(Deus,
como custa escrever estas coisas que são tão dolorosas... Vim de visitar a Cali
na Santa Casa de Misericórdia, onde permanece sem sequer ter dado por falta da
irmã e fechei-me no quarto. Liguei o ar condicionado, fui buscar o “meu puf” de
estimação ao sótão e sentei-me a escrever. Em silêncio. À minha Cris disse
apenas: “vou escrever…”. Ela já me conhece o suficiente para saber que entrei
no consultório do meu psicólogo.
Há
tempos encontrei o meu amigo Zé Manel Gavancha acompanhado da mulher com quem
foi alterar o cartão do cidadão e assim que me viu, abriu a boca e deixou sair
a emoção com espanto e em lágrimas. “Zé Manel, não faças isso”, dissemos alguns
e ela respondeu, mulher coragem, “deixem-no chorar, deitar cá para fora.” Assim
estou eu agora. A deitar cá para fora.
A Ti Bia adorava ler os meus textos. Dizia que ainda havia de ter um computador para os ler. Espero que este tenha ficado bem para ela. É quem interessa.)
Com as florzinhas que lhe levámos no ano passado, no dia de anos. |
Morreu
a Ti Bia. Morreu o último bastião da família Sobreiro.
A
matriarca.
E eu
vejo-me assim, aos 41 anos e pelas atuais circunstâncias como sendo o na detentor
do ceptro da família. Uma família sem grandes posses, terras ou propriedades,
sem títulos ou historial mas uma família rica, com honra, valores e que sempre
trepou na vida por si, pelas suas capacidades.
Não
esperava por isto. Estava em Lisboa desnoitado, cansadíssimo da jornada de
festival de música que já não é para a minha idade, quase 20 horas a pé com apenas
4 horas dormidas quando o telefone toca para me dar a notícia assim a seco, de
rompante com a voz do genro e o choro incrédulo da sua filha por trás. Duro.
Coisas que nos marcam, que nos fazem subir um degrau. A vida é fodida e não
traz um livro de instruções a explicar como é que se faz. Tem de se passar por
elas. Felizmente sentei-me no chão da casa de banho para não acordar a Leonor e
tentar perceber o que me estavam a dizer. Devo ter estado uma meia hora
aparvalhado a olhar para o nada sem a conseguir encaixar. A velocidade com que
o nosso cérebro processa os pensamentos nestas situações é estonteante. Tanta
coisa e tão rápida… mas um enorme sentimento de culpa. Fui eu, fui eu, fui eu…
desejando que tivesse tudo acontecido antes, quando ainda as duas estavam
juntas na Beirã, quando eu não tinha sido chamado a intervir pelas circunstâncias
da vida. Na praia apercebi-me de que ia com regularidade ao hospital, até que
ficou internada; de como o genro Carlos estava sempre na retaguarda a orientar
os comprimidos para a duas irmãs; de como a filha servia de ama de companhia à
noite, dormindo separada do marido e na casa da tia; e eu sempre disse aquilo
que aprendi depois do acidente: uma coisa de cada vez. Quando chegar aí, eu
trato. E tratei.
O
ideal seria que as coisas continuassem como até aqui. As duas juntas, levando a
vida que queriam, continuando a ir para a loja todas as manhãs e tardes (só iam
a casa dormir) onde “A Anta” lhes levava as refeições, onde as vizinhas iam
passar horas na conversa e em tertúlias à volta do café e do rádio sempre
ligado no terço da Renascença, dormindo as duas juntas na casa da Cremilde,
vivendo já sem as condições, o asseio e a arrumação que sempre lhes conheci mas…
juntas! (e isso era tudo.)
Mas
a Maria já não podia mais e se morrer depressa é terrível, sobretudo para quem
fica, morrer assim, com a lucidez de sempre e a força dos 20 anos aprisionadas
num corpo de 80 já sem força, doente, a definhar e a precisar sempre dos
outros… não deve ser muito melhor. Não pode ser muito melhor. Não pode. Num
destes dias em que fui vê-la de manhã ao hospital, pediu-me que queria ver a
irmã.
