terça-feira, 15 de julho de 2014

A Ti Bia apagou-se.

(Deus, como custa escrever estas coisas que são tão dolorosas... Vim de visitar a Cali na Santa Casa de Misericórdia, onde permanece sem sequer ter dado por falta da irmã e fechei-me no quarto. Liguei o ar condicionado, fui buscar o “meu puf” de estimação ao sótão e sentei-me a escrever. Em silêncio. À minha Cris disse apenas: “vou escrever…”. Ela já me conhece o suficiente para saber que entrei no consultório do meu psicólogo.
Há tempos encontrei o meu amigo Zé Manel Gavancha acompanhado da mulher com quem foi alterar o cartão do cidadão e assim que me viu, abriu a boca e deixou sair a emoção com espanto e em lágrimas. “Zé Manel, não faças isso”, dissemos alguns e ela respondeu, mulher coragem, “deixem-no chorar, deitar cá para fora.” Assim estou eu agora. A deitar cá para fora.

A Ti Bia adorava ler os meus textos. Dizia que ainda havia de ter um computador para os ler. Espero que este tenha ficado bem para ela. É quem interessa.)


Com as florzinhas que lhe levámos no ano passado, no dia de anos.

Morreu a Ti Bia. Morreu o último bastião da família Sobreiro.
A matriarca.
E eu vejo-me assim, aos 41 anos e pelas atuais circunstâncias como sendo o na detentor do ceptro da família. Uma família sem grandes posses, terras ou propriedades, sem títulos ou historial mas uma família rica, com honra, valores e que sempre trepou na vida por si, pelas suas capacidades.
Não esperava por isto. Estava em Lisboa desnoitado, cansadíssimo da jornada de festival de música que já não é para a minha idade, quase 20 horas a pé com apenas 4 horas dormidas quando o telefone toca para me dar a notícia assim a seco, de rompante com a voz do genro e o choro incrédulo da sua filha por trás. Duro. Coisas que nos marcam, que nos fazem subir um degrau. A vida é fodida e não traz um livro de instruções a explicar como é que se faz. Tem de se passar por elas. Felizmente sentei-me no chão da casa de banho para não acordar a Leonor e tentar perceber o que me estavam a dizer. Devo ter estado uma meia hora aparvalhado a olhar para o nada sem a conseguir encaixar. A velocidade com que o nosso cérebro processa os pensamentos nestas situações é estonteante. Tanta coisa e tão rápida… mas um enorme sentimento de culpa. Fui eu, fui eu, fui eu… desejando que tivesse tudo acontecido antes, quando ainda as duas estavam juntas na Beirã, quando eu não tinha sido chamado a intervir pelas circunstâncias da vida. Na praia apercebi-me de que ia com regularidade ao hospital, até que ficou internada; de como o genro Carlos estava sempre na retaguarda a orientar os comprimidos para a duas irmãs; de como a filha servia de ama de companhia à noite, dormindo separada do marido e na casa da tia; e eu sempre disse aquilo que aprendi depois do acidente: uma coisa de cada vez. Quando chegar aí, eu trato. E tratei.

O ideal seria que as coisas continuassem como até aqui. As duas juntas, levando a vida que queriam, continuando a ir para a loja todas as manhãs e tardes (só iam a casa dormir) onde “A Anta” lhes levava as refeições, onde as vizinhas iam passar horas na conversa e em tertúlias à volta do café e do rádio sempre ligado no terço da Renascença, dormindo as duas juntas na casa da Cremilde, vivendo já sem as condições, o asseio e a arrumação que sempre lhes conheci mas… juntas! (e isso era tudo.)



Mas a Maria já não podia mais e se morrer depressa é terrível, sobretudo para quem fica, morrer assim, com a lucidez de sempre e a força dos 20 anos aprisionadas num corpo de 80 já sem força, doente, a definhar e a precisar sempre dos outros… não deve ser muito melhor. Não pode ser muito melhor. Não pode. Num destes dias em que fui vê-la de manhã ao hospital, pediu-me que queria ver a irmã.
“Se queres, eu trago-ta cá”.


