sábado, 21 de março de 2020

Parabéns, Calyzita!



Uma foto do meu querido amigo Pedro Silvério, creio eu, da última vez que te levei à torre de menagem do castelo de Marvão. Hoje seria impossível.
E a tu cara? Ai meu Deus... que alto| 

Nestes últimos estranhos tempos de recolhimento e aprendizagem comum, tenho-me apercebido que muitas pessoas têm, de sua livre e espontânea vontade, iniciado diários digitais nas diversas redes sociais, que funcionam como um manual de sobrevivência ao isolamento, pois o convívio é, para nós, seres vivos, absolutamente essencial, por sermos gregários e necessitarmos uns dos outros como de ar para respirar. Perante esta manifestação, constato que o que está realmente ali de essencial, não é aquilo que mostram aos outros, os jogos que os entretêm em família, os ambientes onde vivem, mas o facto de combaterem a solidão, por mais acompanhados que estejam. Aquilo pode não chegar a ninguém, o que certamente não será o caso, mas a eles sabe-lhes como se fosse um maná dos céus: aquece, consola, satisfaz, tranquiliza, rejuvenesce, é um sinal de esperança e sanidade.

Sorrio por dentro e percebo que este blogue é também precisamente não mais que isso, e quem por cá costuma passar, ou o segue desde o início, há mais de 10 anos desta aventura que é, no fundo, a minha vida; sabe-o perfeitamente.

Hoje vivo um enorme dia de festa e aqui o quero partilhar, embora seja uma festa tão completamente diferente da festa que poderia ser se tudo fosse tão diferente, mas a verdade é que é festa na mesma! A minha Calizita completa hoje 89 anos de vida, no dia em que começa a Primavera. Eu, que de todos os seus tão amados sobrinhos, sinto que fui sempre diferente pelas contingências que rodearam a minha vinda a este mundo, quero felicitá-la como o filho que nunca teve, porque ela sempre foi uma segunda mãe para mim. Só não pariu, termo técnico utilizado pelos que sabem, mas sempre foi uma fonte de amor, de aconchego tremenda, que sempre me acompanhou ao longo da minha vida.

Calizita, falo-te como se percebesses o que estou a dizer, a conversa fosse percetível, e assim para ti, entendível. Faço-o porque para mim é mais fácil assim, porque é melhor.
Fazes anos e… não só não te lembras do que isso significa, como não te posso ir ver.



Gosto tanto de ti…
Quero-te tão bem. Amo-te tanto…
Não me consigo lembrar de uma única vez na vida que te tenhas zangado comigo! Das vezes em que tentaste, se é que o fizeste, porque não me lembro de uma só, antes te deixavas rir e acabávamos os dois sem saber porque tinha começado tudo.

Falam-me em ti, e eu… que passava os dias contigo na casa da tua mãe, a minha querida avózinha Joaquina, lembro-me de estar muito pequenino, deitado na tua cama à noite, resguardado do frio, embora morasse apenas a escassos metros dali, ao cimo da rua. Nunca ouve pessoa no mundo da qual recebesse um amor tão puro, tão benevolente, tão condescendente, tão sem pedir nada em troca. A mãe de verdade sempre exigiu, e bem (comportamentos, pessoais e cívicos, prestações escolares…), ralhava sempre que tinha de ensinar; a mulher sempre esperou um companheiro e tudo o que ele deve dar, em todos os campos da vida conjugal, e desde que há filhas, mais ainda; as outras tias tinham os seus próprios filhos, que obviamente lhe ocupavam a atenção; mas… sei que sempre fui o teu menino, que nasceu quando solteira como sempre foste, tinhas 42; e nem o meu irmão, que chegou 6 anos depois, mereceu a mesma atenção porque, lá está, as tuas contingências eram outras, a mercearia já estava aberta, e tudo era tão diferente nesse então.

Agora acatamos, claro, as orientações da Santa Casa da Misericórdia onde te encontras, que reduziu as visitas a um familiar, e é a minha mãe quem habitualmente te visita, mas quando assim não era, não passava uma semana sem que fosse ver como estavas, embora já não saibas o que é isso do tempo. No final de cada visita, em vez da felicidade do dever cumprido, ficava sempre antes com um sabor amargo na boca, e era incapaz de deixar de me sentir um canalha, por deixar a sós que tudo fez por mim.

Com as amigas da tua nova família, que tanto te tratam bem...
A mina gratidão não tem fim...