“Se
queres, eu trago-ta cá”.
“Cali,
sabes quem vamos ver? A tua irmã. Sabes como se chama?”
“A
minha irmã? Sei. É a Maria”
No
carro, no caminho: “E quem vamos ver agora, menina?”
“Oh…
Agora… já não me lembro…”
Lá
chegados, ficaram as duas em lágrimas, assim que se avistaram. A Maria, de
saudade. A visitante, porque reconhecia as feições.
“Quem
é Cali?”
“A
minha mãe.”
Na
segunda-feira passada fui conhecer a médica que me fez o relatório e me disse
que lhe ia dar alta. “Como está, doutora? Mal? É para morrer? Diga-me, eu quero
saber o que aí vem.”
“Não.
A sua tia está bem. São 86 mas desde que tome o Lasix para colocar os rins a
funcionar, não lhe incham as pernas, não sobrecarrega o coração, fica bem.
Prova disso é que está normalizada e vai ter alta ainda hoje!”
Eu,
inocente e acreditando piamente no à vontade e não pensando na idade já tão
avançada, cheguei junto a ela, radiante e disse-lhe: “Maria, ainda não é desta.
És rija e vais-te aguentar.”
Ela
sorriu.
“Quando
fizeres 90, organizo-te uma grande festa de anos. Vou contratar a banda de
Castelo de Vide para tocar os parabéns e tudo. Vais ver.”
“Maluco!”
“Não
acreditas que sou capaz de fazer isso?!?”
“Ah,
maluco… tu és capaz disso e muito mais”.
“Como
é que te sentes, Ti Bia?”
“Cansada.
Custa-me a respirar e as pernas pesam quilos.”
“E
consegues dormir?”
“Há
noite dá-me uma grande ansiedade. Acordo e fico a pensar. Custa-me não ter
força.”
“Mas
os teus olhos são tão bonitos, tão espertos, tão lúcidos...”
“A
minha cabeça está sempre a pensar. Nunca estou parada. Se eu tivesse 20 anos…”
“Eu também sou assim. Nunca me sinto só. Gosto
de ter o meu espaço e estar sozinho a pensar.”
O
dia em que as fui levar à Santa Casa da Misericórdia de Marvão foi dos mais
difíceis da minha vida. Ainda bem que há estas casas mas… eu sei que há passos
que se dão com convicção e aceitam bem como quando as duas me foram levar de comboio
à universidade para gáudio dos meus amigos que as batizaram de pronto como as
tias do Vasco Santana. Mas este… A Ti Bia ia contrariada que eu conhecia-a bem.
Aceitou mas… Eu sentei-me à sua frente e expliquei-lhe antes de partirmos: “Ti
Bia, a ida para este lugar não é por ti. Não és tu que precisas porque ainda
tens a lucidez para seguir pelo teu pé. Mas tu és inteligente e compreendes que
já não tens força suficiente para tomar conta e tratar da higiene da Cali. Com
os amassos de saúde que tens tido ultimamente, já nem quase de ti consegues,
quanto mais… Ali podem ter tudo aquilo que me pediste: um quartinho só para as
duas, com muita categoria e higiene, acessível para as vossas possibilidades e
reformas, com um pessoal especializado a nível técnico para vos apoiar e uma
equipa de auxiliares de luxo, queridas e atenciosas. Ti Bia, não é por ti, é
por ela, para estarem juntas. Repara que nem sequer aquele estigma que existe
quanto aos horários tem fundamento. As horas fixas são para as refeições que
são normais, como em nossas casas e à noite podem ficar até querer a ver
televisão, por exemplo.
Perguntava-me
muitas vezes: “ai filho, o que vai ser disto tudo quando morrermos. Que vai ser
desta casa da Cali com tanto livro, tanto bibelot, tanto vestido, tanto
sapato…”
“Ti
Bia, depois logo se vê. Agora vamos para a Santa Casa e depois pensamos nisso.”
