terça-feira, 5 de dezembro de 2017

A Beirã (sempre ela), para uma festa, e um adeus…


A Beirã é o centro nevrálgico da minha vida. Nela nasci, nela cresci, nela me fiz homem, e quando a vida terminar, é a ela que quero que os meus restos regressem. Dali parti, e ali quero regressar. Aquele que é o meu centro geodésico.

Hoje, dia 5 de Dezembro, a ela regressei, para celebrar uma vida, e lamentar a perda de outra.

O meu amigo, poeta, António Manuel Vaz Gonçalves, fez hoje 53 anos. E mesmo que eu me pudesse esquecer, coisa que certamente não aconteceria, ele fez questão de a assegurar.
Como?
O chefe disse-me: “Pedro… podes chegar ao telefone? É para ti. É o teu amigo António.”

- Alô? Quem falas-me?

- MAAAAAAAAANNNNNNNNNNNN… Crooner!

AMANHÃ FAÇO ANOS!!!!!!!!!!!

- Eu sei, bebé! Sei o teu dia de cor, e o do menino Jasus! Como é que me poderia esquecer?!?!?

- Ah… fixe! Faço 53!

- Graças a Deus. E que queres tu, que o teu tio Sabi te faça, meu amore?

- Nada, nada, man! Era só para saberes.

Claro que hoje de manhã, à primeira hora, lhe liguei. Cantando a minha canção dos amigos especiais (com voz de palhacito): “Hoje é dia dos teus anos, porisso estamos aqui, como ameguenhos que somos, acantare sóparati! Parabénsavocê! Nestadataqueri…da, muitas fe-li-ci-da-des, muitos anos de vida, hojeédiade festaaa, cantam as nossas almas, parao meu amiguinho António, uma salva de… palmas!”


E ele do outro lado, “eheheheheheheh”.


E disse-lhe: “MAN!!! Logo quando sair, vou ter contigo!” (para ele andar o dia todo contente, a pensar nisso)

- A que horas, man?!?

- Sempre depois de sair, mano! Lá para as 4 e tal… vamos lanchar, ok? Tu fazes os anos, mas sou eu que te convido.

- Iá, na boa.

Cheguei assim que saí. Deviam ser perto das 5, ou pouco faltava. Assim que parei o carro, 
toquei a buzina, à porta. Aparece-me de pijama e roupão, de braços abertos:


- “MAAAAAAAAAN!!! Agora já não dá! É quase hora de jantar! Às 6 e meia, é hora da Anta trazer o jantar!

- Ouve, mas… (disse eu, olhando para o relógio), são cinco e…

- Ah, iá, na boa! Podemos ficar aqui a fumar um cigarro. Queres entrar? Queres sentar-te aqui na cadeirinha do jardim? Ainda está sol. Olha vou-te fazer um café bom, na minha máquina de fazer café.


- Isso seria ótimo.

- Man… antes que os meus pais vejam, emprestas-me 5 euros? Paguei os cafés à malta toda dos Barretos, ao pessoal do bairro, da Anta, só recebo dia 20, e fiquei sem guito nenhum.

- (Abrindo a carteira) Não sei se tenho, mas… olha! só tenho 20. Não tenho destrocado…

- Ouve man… esquece o meu café. Vais ali ao Jorge, bebes um café, e trocas.

- Tó, a tua velocidade a pensar, impressiona-me sempre! É vertigionosa!
(rindo baixinho às gargalhadas) Eheheh, va lá, vai, que eu espero aqui (de perna trocada, no jardim).

Voltei com o troco na hora e trouxe-lhe o rebuçadinho que oferecem, de cortesia, no café.

- Olha-me bem o que te trouxe…

- Fixe! Esses de café, são ótimos.

- Ouve man… Agora quando receber, não vou lá a Marvão devolver-te estes 5 euros (como faz sempre. Bem cedo. Ainda antes de abrirmos ao público, Depois fica na rua, à espera.) Não vou porque está muito frio!

- Claro, man!!!!! Agora temos as contas saldadas! Pagas sempre os empréstimos, portanto, eu confio em ti, como não?

- Quando for lá um dia a Santo António, vou lá à tua casa, tu dás-me um cafezinho, um “S” daqueles belíssimos da tua sogra, bebemos, comemos e fumamos no teu quintal, como no outro dia, e pago-te.

- Já me estás a impressionar outra vez. Mágico!

Começámos a conversar, o que era para fazermos, afinal.

- Man… já faço 53, já viste? Uma cena... De vez em quando, acordo de noite para ir à casa de banho, venho beber um café, fumar um cigarro, e ponho-me a pensar. Na vida como ela é.


- Sabes, eu sempre fui uma criança muito solitária.

- Talvez por seres filho único.

- Iá… é capaz de ser por isso. Estás a ver aqueles canchos além? Eu passava os dias inteiros a brincar ali. Com o Fernando Belo, o Magafo, o Rui Felino…

- Qual Magafo? O mais velho, ou o mais novo?

- Com os dois. Mas por vezes ficava ali a brincar sozinho. Sempre passei, e gostei de passar muito tempo sozinho.

- Eu, estranhamente (porque sempre me relacionei muito com os outros), também. 


Quando vim do Júlio de Matos, vinha no Lusitânia (Expresso, comboio que passava aqui por volta da 1 hora da manhã). E cheguei aqui sem nada. Tinha apenas uma camisola vestida.

- Tens memória desses tempos, Tó?

