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Acendeu a última beata que apanhara do chão minutos antes e aspirou lentamente o fumo que lhe adormeceu os pulmões. Ajeitou a cabeça na sua cama de papelão, abrigada por uma varanda a escassos metros de uma vitrina chique e fitou as luzes da rua que anunciavam o Natal. A noite caíra há instantes. Com ela veio o frio e uma chuva miudinha que fez acelerar o passo às gentes que procuravam os presentes de última hora. Os presentes de última hora…
Já não se conseguia lembrar da sensação de abrir um, de descobrir uma prenda, de dar… de ter uma só para si.
Por mais dias que passassem, e já tinham passado tantos, não conseguia deixar de perguntar a si próprio como foi possível ter descido tão baixo, tão fundo, como se a força do destino tivesse sido mais forte que tudo por só ela ser capaz de o arrastar para ali. De vez em quando ainda olhava as mãos encardidas, as unhas negras… e mal se reconhecia no vulto barbudo, de cabelo desgrenhado e mal amanhado que lhe respondia num assombro quando olhava as montras da Baixa.
Ao caminhar por entre a multidão, sentia-se sempre como se fosse um barco perdido que remava contra uma maré sem rosto. Eles… certos do seu destino. Ele… desgovernado na bruma, mergulhado em oceanos infernais. Já não prestava. Tinha sido cuspido da “máquina” e por ela esquecido como uma sobra que ficou por apanhar. À margem da vida. À margem de tudo.
Mas houve dias em que também ele foi assim… jovem, com vida, com família, trabalho, futuro e ideais. Também ele desfilava por aquelas calçadas, impecável nos seus fatos de corte à medida, sem reparar na legião de desafortunados que se anichavam aos pés dos edifícios centenários. Mas a sorte tinha-o esquecido e bastou um clique, um imprevisto seguido de uma impressionante sucessão de azares para o deixarem naquele estado. No dia em que a tragédia lhe bateu à porta, todos partiram. Uns nesse preciso instante, outros nos tempos que se seguiram… ninguém quis ser testemunha da sua queda e fugiram dele como se de uma epidemia mortífera se tratasse.
Tinham passado anos e sabia agora, melhor do que nunca antes, que só poderia contar consigo. Na rua não há amigos. Na rua vive-se no limiar básico de sobrevivência, luta-se por existir a cada dia que passa. Sabe sempre bem a solidariedade dos que chegam com uma sopa, um prato quente, uma palavra amiga mas só isso é pouco até para quem nada tem. Eles dão… mas recebem o conforto de se saberem úteis. Até aí… há um retorno.
Já estava cansado de tanto gritar em silêncio. Por mais estridentes que fossem os seus lamentos… ninguém jamais o iria ouvir.
Os seus dias eram tão escuros como a mais negra das noites. Arrastava-se por eles como um vegetal e por incrível que parecesse… só o álcool, que a tantos derruba, o conseguia manter de pé.
Mas naquela noite de Natal, decidiu que não queria uma que fosse como as outras antes. Não queria a “fatia” de bacalhau num prato de plástico, não queria a mesa comprida onde teria por companhia outros mortos-vivos como ele, não queria a compaixão alheia, não queria luzes, nem os sorrisos, nem um daqueles barretes idiotas que lhe enfiavam pela cabeça abaixo para a fotografia. Não queria.
Se não podia ter a sua casa cheia, a mesa farta, o calor da lareira, a árvore plantada num monte de presentes, tudo o que mais desejava dentro de uma sala… não queria ter nada. E assim disse que não à insistência dos outros. Que não! Que queria ficar ali por sua conta, sozinho com a sua cruz, agarrado às suas convicções como aqueles idosos que preferem enfrentar sozinhos o fogo no sopé da montanha, defendendo a sua casinha de sempre, a serem levados pelos braços jovens de um bombeiro salvador. Havia nele uma réstia de dignidade que ainda não tinha sucumbido. A ela se agarrou nessa noite.
Do sobretudo rasgado que lhe servia de pele retirou a garrafa de absinto que tinha encontrado dias antes, numa casa abandonada, e meia caixa de calmantes passada da validade. Deitou-se e foi emborcando a mistura em tragos lentos, enquanto quadros vivos do seu passado lhe passavam à frente dos olhos rasos até que por fim, adormeceu.
“Está aqui! É ele! É ele…”, ouviu a quilómetros. Uma mão pequenina pousou no seu rosto empedernido.
“Paizinho… Somos nós! Viemos buscá-lo… Temos saudades…”.
Esforçou-se por abrir os olhos. Envoltos numa névoa, reconheceu dois rostos que lhe pareceram familiares, a sorrir. “A mãe quero-o de volta… Já temos uma casa… Começámos de novo mas já podemos ajudar. Sabemos onde o podem salvar… Venha connosco…”.
Deixou cair a cabeça num regaço e sorriu.
Fosse o que fosse… para ele… era Natal.