Mas
ela não percebeu quando se mudou. A vizinha Manuela confidenciou-me depois que
nessa primeira noite pediu-lhe que não a deixasse porque ia morrer.
“Ó
Dona Maria, disparate. Então a senhora está aqui tão bem. Já viu? É de não
estar habituada. Ande que eu levanto-lhe a caminha para que se sinta melhor.”
“Eu
sei que isto é tudo muito bom e a minha irmã ficará bem entregue. Eu posso ir
descansada sei que ela irá estar bem cuidada. Mas eu não quero a cama. É nela
que vou morrer.”
Não
foi nessa noite mas foi na noite seguinte. A equipa médica e a VMER ainda
acorreram mas já não estava lá, naquele corpo cansado.
Podem
dizer eu “ele há coisas” mas eu digo que os elefantes também pressentem a
morte. Se não houver caçadores furtivos ou outra morte súbita, atravessam a
selva para morrerem NO lugar. Se os outros animais a pressentem…
Não
se ficou na primeira noite, como temeu. Foi na segunda. Ontem vi uma senhora
que está lá a dormir, sem se mexer da cama há 18 anos. 18 anos. Não tem uma
única ferida. O destino… Sobreviveu a um cancro de pele, suportou a diabetes, a
dificuldade em e respirar mas…
Tinha
uma relação muito especial com ela. Sempre me senti muito mais próximo da sua
irmã Cremilde, na casa de quem fui quase sempre criado enquanto os pais
trabalhavam e não havia prés. Mas sempre me senti muito parecido com ela. O meu
lado rijo, duro, cerebral, obstinado, dedicado, certeiro. Ela achava-me
parecido com o seu pai, o avô Sobreiro. Ainda há dias me disse: “Tu és o avôzinho,
Pedro. Adoras ver-nos todos juntos e fazes tudo pela família. O avôzinho também
era assim. Quando lhe dava saudades do nosso pessoal da Covilhã, metia-nos a
todos no comboio e não descansava enquanto não estávamos todos à mesma mesa.”
Quando
eu era estudante, havia sempre uma notinha e um macinho de cigarros. Gostava de
me ver bem tratado e com coisas boas. Dizia-me que o meu pai (que foi quase seu
filho, pela diferença de idades) também era assim e andava sempre uma estampa
em Castelo Branco. Agora que as visitava com muita frequência, todas as semanas
diversas vezes, exclamava: “mas hoje com outra toilette?”.
“Ó
Ti Bia, temos de vestir diferente todos os dias… Agora é toda a gente assim…”
Ficámos
ainda mais próximos depois do acidente. Deixou tudo, a casa, a loja e foi atrás
de mim. Visitava-me todos os dias. Deu-me de comer na boca. Assustou-se da
primeira vez que eu, sôfrego,
comi peixe, cansado de tanto soro e tanta droga. Quis saber dos meus dentes que
tinham voado no acidente e afinal já estavam todos no lugar. Mais tortos, com
diferente inclinação mas os meus. Acidente que deixou marcas. Insisti depois do
hospital: “Ti Bia, estás fraca, anda para minha casa, com a Cris e as miúdas
até recuperares.”
“Para
a tua casa? Dar trabalho? Deus me livre! Eu e a Cristina já passámos muito
juntas (por ti) e não vou ser um peso. “
Não
adiantava dizer-lhe o contrário porque já sabia como era. E foi como queria.
Esforcei-me
ao máximo para que as minhas filhas bebessem dela e ela adorava isso. Adorava
os natais, as páscoas e as festas de anos em minha casa; adorava o asseio, a arrumação e a minha casa
toda que elogiava à exaustão. Queria a Cristina como uma filha que não teve.