“Cali, sabes quem vamos ver? A tua irmã. Sabes como se chama?”
“A minha irmã? Sei. É a Maria”
No carro, no caminho: “E quem vamos ver agora, menina?”
“Oh… Agora… já não me lembro…”
Lá chegados, ficaram as duas em lágrimas, assim que se avistaram. A Maria, de saudade. A visitante, porque reconhecia as feições.
“Quem é Cali?”
“A minha mãe.”




 Na segunda-feira passada fui conhecer a médica que me fez o relatório e me disse que lhe ia dar alta. “Como está, doutora? Mal? É para morrer? Diga-me, eu quero saber o que aí vem.”
“Não. A sua tia está bem. São 86 mas desde que tome o Lasix para colocar os rins a funcionar, não lhe incham as pernas, não sobrecarrega o coração, fica bem. Prova disso é que está normalizada e vai ter alta ainda hoje!”
Eu, inocente e acreditando piamente no à vontade e não pensando na idade já tão avançada, cheguei junto a ela, radiante e disse-lhe: “Maria, ainda não é desta. És rija e vais-te aguentar.”
Ela sorriu.
“Quando fizeres 90, organizo-te uma grande festa de anos. Vou contratar a banda de Castelo de Vide para tocar os parabéns e tudo. Vais ver.”
“Maluco!”
“Não acreditas que sou capaz de fazer isso?!?”
“Ah, maluco… tu és capaz disso e muito mais”.
  
“Como é que te sentes, Ti Bia?”
“Cansada. Custa-me a respirar e as pernas pesam quilos.”
“E consegues dormir?”
“Há noite dá-me uma grande ansiedade. Acordo e fico a pensar. Custa-me não ter força.”
“Mas os teus olhos são tão bonitos, tão espertos, tão lúcidos...”
“A minha cabeça está sempre a pensar. Nunca estou parada. Se eu tivesse 20 anos…”
 “Eu também sou assim. Nunca me sinto só. Gosto de ter o meu espaço e estar sozinho a pensar.”




O dia em que as fui levar à Santa Casa da Misericórdia de Marvão foi dos mais difíceis da minha vida. Ainda bem que há estas casas mas… eu sei que há passos que se dão com convicção e aceitam bem como quando as duas me foram levar de comboio à universidade para gáudio dos meus amigos que as batizaram de pronto como as tias do Vasco Santana. Mas este… A Ti Bia ia contrariada que eu conhecia-a bem. Aceitou mas… Eu sentei-me à sua frente e expliquei-lhe antes de partirmos: “Ti Bia, a ida para este lugar não é por ti. Não és tu que precisas porque ainda tens a lucidez para seguir pelo teu pé. Mas tu és inteligente e compreendes que já não tens força suficiente para tomar conta e tratar da higiene da Cali. Com os amassos de saúde que tens tido ultimamente, já nem quase de ti consegues, quanto mais… Ali podem ter tudo aquilo que me pediste: um quartinho só para as duas, com muita categoria e higiene, acessível para as vossas possibilidades e reformas, com um pessoal especializado a nível técnico para vos apoiar e uma equipa de auxiliares de luxo, queridas e atenciosas. Ti Bia, não é por ti, é por ela, para estarem juntas. Repara que nem sequer aquele estigma que existe quanto aos horários tem fundamento. As horas fixas são para as refeições que são normais, como em nossas casas e à noite podem ficar até querer a ver televisão, por exemplo.




Perguntava-me muitas vezes: “ai filho, o que vai ser disto tudo quando morrermos. Que vai ser desta casa da Cali com tanto livro, tanto bibelot, tanto vestido, tanto sapato…”
“Ti Bia, depois logo se vê. Agora vamos para a Santa Casa e depois pensamos nisso.”

Mas ela não percebeu quando se mudou. A vizinha Manuela confidenciou-me depois que nessa primeira noite pediu-lhe que não a deixasse porque ia morrer.
“Ó Dona Maria, disparate. Então a senhora está aqui tão bem. Já viu? É de não estar habituada. Ande que eu levanto-lhe a caminha para que se sinta melhor.”
“Eu sei que isto é tudo muito bom e a minha irmã ficará bem entregue. Eu posso ir descansada sei que ela irá estar bem cuidada. Mas eu não quero a cama. É nela que vou morrer.”
Não foi nessa noite mas foi na noite seguinte. A equipa médica e a VMER ainda acorreram mas já não estava lá, naquele corpo cansado.
Podem dizer eu “ele há coisas” mas eu digo que os elefantes também pressentem a morte. Se não houver caçadores furtivos ou outra morte súbita, atravessam a selva para morrerem NO lugar. Se os outros animais a pressentem…
Não se ficou na primeira noite, como temeu. Foi na segunda. Ontem vi uma senhora que está lá a dormir, sem se mexer da cama há 18 anos. 18 anos. Não tem uma única ferida. O destino… Sobreviveu a um cancro de pele, suportou a diabetes, a dificuldade em e respirar mas…


Tinha uma relação muito especial com ela. Sempre me senti muito mais próximo da sua irmã Cremilde, na casa de quem fui quase sempre criado enquanto os pais trabalhavam e não havia prés. Mas sempre me senti muito parecido com ela. O meu lado rijo, duro, cerebral, obstinado, dedicado, certeiro. Ela achava-me parecido com o seu pai, o avô Sobreiro. Ainda há dias me disse: “Tu és o avôzinho, Pedro. Adoras ver-nos todos juntos e fazes tudo pela família. O avôzinho também era assim. Quando lhe dava saudades do nosso pessoal da Covilhã, metia-nos a todos no comboio e não descansava enquanto não estávamos todos à mesma mesa.”
Quando eu era estudante, havia sempre uma notinha e um macinho de cigarros. Gostava de me ver bem tratado e com coisas boas. Dizia-me que o meu pai (que foi quase seu filho, pela diferença de idades) também era assim e andava sempre uma estampa em Castelo Branco. Agora que as visitava com muita frequência, todas as semanas diversas vezes, exclamava: “mas hoje com outra toilette?”.
“Ó Ti Bia, temos de vestir diferente todos os dias… Agora é toda a gente assim…”


Ficámos ainda mais próximos depois do acidente. Deixou tudo, a casa, a loja e foi atrás de mim. Visitava-me todos os dias. Deu-me de comer na boca. Assustou-se da primeira vez que eu, sôfrego, comi peixe, cansado de tanto soro e tanta droga. Quis saber dos meus dentes que tinham voado no acidente e afinal já estavam todos no lugar. Mais tortos, com diferente inclinação mas os meus. Acidente que deixou marcas. Insisti depois do hospital: “Ti Bia, estás fraca, anda para minha casa, com a Cris e as miúdas até recuperares.”
“Para a tua casa? Dar trabalho? Deus me livre! Eu e a Cristina já passámos muito juntas (por ti) e não vou ser um peso. “
Não adiantava dizer-lhe o contrário porque já sabia como era. E foi como queria.



Esforcei-me ao máximo para que as minhas filhas bebessem dela e ela adorava isso. Adorava os natais, as páscoas e as festas de anos em minha casa; adorava o asseio, a arrumação e a minha casa toda que elogiava à exaustão. Queria a Cristina como uma filha que não teve.