- (Fumando, mastigando o fumo) Tenho, man. Aquilo comia-se muita mal. Não valia nada. 

E os enfermeiros batiam no pessoal…

- A ti?!?!? (que sempre foste enorme)

- Não, a mim, não. Nunca me bateram. Mas lembro-me dos gajos, a darem estalos nos pacientes. E nunca me davam tabaco. Naquele período em que lá estive (creio que dois ou três meses), fumei apenas um único cigarro, que me ofereceram.


E foste para lá porquê? Recordas-te?


Falou-me dos ataques de pênico, que chagavam a demorar horas, dias, em que tinha medo de tudo, gesticulava, e não conseguia tomar conta do corpo. Destruindo muitos mitos e conceitos acerca dele, assegurou que nunca tomou drogas duras injetadas, e ao contato com elas, se limitou a cheirar coca. Confessou que o seu grande problema sempre foi o álcool. Hoje em dia, disse-me firme, que a sua doença se resume à bipolaridade, muito atenuada pela injetável, que toma com regularidade, e lhe permite ter uma vida absolutamente normal.

- Man, não me falta nada!

- Que bom que é ouvir isso, Tó.

-Tenho televisão, internet, computador, telefone, boas refeições, casa, durmo muito bem durante 7 horas, e quando assim é… está tudo bem.

- Maravilha.

- Epá, não sabia daquilo que me disseste ontem, que o Zé Pedro dos Xutos tinha morrido. Não vejo televisão e notícias…

- É… chegou a hora dele. Mas, viveu bem a sua parte. Muito álcool, muita droga dura, muito aceleramento. Ainda era novo mas… com um transplante hepático… Teve honras de Estado. Saiu dos Jerónimos com o pessoal todo a cantar o “homem do leme”, às costas dos seus companheiros de sempre… Eu é que já não consigo chorar, porque, tinha sido uma lágrima muita bem vertida. Olha, eu mostro-te no telemóvel… (mas depois, não sei porquê… passou.)  


- Olha, bacano, temos que nos aconchegar que o sol pôs-se, e fica um frio do camandro.

- Pois é. Podes crer. Vou ali levar-te ao carro.
(E ficou a dizer-me adeus, de robe, todo sorridente, caminho do leitor de DVD, para ver o dvd do “Rattle and Hum”, dos U2, que lhe ofereci dos meus.)

- Este ainda nunca o vi. Deve ser demais.

- Os putos irlandeses a descobrirem o maior país do mundo (em termos culturais, para nós).
Mr. Teacher: it’s an hell of a ride!


Nesse mesmo instante passou a carrinha funerária, com o corpo do Sr. Joaquim Viegas, mais uma figura icónica da Beirã, que se vai. Colega de escritório do meu pai, sentado na secretária à frente da dele, conhecia o Jaquim de toda a vida. O Jaquim… maluco, como era tratado por quase por todos. A loucura aqui, era um cognome não depreciativo, de tonto, de menor; mas sim de arrojo, porque ele era um homem, ao qual ninguém ficava indiferente. Ou se adorava, ou não se gostava nada.


Inteligente (o meu pai estava sempre a gabá-lo), era um gajo de repentes, de convicções fortes, e expansivo. Grande lagartão na 5ª casa, tal e qual como o meu pai, vivia a paixão sportinguista de uma forma, absolutamente avassaladora. Lembro-me dele, quando o Sporting foi campeão, ao fim de muitos anos, de ter subido em êxtase a rua do Café Nicau, vestido com uma bandeira de manto, e um leão enorme debaixo do braço.


Viveu a vida, como quis, e os vícios, de forma muito convicta, também. Nisso, era tal e qual como o colega João Sobreiro, quer no que diz respeito ao álcool, quer no que respeita ao fumo. No auge das suas vidas, não eram alcoólicos, daqueles que nos habituámos a ver na televisão, na vida, nas séries e nos filmes, mas era raro o dia em que não bebiam um copito. E muitas vezes, tantas vezes, demais. Como demais eram os maços de cigarros que fumavam ao dia, que certamente, muitas vezes, passavam dos dois. Nunca menos, sempre para mais. Ora, 40 x 365, dá 14 600 por ano. A multiplicar por 10 anos = 146 000. Vezes 20… e por aí fora. Ou seja, muito cigarro, nada de bom. Mas… quem nada disso faz, também marcha, e eles, tiveram o prazer de terem podido fazer isso.


Ultimamente via-o mas, ficava sempre triste por o ver. Tentava encobrir isso, brincar com ele, meter-me por causa da bola, ou outra cena qualquer, mas… estava sempre com dificuldade de respirar, sempre com a malinha do oxigénio atrás, passava.


Soube há dias que estava muito mal nos paliativos do Hospital. Quando ali se entra… as pessoas sabem que o regresso à vida, pelo menos da forma que os que os amam, queriam, será difícil.


Falei há dias com a Carla Alexandra, que trabalhou no infantário, de quem gosto muito e tenho muito respeito e admiração (quanto mais não seja, pela forma como se tem adaptado às diferentes ocupações que tem tido depois do infantário, onde a conheci), e ela foi-me dando notícias dele.
Sabia pela minha mãe, amiga profunda, como família, que estava mesmo por um fio.


Pedi a Deus, tenho pedido há dias, que lhe fizesse o melhor.


Agora, espero, peço que esteja em paz.

Entre o esplendor da luz perpétua. (que é uma imagem belíssima, e me dá imensa paz).

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