A
Leonor frequentou muito a loja quando ainda funcionava. Adorava os ovos
estrelados com salsichas e as batatas fritas em azeite da Ti Bia, almoços que
repetiu muitas vezes. Andava a dizer que agora nas férias haveriam de recuperar
isso. Depois do choque da notícia, de conseguir andar, estive meia hora deitado
na cama com a cabeça a mil à hora. A Leonor dormia ainda extenuada. Tomei banho
em silêncio. Fiz a barba. Vesti-me e fui tomar o pequeno-almoço. Subi e
acordei-a com um beijo. Tinha consulta e disse-lhe que tinha de se despachar.
Desceu para tomar o pequeno almoço. Quando subiu, perguntei-lhe: “Então e essa
noite? Dormiste bem? Descansaste? Eu também…
(minutos)
“O
dia é que não começou muito bem”, disse.
“Então?”
“O
coração da Ti Bia… Não aguentou…”
“A
TI BIA MORREU?!?!?” e rompe num choro compulsivo de soluçar que eu tentei
compreender enquanto a abraçava porque percebi que nunca tinha perdido ninguém
assim tão próximo. Custou a passar, a entrar em si, a encaixar.
Na
viajem perguntei-lhe se queria ir ver o corpo e disse-me que preferia não. Eu
queria que percebesse que é normal, que é a coisa mais certa que temos todos na
vida e que o que estava em câmara ardente é o corpo onde viveu a sua alma.
Preferiu manter a imagem dela viva e eu aceitei. Seria como preferisse. A idade
pode ainda não ser a suficiente.
Leonor na Beirã com 2 anos. Há 11. |
A
Alice está como a Cremilde. Ainda não se apercebeu. Quando der pela sua falta
há-de saber que foi para o céu, para junto do Jesus. Mas guardou muito da Ti
Bia e certamente não se irá esquecer de como iam as duas regar as árvores, das
bolachinhas com chocolate da Biá, dos lanchinhos de pão com manteiga com leite
e um bocadinho de café, dos geladinhos que comprava para si na carrinha do
Xinóni (Family Frost), do antigo expositor de batatas fritas onde afixava todos
os desenhinhos que ela fazia e de um quadro grande em papel da festa de
despedida do vereador Pedro feito pela Catarina Bucho onde apontava a
esferográfica todas as datas em que a íamos visitar.
Sinto
um luto cá dentro. Silencioso. Escuro. Que dói e custa a passar. Mas que já
começou. Aqui, no blogue.
Que
fique em paz. E olhe por nós.
As manhãs que eu adorava passar agora, no Inverno, com sol e muita luz. Todos juntos. Ia sempre que podia. |
4 comentários:
A Ti Bia, onde estiver, está muito orgulhosa do seu sobrinho... O luto tem que ser feito querido amigo, a saudade vai ser dificil, mas o amor será eterno
Meu primo, ela nunca vai ser esquecida por inúmeras razões, quando falas-te nas batatas que a Leonor comia, eu só me consigo lembrar da sopinha de feijão que ela fazia como ninguém e do Frisumo de ananás fresquinho que eu bebia sempre que chegava da viagem. Vamos tentar estar mais unidos porque porra familia como a nossa há poucas. Um beijo grande
Caro Pedro, família sobreiro, as perdas humanas são das mais difíceis dores que temos de enfrentar neste privilégio que é viver, mas que por outro lado nos obriga a reflectir sobre a importância de quem passa e como passa e fica na nossa existência. Imagino a vossa tristeza hoje e o processo que será aprender a viver com a ausência desta presença tão marcante na vossa família. As manas Gaivoto e a mãe Deonilde (que de família, felizmente são muito abençoadas e por isso se comoveram e entenderam bem este teu desabafo) enviam os mais sentidos pêsames pela partida da Ti Bia, que felizmente também pelas nossas vidas passou e de quem guardamos boas e carinhosas memórias. Que descanse em paz a Ti Bia e que os seus sobrinhos a mantenham sempre viva com os seus eternos 20 anos nos seus corações.
Um beijinho no coração, Deonilde, Marta, Maria João e Vera Gaivoto.
Um abraço, Pedro, para si e para toda a família.
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