A Leonor frequentou muito a loja quando ainda funcionava. Adorava os ovos estrelados com salsichas e as batatas fritas em azeite da Ti Bia, almoços que repetiu muitas vezes. Andava a dizer que agora nas férias haveriam de recuperar isso. Depois do choque da notícia, de conseguir andar, estive meia hora deitado na cama com a cabeça a mil à hora. A Leonor dormia ainda extenuada. Tomei banho em silêncio. Fiz a barba. Vesti-me e fui tomar o pequeno-almoço. Subi e acordei-a com um beijo. Tinha consulta e disse-lhe que tinha de se despachar. Desceu para tomar o pequeno almoço. Quando subiu, perguntei-lhe: “Então e essa noite? Dormiste bem? Descansaste? Eu também…
(minutos)
“O dia é que não começou muito bem”, disse.
“Então?”
“O coração da Ti Bia… Não aguentou…”
“A TI BIA MORREU?!?!?” e rompe num choro compulsivo de soluçar que eu tentei compreender enquanto a abraçava porque percebi que nunca tinha perdido ninguém assim tão próximo. Custou a passar, a entrar em si, a encaixar.
Na viajem perguntei-lhe se queria ir ver o corpo e disse-me que preferia não. Eu queria que percebesse que é normal, que é a coisa mais certa que temos todos na vida e que o que estava em câmara ardente é o corpo onde viveu a sua alma. Preferiu manter a imagem dela viva e eu aceitei. Seria como preferisse. A idade pode ainda não ser a suficiente.

Leonor na Beirã com 2 anos. Há 11.


A Alice está como a Cremilde. Ainda não se apercebeu. Quando der pela sua falta há-de saber que foi para o céu, para junto do Jesus. Mas guardou muito da Ti Bia e certamente não se irá esquecer de como iam as duas regar as árvores, das bolachinhas com chocolate da Biá, dos lanchinhos de pão com manteiga com leite e um bocadinho de café, dos geladinhos que comprava para si na carrinha do Xinóni (Family Frost), do antigo expositor de batatas fritas onde afixava todos os desenhinhos que ela fazia e de um quadro grande em papel da festa de despedida do vereador Pedro feito pela Catarina Bucho onde apontava a esferográfica todas as datas em que a íamos visitar.





Sinto um luto cá dentro. Silencioso. Escuro. Que dói e custa a passar. Mas que já começou. Aqui, no blogue.

Que fique em paz. E olhe por nós.

As manhãs que eu adorava passar agora, no Inverno, com sol e muita luz. Todos juntos. Ia sempre que podia.

4 comentários:

Filomena Sacramento disse...

A Ti Bia, onde estiver, está muito orgulhosa do seu sobrinho... O luto tem que ser feito querido amigo, a saudade vai ser dificil, mas o amor será eterno

Unknown disse...

Meu primo, ela nunca vai ser esquecida por inúmeras razões, quando falas-te nas batatas que a Leonor comia, eu só me consigo lembrar da sopinha de feijão que ela fazia como ninguém e do Frisumo de ananás fresquinho que eu bebia sempre que chegava da viagem. Vamos tentar estar mais unidos porque porra familia como a nossa há poucas. Um beijo grande

Maria João Gaivoto disse...

Caro Pedro, família sobreiro, as perdas humanas são das mais difíceis dores que temos de enfrentar neste privilégio que é viver, mas que por outro lado nos obriga a reflectir sobre a importância de quem passa e como passa e fica na nossa existência. Imagino a vossa tristeza hoje e o processo que será aprender a viver com a ausência desta presença tão marcante na vossa família. As manas Gaivoto e a mãe Deonilde (que de família, felizmente são muito abençoadas e por isso se comoveram e entenderam bem este teu desabafo) enviam os mais sentidos pêsames pela partida da Ti Bia, que felizmente também pelas nossas vidas passou e de quem guardamos boas e carinhosas memórias. Que descanse em paz a Ti Bia e que os seus sobrinhos a mantenham sempre viva com os seus eternos 20 anos nos seus corações.
Um beijinho no coração, Deonilde, Marta, Maria João e Vera Gaivoto.

Helena Barreta disse...

Um abraço, Pedro, para si e para toda a família.