de elegância, sempre muito bem arranjada; com uma delicadeza sóbria de
estar, uma perfeição nos trabalhos bordados que fazias (aprendidos na escola
das máquinas Singer, em Castelo Branco, onde viveste durante tantos anos); e como
estás hoje, na verdade, já de há muitos anos a esta parte, quando te foste
esvaindo como as ligações do teu mapa cerebral que te permitiam estar à tona e
ao nível dos outros.
As manas Sobreiro... |
A
tua mãe partiu com 86 num Dezembro azedo que me mostrou que assim do nada,
podemos mesmo perder quem adorávamos que estivesse cá, e sempre pensámos que
entre nós ficasse até que deixássemos de existir (embora soubéssemos que isso
seria impossível). Com a mesma idade da mãe, partiu a tua companheira, a tua irmã
mais velha, Maria, que descansou de vez, na segunda noite em que chegaram a
esta nova casa, derrotada por já não poder mais tomar conta da mais nova, mas
descansada por te saber tão bem. Os casos do teu pai (70), do teu irmão João,
meu pai (49), da tua irmã Mirene (56), e do seu filho João (44), foram mais
prematuros ainda, e até dói só de pensar no quanto poderíamos ainda desfrutar
deles, e eles de nós.
Por
isso, que eu saiba, tu que atinges hoje os 89, és a recordista da família. Obrigado por resistires,
também!
Saudade imensa... |
Se as
coisas fossem como eram dantes, tu hoje terias vestido um tailleur daqueles
clássicos que compraste numa loja qualquer em Barcelona, numa das tuas muitas
idas a acompanhar a tua amiga enfermeira Teresinha, às suas consultas
oftalmológicas; e terias nos convidado a todos, para irmos almoçar fora, ao
Sever, que era onde gostavas tanto de ir.
Na última grande alegria que te demos, quando as primas da Covilhã, e a Belinha cá vieram... |
Lembraste do nosso assobio? Pfui, pfu, pfiuuuuuuu. Na esquina, fosse a que horas da manhã fosse, e lá aparecias tu, a dizer adeus, e até amanhã.
De
todas, serás sempre a minha Cali. Um amor diferente.
Quero-te
tanto…
Enquanto
eu cá estiver…
E te puder continuar a dar estas alegrias... |
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