Depois das despedidas feitas fico sempre a olhar a sala onde costumas estar sentada, com todas as tuas colegas, tendo uma imagem da tua Nossa Senhora do Carmo colocada em cima do armário em frente, e respiro sempre fundo, pensando duas coisas: no bem que estás ali, e até quando cá te terei.

O facto de ter conseguido que entrasses para a Santa Casa foi o garante que fez com que pudesses estar ali mais 6 anos tão tranquilos, já desde 2014, quando entraste; tão bem vigiados, tão higienizados, tão bem alimentados, tão felizes.
O darem-te a comidinha na boca como aos passarinhos, muitas vezes passada, porque até de mastigar te esqueceste; o estares sempre asseada, a cheirares bem; bem vestida e aconchegada, bem vigiada medicamente, deixam-me estar tranquilo.

Das vezes que lá estou, sempre que entra uma funcionária com quem tenho mais proximidade, ou porque tem uma filha um pouco mais nova, mas da minha idade; ou porque tem um filho a quem já dei explicações, de quem sou amigo e vizinho; ou porque somos da mesma idade e mais próximos, diz: olha Cali…. Ai quem temos cá hoje? É o menino? É o Pedro da Cali? Derreto-me todo por ver a alegria nos teus olhos, com o ar de quem está mesmo a perceber e quase diz que sim, que o amor ainda está em ti.

Há muito que acredito que todos temos um plano a seguir nesta vida, e não somos só nós que o definimos. Tu que lês, pensa na tua vida, e cedo perceberás que para estares no sítio onde estás hoje, muita coisa aconteceu para teres essa família, esse emprego, essa situação na vida, e muitas delas não foram decididas por ti.

Não sou egoísta ao ponto de pedir a Deus que te mantenha por cá mais um ano nesta vida, embora isso seja aquilo que mais sonho e desejo. Não vegetas mas apenas estás. Eu adoro sempre ver-te porque és minha, e esse corpo onde vives, foi sempre o que me habituei a amar durante a vida toda. Esta situação é como se tivesse um Ferrari na garagem… sem motor, que sei que já não me pode levar a passear com grande estilo por onde quer que passe, nem dos 0 aos 100 km em escassos segundos, mas que me enche de orgulho e amor apesar de estar já  muito marcado pelo tempo, por ter de estar suspenso por um guindaste. Mas está!

Causa-me muita estranheza ver ao ponto em que podemos chegar. Como eras, meu Deus, que primor de elegância, sempre muito bem arranjada; com uma delicadeza sóbria de estar, uma perfeição nos trabalhos bordados que fazias (aprendidos na escola das máquinas Singer, em Castelo Branco, onde viveste durante tantos anos); e como estás hoje, na verdade, já de há muitos anos a esta parte, quando te foste esvaindo como as ligações do teu mapa cerebral que te permitiam estar à tona e ao nível dos outros.

As manas Sobreiro...

A tua mãe partiu com 86 num Dezembro azedo que me mostrou que assim do nada, podemos mesmo perder quem adorávamos que estivesse cá, e sempre pensámos que entre nós ficasse até que deixássemos de existir (embora soubéssemos que isso seria impossível). Com a mesma idade da mãe, partiu a tua companheira, a tua irmã mais velha, Maria, que descansou de vez, na segunda noite em que chegaram a esta nova casa, derrotada por já não poder mais tomar conta da mais nova, mas descansada por te saber tão bem. Os casos do teu pai (70), do teu irmão João, meu pai (49), da tua irmã Mirene (56), e do seu filho João (44), foram mais prematuros ainda, e até dói só de pensar no quanto poderíamos ainda desfrutar deles, e eles de nós.
Por isso, que eu saiba, tu que atinges hoje os 89, és a recordista da família. Obrigado por resistires, também!

Saudade imensa...


Se as coisas fossem como eram dantes, tu hoje terias vestido um tailleur daqueles clássicos que compraste numa loja qualquer em Barcelona, numa das tuas muitas idas a acompanhar a tua amiga enfermeira Teresinha, às suas consultas oftalmológicas; e terias nos convidado a todos, para irmos almoçar fora, ao Sever, que era onde gostavas tanto de ir.


Na última grande alegria que te demos, quando as primas da Covilhã, e a Belinha cá vieram...

Lembraste do nosso assobio? Pfui, pfu, pfiuuuuuuu. Na esquina, fosse a que horas da manhã fosse, e lá aparecias tu, a dizer adeus, e até amanhã.

De todas, serás sempre a minha Cali. Um amor diferente.

Quero-te tanto…

Enquanto eu cá estiver…

E te puder continuar a dar estas alegrias...

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