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Já não se conseguia lembrar da sensação de abrir um, de descobrir uma prenda, de dar… de ter uma só para si.
Por mais dias que passassem, e já tinham passado tantos, não conseguia deixar de perguntar a si próprio como foi possível ter descido tão baixo, tão fundo, como se a força do destino tivesse sido mais forte que tudo por só ela ser capaz de o arrastar para ali. De vez em quando ainda olhava as mãos encardidas, as unhas negras… e mal se reconhecia no vulto barbudo, de cabelo desgrenhado e mal amanhado que lhe respondia num assombro quando olhava as montras da Baixa.
Ao caminhar por entre a multidão, sentia-se sempre como se fosse um barco perdido que remava contra uma maré sem rosto. Eles… certos do seu destino. Ele… desgovernado na bruma, mergulhado em oceanos infernais. Já não prestava. Tinha sido cuspido da “máquina” e por ela esquecido como uma sobra que ficou por apanhar. À margem da vida. À margem de tudo.
Mas houve dias em que também ele foi assim… jovem, com vida, com família, trabalho, futuro e ideais. Também ele desfilava por aquelas calçadas, impecável nos seus fatos de corte à medida, sem reparar na legião de desafortunados que se anichavam aos pés dos edifícios centenários. Mas a sorte tinha-o esquecido e bastou um clique, um imprevisto seguido de uma impressionante sucessão de azares para o deixarem naquele estado. No dia em que a tragédia lhe bateu à porta, todos partiram. Uns nesse preciso instante, outros nos tempos que se seguiram… ninguém quis ser testemunha da sua queda e fugiram dele como se de uma epidemia mortífera se tratasse.
Tinham passado anos e sabia agora, melhor do que nunca antes, que só poderia contar consigo. Na rua não há amigos. Na rua vive-se no limiar básico de sobrevivência, luta-se por existir a cada dia que passa. Sabe sempre bem a solidariedade dos que chegam com uma sopa, um prato quente, uma palavra amiga mas só isso é pouco até para quem nada tem. Eles dão… mas recebem o conforto de se saberem úteis. Até aí… há um retorno.
Já estava cansado de tanto gritar em silêncio. Por mais estridentes que fossem os seus lamentos… ninguém jamais o iria ouvir.
Os seus dias eram tão escuros como a mais negra das noites. Arrastava-se por eles como um vegetal e por incrível que parecesse… só o álcool, que a tantos derruba, o conseguia manter de pé.
Mas naquela noite de Natal, decidiu que não queria uma que fosse como as outras antes. Não queria a “fatia” de bacalhau num prato de plástico, não queria a mesa comprida onde teria por companhia outros mortos-vivos como ele, não queria a compaixão alheia, não queria luzes, nem os sorrisos, nem um daqueles barretes idiotas que lhe enfiavam pela cabeça abaixo para a fotografia. Não queria.
Se não podia ter a sua casa cheia, a mesa farta, o calor da lareira, a árvore plantada num monte de presentes, tudo o que mais desejava dentro de uma sala… não queria ter nada. E assim disse que não à insistência dos outros. Que não! Que queria ficar ali por sua conta, sozinho com a sua cruz, agarrado às suas convicções como aqueles idosos que preferem enfrentar sozinhos o fogo no sopé da montanha, defendendo a sua casinha de sempre, a serem levados pelos braços jovens de um bombeiro salvador. Havia nele uma réstia de dignidade que ainda não tinha sucumbido. A ela se agarrou nessa noite.
Do sobretudo rasgado que lhe servia de pele retirou a garrafa de absinto que tinha encontrado dias antes, numa casa abandonada, e meia caixa de calmantes passada da validade. Deitou-se e foi emborcando a mistura em tragos lentos, enquanto quadros vivos do seu passado lhe passavam à frente dos olhos rasos até que por fim, adormeceu.
“Está aqui! É ele! É ele…”, ouviu a quilómetros. Uma mão pequenina pousou no seu rosto empedernido.
“Paizinho… Somos nós! Viemos buscá-lo… Temos saudades…”.
Esforçou-se por abrir os olhos. Envoltos numa névoa, reconheceu dois rostos que lhe pareceram familiares, a sorrir. “A mãe quero-o de volta… Já temos uma casa… Começámos de novo mas já podemos ajudar. Sabemos onde o podem salvar… Venha connosco…”.
Deixou cair a cabeça num regaço e sorriu.
Fosse o que fosse… para ele… era Natal.
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Feliz Natal a todos. Saibam agradecer pelo que têm.
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Feliz Natal a todos. Saibam agradecer pelo que têm.
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2 comentários:
Um excelente retrato dos "nossos" conturbados dias...
Eu agradeço todos os dias, por felizmente ter Família, Saúde, Amigos e Trabalho. Não me posso queixar.
Boas Festas
F. Abrantes
Neste tempo, infelizmente, é fácil acontecer o que descreve no seu conto.
Também eu faço questão de valorizar a vida, a família grande e unida que felizmente tenho, os amigos e o trabalho.
Um abraço
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