Morreu
o Adriano Duarte.
Dito
assim… poucos saberão identificar quem era. Mas se disser, o ”papa-teatros”,
toda a gente da minha geração, ou das imediatamente anteriores, saberá de quem
se tratava. Isto das gerações tem que se lhe diga. É que eu habituei-me toda a
vida a olhar para as tantas que seguiam à minha frente, mas, à medida que as
vejo a extinguirem-se, e as tão antes da minha a criarem famílias e filhos, a
gerarem umas novas, percebo que estou a dar passos cada vez maiores na prancha da
vida, face ao desconhecido.
O
Adriano foi hoje, terça, a enterrar. O seu corpo desceu à terra, para se tornar
pó, e ele viverá apenas na memória daqueles que o recordarem com amor e
saudade. Família, mulher, filhas, genros, netas e colegas que com ele partilharam
momentos da sua vida, de ambos.
Quando
me desloquei à casa mortuária, onde o seu corpo estava a ser velado, para
prestar as minhas condolências aos mais próximos, rezei junto à urna e reparei
que as bandeiras de duas grandes instituições vivas da cultura e do desporto
desta aldeia, Grupo Desportivo Arenense e Rancho Folclórico da Casa do Povo de
Santo António das Areias, repousavam sobre a urna. Não devem ter existido
muitos homens com esta abrangência, com esta projeção. E isto sim, é um legado
de vida.
O
Adriano pode não ter sido grande em escolaridade, em património pessoal, mas
foi grande na cultura da sua terra, na família que criou (três filhas e um
filho), que lhe deram netos e netas em vida. Teve o prazer de ver a sua
continuidade.
O
Adriano era sócio fundador do Grupo Desportivo Arenense, e foi o seu exímio e
incansável cobrador de quotas. Eu até acho que o cobrador do fraque andou a
receber formação do nosso Papa. “Epá… eu deixei de pagar quotas do GDA quando o
Adriano as deixou de cobrar”, ouvi tantas vezes ontem, dia do óbito. E eu
pensei, “é porque não és lá grande sócio. A atual, funcional e brilhante
direção, presidida por Luís Barradas, da qual tenho a honra de fazer parte,
realiza um almoço de confraternização no dia do sócio, dia 1º de Maio, gratuito
para quem tem as quotas em dia. Por 1 euro por mês, apenas, perfaz-se um total
que mal paga o sempre belíssimo repasto, e ainda assim, contribui-se para o
clube da nossa terra.”
Quando
teenager, era bem rebelde, adolescente, e nunca deixei ser o puto da Beirã.
Apesar de ter sempre companheiros que me foram próximos, e alinharam comigo
desde que os conheci, logo desde o 7º ano, amigos de vida como o Banana, o
Jaimita e a Paula Lança; nunca consegui, sobretudo, a princípio, tirar de mim a
capa de “gajo de fora”.
Como
consegui a proeza de não ter entrado na 1ª fase de candidatura para a
Universidade, no curso de comunicação social, por milésimas e pela hierarquia
de escolas ter sido realizada de uma forma que me inviabilizava o acesso ao
ensino superior, vi-me na necessidade de ganhar dinheiro e trabalhar. Consegui
meter-me no bar do Grupo Desportivo Arenense, onde fiz uma dupla imbatível com
o meu querido Carroça (já desaparecido. Saudade…), e onde vivi momentos muito
felizes e intensos, dentro do meu mau momento.
Nesses
tempos fiz-me mais de cá, da aldeia, de aqui de cima. Privei com figuras
absolutamente notáveis e marcantes na minha vivência. O Sr. João Machado, o Sr.
António Machadão, o Ti Júlio da Bica, o Sr. Carroça pai, o Vítor Maluco, o “meu
filho” Manuel Bodes (eu era o pai. O Sérgio era a mãe), e o Adriano Papa
Teatros.
O
Adriano era um homem sabedor. Com bagagem. Exímio tocador de harmónica, também
se atrevia com as palavras. Lembro-me que numa noite de conversa a dois ao
balcão, me deixei maravilhar com uma coisa qualquer que disse, e ele, acho que
que achando graça, abriu o livro. Ou um pouco do livro.
“Mas
ó Senhor Adriano: o Papa Teatros veio de onde?”
Já
não me recordo bem do que me disse mas certamente que teve com o facto de na
realidade, ter gostado muito de assistir a eles e, em dada altura da sua vida,
o ter feito em abundância.
“Ai
viu, muitos? E quais? A minha curiosidade jornalística… e eis que senão quando
me saiu com um verso, disse-me ele que da sua autoria, e eu não tenho como
duvidar: Abalei do Cais do Sodré.
Abalei
do Cais do Sodré, vi Lisboa tão linda…e lá vai ele por aí fora num passeio por
entre os telhados e os beirais, as vielas e as praças, a muita gente e os
barcos… e eu só a mandá-lo esperar que tinha de ir ver de uma esferográfica
para apontar numa folha ali à mão e ele… a fazer-se de parvo e de esquecido.
“Isso agora…”
O
Sr. Adriando era muito desconfiado. Acho que ele tinha medo que lhe roubasse os
versos… Eram bons!
Ao
longo dos anos, fomo-nos sempre cruzando. Quando casei, quando vivi em Marvão,
quando fui vice-presidente, como funcionário das finanças e entre nós, houve
sempre um trato afável, porque eu o tratava com uma deferência, que se calhar a
maior parte das pessoas não fazia. Habitualmente era o papa, mas para mim,
sempre foi o Sr. Adriano Ele sabia-o.
Sempre
viveu aqui na terra, acho eu. Trabalhava nas fábricas e quando foi o 25 de
Abril, sei que foi um valentão e quis-se chegar à frente das fábricas, com os
funcionários. Ouvi por alto.
Ultimamente
estávamos mais próximos na tasca da “Cavaca do Adro”, também chamada de
“Velhaca”, sempre que jogava o nosso Benfica do coração. Ali comentávamos, ali
sofríamos, ali exultávamos. Ultimamente foi operado às cataratas da vista.
Perguntava-lhe
as melhoras e ele… “Pxxxxxxxxxxxxxxxxxx… uma diferença… Agora tudo é clarinho,
clarinho. Se eu soubesse. Já tinha sido há mais tempo… Agora é à outra…”
“Ai
ó Senhor Adriano… você começa-me a dizer que isso é tão bom, tão bom, que eu
ainda vou mas é lá pedir para ser operado, mesmo sem ter catarata alguma. Só
para ver se isto fica mais nítido.”
O
Adriano não era velho, nada disso. Estaria na casa dos 70 e muitos, talvez 80s
e picos. Mas mexia-se, coitadito, lá andava com a Bengalinha, já muito mouquinho,
mas ainda mexia.
Há
tempos teve um problema grave na cabeça. Deu-lhe qualquer coisa ruim. Soube
dele que mal dava razão da sua existência. As filhas… ficavam muito abatidas
quando perguntávamos por ele. Diziam que era um estar, mas não estar. Tudo
sofria até que Deus o chamou. Que o tenha em descanso, entre essa imagem
belíssima que é a luz perpétua. Que descanse em paz.
1 comentário:
Sem comentários, belíssimo depoimento e prova de amizade
que descanse em paz.
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