A
Beirã é o centro nevrálgico da minha vida. Nela nasci, nela cresci, nela me fiz
homem, e quando a vida terminar, é a ela que quero que os meus restos
regressem. Dali parti, e ali quero regressar. Aquele que é o meu centro
geodésico.
Hoje,
dia 5 de Dezembro, a ela regressei, para celebrar uma vida, e lamentar a perda
de outra.
O
meu amigo, poeta, António Manuel Vaz Gonçalves, fez hoje 53 anos. E mesmo que
eu me pudesse esquecer, coisa que certamente não aconteceria, ele fez questão
de a assegurar.
Como?
O
chefe disse-me: “Pedro… podes chegar ao telefone? É para ti. É o teu amigo
António.”
-
Alô? Quem falas-me?
-
MAAAAAAAAANNNNNNNNNNNN… Crooner!
AMANHÃ
FAÇO ANOS!!!!!!!!!!!
-
Eu sei, bebé! Sei o teu dia de cor, e o do menino Jasus! Como é que me poderia
esquecer?!?!?
-
Ah… fixe! Faço 53!
-
Graças a Deus. E que queres tu, que o teu tio Sabi te faça, meu amore?
-
Nada, nada, man! Era só para saberes.
Claro
que hoje de manhã, à primeira hora, lhe liguei. Cantando a minha canção dos
amigos especiais (com voz de palhacito): “Hoje é dia dos teus anos, porisso
estamos aqui, como ameguenhos que somos, acantare sóparati! Parabénsavocê!
Nestadataqueri…da, muitas fe-li-ci-da-des, muitos anos de vida, hojeédiade
festaaa, cantam as nossas almas, parao meu amiguinho António, uma salva de…
palmas!”
E
ele do outro lado, “eheheheheheheh”.
E
disse-lhe: “MAN!!! Logo quando sair, vou ter contigo!” (para ele andar o dia
todo contente, a pensar nisso)
-
A que horas, man?!?
-
Sempre depois de sair, mano! Lá para as 4 e tal… vamos lanchar, ok? Tu fazes os
anos, mas sou eu que te convido.
-
Iá, na boa.
Cheguei
assim que saí. Deviam ser perto das 5, ou pouco faltava. Assim que parei o
carro,
toquei a buzina, à porta. Aparece-me de pijama e roupão, de braços
abertos:
-
“MAAAAAAAAAN!!! Agora já não dá! É quase hora de jantar! Às 6 e meia, é hora da
Anta trazer o jantar!
-
Ouve, mas… (disse eu, olhando para o relógio), são cinco e…
-
Ah, iá, na boa! Podemos ficar aqui a fumar um cigarro. Queres entrar? Queres
sentar-te aqui na cadeirinha do jardim? Ainda está sol. Olha vou-te fazer um
café bom, na minha máquina de fazer café.
-
Isso seria ótimo.
-
Man… antes que os meus pais vejam, emprestas-me 5 euros? Paguei os cafés à
malta toda dos Barretos, ao pessoal do bairro, da Anta, só recebo dia 20, e
fiquei sem guito nenhum.
-
(Abrindo a carteira) Não sei se tenho, mas… olha! só tenho 20. Não tenho
destrocado…
-
Ouve man… esquece o meu café. Vais ali ao Jorge, bebes um café, e trocas.
-
Tó, a tua velocidade a pensar, impressiona-me sempre! É vertigionosa!
(rindo
baixinho às gargalhadas) Eheheh, va lá, vai, que eu espero aqui (de perna
trocada, no jardim).
Voltei
com o troco na hora e trouxe-lhe o rebuçadinho que oferecem, de cortesia, no
café.
-
Olha-me bem o que te trouxe…
-
Fixe! Esses de café, são ótimos.
-
Ouve man… Agora quando receber, não vou lá a Marvão devolver-te estes 5 euros
(como faz sempre. Bem cedo. Ainda antes de abrirmos ao público, Depois fica na
rua, à espera.) Não vou porque está muito frio!
-
Claro, man!!!!! Agora temos as contas saldadas! Pagas sempre os empréstimos,
portanto, eu confio em ti, como não?
-
Quando for lá um dia a Santo António, vou lá à tua casa, tu dás-me um
cafezinho, um “S” daqueles belíssimos da tua sogra, bebemos, comemos e fumamos
no teu quintal, como no outro dia, e pago-te.
-
Já me estás a impressionar outra vez. Mágico!
Começámos
a conversar, o que era para fazermos, afinal.
-
Man… já faço 53, já viste? Uma cena... De vez em quando, acordo de noite para
ir à casa de banho, venho beber um café, fumar um cigarro, e ponho-me a pensar.
Na vida como ela é.
Quando
vim do Júlio de Matos, vinha no Lusitânia (Expresso, comboio que passava aqui
por volta da 1 hora da manhã). E cheguei aqui sem nada. Tinha apenas uma
camisola vestida.
-
Tens memória desses tempos, Tó?
-
(Fumando, mastigando o fumo) Tenho, man. Aquilo comia-se muita mal. Não valia
nada.
E os enfermeiros batiam no pessoal…
-
A ti?!?!? (que sempre foste enorme)
-
Não, a mim, não. Nunca me bateram. Mas lembro-me dos gajos, a darem estalos nos
pacientes. E nunca me davam tabaco. Naquele período em que lá estive (creio que
dois ou três meses), fumei apenas um único cigarro, que me ofereceram.
E
foste para lá porquê? Recordas-te?
Falou-me
dos ataques de pênico, que chagavam a demorar horas, dias, em que tinha medo de
tudo, gesticulava, e não conseguia tomar conta do corpo. Destruindo muitos
mitos e conceitos acerca dele, assegurou que nunca tomou drogas duras
injetadas, e ao contato com elas, se limitou a cheirar coca. Confessou que o
seu grande problema sempre foi o álcool. Hoje em dia, disse-me firme, que a sua
doença se resume à bipolaridade, muito atenuada pela injetável, que toma com
regularidade, e lhe permite ter uma vida absolutamente normal.
-
Man, não me falta nada!
-
Que bom que é ouvir isso, Tó.
-Tenho
televisão, internet, computador, telefone, boas refeições, casa, durmo muito
bem durante 7 horas, e quando assim é… está tudo bem.
-
Maravilha.
-
Epá, não sabia daquilo que me disseste ontem, que o Zé Pedro dos Xutos tinha
morrido. Não vejo televisão e notícias…
-
É… chegou a hora dele. Mas, viveu bem a sua parte. Muito álcool, muita droga
dura, muito aceleramento. Ainda era novo mas… com um transplante hepático… Teve
honras de Estado. Saiu dos Jerónimos com o pessoal todo a cantar o “homem do
leme”, às costas dos seus companheiros de sempre… Eu é que já não consigo
chorar, porque, tinha sido uma lágrima muita bem vertida. Olha, eu mostro-te no
telemóvel… (mas depois, não sei porquê… passou.)
-
Olha, bacano, temos que nos aconchegar que o sol pôs-se, e fica um frio do
camandro.
-
Pois é. Podes crer. Vou ali levar-te ao carro.
(E
ficou a dizer-me adeus, de robe, todo sorridente, caminho do leitor de DVD,
para ver o dvd do “Rattle and Hum”, dos U2, que lhe ofereci dos meus.)
-
Este ainda nunca o vi. Deve ser demais.
-
Os putos irlandeses a descobrirem o maior país do mundo (em termos culturais,
para nós).
Mr.
Teacher: it’s an hell of a ride!
Nesse
mesmo instante passou a carrinha funerária, com o corpo do Sr. Joaquim Viegas,
mais uma figura icónica da Beirã, que se vai. Colega de escritório do meu pai,
sentado na secretária à frente da dele, conhecia o Jaquim de toda a vida. O
Jaquim… maluco, como era tratado por quase por todos. A loucura aqui, era um
cognome não depreciativo, de tonto, de menor; mas sim de arrojo, porque ele era
um homem, ao qual ninguém ficava indiferente. Ou se adorava, ou não se gostava
nada.
Inteligente
(o meu pai estava sempre a gabá-lo), era um gajo de repentes, de convicções
fortes, e expansivo. Grande lagartão na 5ª casa, tal e qual como o meu pai,
vivia a paixão sportinguista de uma forma, absolutamente avassaladora.
Lembro-me dele, quando o Sporting foi campeão, ao fim de muitos anos, de ter
subido em êxtase a rua do Café Nicau, vestido com uma bandeira de manto, e um
leão enorme debaixo do braço.
Viveu
a vida, como quis, e os vícios, de forma muito convicta, também. Nisso, era tal
e qual como o colega João Sobreiro, quer no que diz respeito ao álcool, quer no
que respeita ao fumo. No auge das suas vidas, não eram alcoólicos, daqueles que
nos habituámos a ver na televisão, na vida, nas séries e nos filmes, mas era
raro o dia em que não bebiam um copito. E muitas vezes, tantas vezes, demais.
Como demais eram os maços de cigarros que fumavam ao dia, que certamente,
muitas vezes, passavam dos dois. Nunca menos, sempre para mais. Ora, 40 x 365,
dá 14 600 por ano. A multiplicar por 10 anos = 146 000. Vezes 20… e
por aí fora. Ou seja, muito cigarro, nada de bom. Mas… quem nada disso faz, também
marcha, e eles, tiveram o prazer de terem podido fazer isso.
Ultimamente
via-o mas, ficava sempre triste por o ver. Tentava encobrir isso, brincar com
ele, meter-me por causa da bola, ou outra cena qualquer, mas… estava sempre com
dificuldade de respirar, sempre com a malinha do oxigénio atrás, passava.
Soube
há dias que estava muito mal nos paliativos do Hospital. Quando ali se entra…
as pessoas sabem que o regresso à vida, pelo menos da forma que os que os amam,
queriam, será difícil.
Falei
há dias com a Carla Alexandra, que trabalhou no infantário, de quem gosto muito
e tenho muito respeito e admiração (quanto mais não seja, pela forma como se
tem adaptado às diferentes ocupações que tem tido depois do infantário, onde a
conheci), e ela foi-me dando notícias dele.
Sabia
pela minha mãe, amiga profunda, como família, que estava mesmo por um fio.
Pedi
a Deus, tenho pedido há dias, que lhe fizesse o melhor.
Agora,
espero, peço que esteja em paz.
Entre
o esplendor da luz perpétua. (que é uma imagem belíssima, e me dá imensa paz).
Sem comentários:
Enviar um comentário