terça-feira, 19 de janeiro de 2021

A maldição de Morfeu

Morfeu (em gregoΜορφεύςtransl.Morphéus, lit "moldador; a forma") é o deus do sonho na mitologia grega.


Dionísio do lado esquerdo, com o Sr. Casa Nova à direita, segurando com orgulho a bandeira da Associação de Caçadores da Fonte da Viola, à qual pertence, na sede, num a festa por ela organizada

Quando o tempo estava bom, e estava calor, costumávamos ter aberta a janela do serviço onde trabalho, sobretudo da parte da manhã, para entrar o fresquinho. Quando o sol rodava, começava a apertar e dava de frente na casa do brasão, antes de almoço, costumava vir fechá-la e nesse momento, tinha por hábito olhar a rua. Ali tinha por hábito inspirar e dar graças a Deus. Agradecer por ter por ter trabalho fixo (nestes tempos tão difíceis e conturbados), ainda por cima num lugar tão bonito, que também é o meu; por ter família que amo tanto, pelos amigos, por estar vivo.

Não sei se foi o meu passado recente (30.07.2011) que me fez ser assim, mas a verdade, é que é assim que é.

 

Nessa altura, tantas vezes, lá vinha ele, sempre à mesma hora, de lancheira aviada, todo satisfeito para tomar a sua refeição, na cantina que os trabalhadores da câmara criaram na antiga escola.

Com a redução de horários da Troika, e o aperto de todas as carteiras, os hábitos mudaram e aqueles trabalhadores que costumavam vir a casa na hora de almoço, como era o meu caso (hora e meia, e 12 quilómetros davam para essa mordomia); ou almoçar num dos restaurantes de Marvão a preço simbólico, passaram a levar o conduto numa lancheira, e compraram micro-ondas para o aquecer e conseguir reduzir ainda mais, os gastos fixos.

Ele também passou a ser um desses.

Nunca tive o prazer de comer junto a ele, mas a verdade é que consigo imaginar aquela lancheira por dentro, como ele certamente a teria e gostaria.

Sempre muito bem arranjado, bem barbeado, impecavelmente vestido com os vincos e as dobras todas no lugar, sapatos engraxados, metia cobiça. Era um primor de Homem.

 

Nunca se lhe conheceram excessos. É certo que numa vez ou outra, nesta ou naquela patuscada, embalado pela companhia e pelos amigos, pode ter-se esticado um pouco mais, mas quem não?!?!? Quem possa dizer: desta água nunca bebi, ou beberei, que atire a primeira pedra.

 

Impressionava-me porque apesar de nunca ter fumado muito, era daqueles que se via que apreciavam mesmo o cigarrinho (como eu, que agora tenho fumado apenas um/dia), mas apesar disso, deixou o hábito. Tenho ideia que teria a ver com a tensão arterial alta, ou qualquer problema do género. Custou mas para seu bem… deixou.

 

Conheci-o sempre a trabalhar no município, quando ainda era câmara municipal. Primeiro nas águas, fazendo a contagem porta-a-porta, durante muitos anos, de bolsinha das moedas às costas; depois já lá em cima, na tesouraria, logo junto à entrada.

Não sei se por iniciativa sua, se por proposta superior, mudou-se para a seção das obras, onde trabalhava recentemente, não sei especificamente bem a fazer o quê. Algo dentro dessa matéria, onde se sentia visivelmente confortável.

 

Tenho por filosofia de vida aperfilhar toda a gente de bem, todos os bons corações que certamente me farão bem, e aos quais eu posso dar de mim também. É por isso que os familiares da minha mulher passam a ser meus, e ele, não sei se não seria bem família, mas a verdade é que a sua tem uma proximidade tão antiga, que recua aos tempos do talho do avô da minha Cristina, que os faz serem família também. A mãe, a mana, o cunhado, os sobrinhos são gente da nossa.

 

Apesar de não ser assim tão mais velho que eu, a verdade é que nunca lhe conheci uma namorada, e casou já tardiamente com a companheira Manuela, de quem tem um filho muito adorado, o Miguel, que estuda por estes dias o já superior em Lisboa.

Enorme benfiquista, de vez em quando, assim que o glorioso jogava na tv, lá nos encontrávamos no Choca (a.k.a Pastelaria Caldeira) para nos recriarmos de volta de uma babosinha gostosa, enquanto nos recriávamos com o nosso clube do coração.

 

Quem visitar o seu mural do facebook, facilmente ser aperceberá dos seus gostos, e daquilo que mais gosta de fazer. Gostava...

 

Certo dia, deitou-se para descansar, para dormir, e… não mais abriu os olhos. As dúvidas e a incerteza assombraram todos os que o amavam, lhe queriam e querem bem.

Mas não abre como? Não acorda?!?!?!??

 

Acordou mas uma embolia, um derrame interno, um problema qualquer desses graves, afetou-lhe a visão, e as pálpebras.

Já andou a correr de especialista em especialista, mas os ânimos e as melhoras são poucas. Agora encontra-se numa unidade de reabilitação onde, há dias, quando a ela me desloquei para levar as roupas da minha mãe, que também ali se está em recuperação, encontrámo-nos.

 

A ambulância dos Bombeiros de Marvão tinha acabadinho de chegar com ele, depois de consultas exploratórias em Lisboa, e eu, consegui furar a linha de segurança e chamei-o…

 

“Dionísio!!!! Dionísio!!!!! Sou o primo Pedro!!!! FORÇA CAMPEÃO!!!!!! FORÇA!!!!!!!!!!!! Tu vais conseguir!!!!!!”

 

Ele esboçou um sorriso, e rodeado pela escuridão e negridão de que são feitos os seus dias, de há uns meses a esta parte, levantou o braço na maca, na esperança que uma mão que lhe servisse de âncora e o puxasse para a vida. Encaixei nele e não larguei mais, durante uns breves minutos mas que serviram para mim, para lhe passar a mensagem:

 

"Tenho pedido tanto por ti, Amigo… Sinto tanto o que te aconteceu… Quero tanto que fiques bem e passe tudo…"

 

E ele esboçava um sorriso enigmático, quase que a querer deixar transparecer… que sabe o que vai acontecer.

 

Agora, fazendo aquilo que é sempre melhor para tentar conseguir avaliar as situações: mete-te tu no lugar dele, e já falamos...

 

Deita-te para dormir e… não conseguirás mais abrir as pálpebras (o problema não é mecânico. Segundo me apercebi já, as lesões, serão mais internas e profundas), e ficarás condenado a viver numa “cegueira” sem fim à vista, que chegou para virar de pantanas não só a tua própria vida, mas também a de todos os que te rodeiam. Incrível não é?

 

E ainda há pessoas que defendem a “morte santa”, na versão mais dura em que se deitam para descansar e não só não abrirão mais os olhos, como não acordarão mais!

 

Pois se vêm isto como uma forma suave de passar de estágio, sem dor, nem chatices; eu vejo isto como o ainda pior dos cenários, em que o o indivíduo não se pode deitar descansado e tem de estar sempre à guarda. MEDO!


 A vida... é belíssima, lindíssima, cheia de coisas fantásticas, mas... tão maravilhosa, quanto fugaz. Ninguém pode respirar fundo e dizer que está bem, porque de um momento para o outro, num ápice, tudo de desmorona e esvai. 

 

O Dionísio está… como se pode imaginar nestas situações: apesar de muito bem cuidado, porque ali todos estão, muito mais magro, envelhecido, diminuído…

 

Nunca o esquecerei nas minhas orações, e tenho sempre a luz bem acesa que a Deus, nada é impossível. E sei-o por mim. Por aquela vez que disseram à minha Cris que o seu Pedro… nunca mais haveria de ser o mesmo; e ao meu irmão (um daqueles médicos menos escrupuloso) que esquecesse o irmão porque a voltar, e se não na forma de vegetal, nunca seria o mesmo (ao ponto de o ter feito andar às biqueiradas nas máquinas de vendas que apanhou pelo caminho! Lol!!!!!!!

 

Pois se de um traumatismo craniano do grau 6 (escala de Glasgow em que 3 (80% mortalidade, ou seja, com 3, 8 em 10 já não voltam) a 15) Deus ajudou-me a voltar a estar assim (e só a ele se deve), nada é impossível!

 

Rezemos quantas vezes pudermos, ou se não acreditamos, que peçamos em pensamentos por ele. Acreditemos que ele voltará, e ele… há-de voltar, se Deus quiser.


Para toda a família, Manuela, Miguel, Benvinda, João Pereira, David, João Pedro, um beijo enorme e toda a força do mundo para suportar esta barra tão pesada... Força!!!!


FÉ!

Sem comentários: