quarta-feira, 1 de fevereiro de 2017

Morreu o Adriano Duarte


Morreu o Adriano Duarte.


Dito assim… poucos saberão identificar quem era. Mas se disser, o ”papa-teatros”, toda a gente da minha geração, ou das imediatamente anteriores, saberá de quem se tratava. Isto das gerações tem que se lhe diga. É que eu habituei-me toda a vida a olhar para as tantas que seguiam à minha frente, mas, à medida que as vejo a extinguirem-se, e as tão antes da minha a criarem famílias e filhos, a gerarem umas novas, percebo que estou a dar passos cada vez maiores na prancha da vida, face ao desconhecido.



O Adriano foi hoje, terça, a enterrar. O seu corpo desceu à terra, para se tornar pó, e ele viverá apenas na memória daqueles que o recordarem com amor e saudade. Família, mulher, filhas, genros, netas e colegas que com ele partilharam momentos da sua vida, de ambos.


Quando me desloquei à casa mortuária, onde o seu corpo estava a ser velado, para prestar as minhas condolências aos mais próximos, rezei junto à urna e reparei que as bandeiras de duas grandes instituições vivas da cultura e do desporto desta aldeia, Grupo Desportivo Arenense e Rancho Folclórico da Casa do Povo de Santo António das Areias, repousavam sobre a urna. Não devem ter existido muitos homens com esta abrangência, com esta projeção. E isto sim, é um legado de vida.


O Adriano pode não ter sido grande em escolaridade, em património pessoal, mas foi grande na cultura da sua terra, na família que criou (três filhas e um filho), que lhe deram netos e netas em vida. Teve o prazer de ver a sua continuidade.


O Adriano era sócio fundador do Grupo Desportivo Arenense, e foi o seu exímio e incansável cobrador de quotas. Eu até acho que o cobrador do fraque andou a receber formação do nosso Papa. “Epá… eu deixei de pagar quotas do GDA quando o Adriano as deixou de cobrar”, ouvi tantas vezes ontem, dia do óbito. E eu pensei, “é porque não és lá grande sócio. A atual, funcional e brilhante direção, presidida por Luís Barradas, da qual tenho a honra de fazer parte, realiza um almoço de confraternização no dia do sócio, dia 1º de Maio, gratuito para quem tem as quotas em dia. Por 1 euro por mês, apenas, perfaz-se um total que mal paga o sempre belíssimo repasto, e ainda assim, contribui-se para o clube da nossa terra.”



Quando teenager, era bem rebelde, adolescente, e nunca deixei ser o puto da Beirã. Apesar de ter sempre companheiros que me foram próximos, e alinharam comigo desde que os conheci, logo desde o 7º ano, amigos de vida como o Banana, o Jaimita e a Paula Lança; nunca consegui, sobretudo, a princípio, tirar de mim a capa de “gajo de fora”.


Como consegui a proeza de não ter entrado na 1ª fase de candidatura para a Universidade, no curso de comunicação social, por milésimas e pela hierarquia de escolas ter sido realizada de uma forma que me inviabilizava o acesso ao ensino superior, vi-me na necessidade de ganhar dinheiro e trabalhar. Consegui meter-me no bar do Grupo Desportivo Arenense, onde fiz uma dupla imbatível com o meu querido Carroça (já desaparecido. Saudade…), e onde vivi momentos muito felizes e intensos, dentro do meu mau momento.


Nesses tempos fiz-me mais de cá, da aldeia, de aqui de cima. Privei com figuras absolutamente notáveis e marcantes na minha vivência. O Sr. João Machado, o Sr. António Machadão, o Ti Júlio da Bica, o Sr. Carroça pai, o Vítor Maluco, o “meu filho” Manuel Bodes (eu era o pai. O Sérgio era a mãe), e o Adriano Papa Teatros.


O Adriano era um homem sabedor. Com bagagem. Exímio tocador de harmónica, também se atrevia com as palavras. Lembro-me que numa noite de conversa a dois ao balcão, me deixei maravilhar com uma coisa qualquer que disse, e ele, acho que que achando graça, abriu o livro. Ou um pouco do livro.
“Mas ó Senhor Adriano: o Papa Teatros veio de onde?”
Já não me recordo bem do que me disse mas certamente que teve com o facto de na realidade, ter gostado muito de assistir a eles e, em dada altura da sua vida, o ter feito em abundância.
“Ai viu, muitos? E quais? A minha curiosidade jornalística… e eis que senão quando me saiu com um verso, disse-me ele que da sua autoria, e eu não tenho como duvidar: Abalei do Cais do Sodré.
Abalei do Cais do Sodré, vi Lisboa tão linda…e lá vai ele por aí fora num passeio por entre os telhados e os beirais, as vielas e as praças, a muita gente e os barcos… e eu só a mandá-lo esperar que tinha de ir ver de uma esferográfica para apontar numa folha ali à mão e ele… a fazer-se de parvo e de esquecido. “Isso agora…”
O Sr. Adriando era muito desconfiado. Acho que ele tinha medo que lhe roubasse os versos… Eram bons!


Ao longo dos anos, fomo-nos sempre cruzando. Quando casei, quando vivi em Marvão, quando fui vice-presidente, como funcionário das finanças e entre nós, houve sempre um trato afável, porque eu o tratava com uma deferência, que se calhar a maior parte das pessoas não fazia. Habitualmente era o papa, mas para mim, sempre foi o Sr. Adriano Ele sabia-o.


Sempre viveu aqui na terra, acho eu. Trabalhava nas fábricas e quando foi o 25 de Abril, sei que foi um valentão e quis-se chegar à frente das fábricas, com os funcionários. Ouvi por alto.


Ultimamente estávamos mais próximos na tasca da “Cavaca do Adro”, também chamada de “Velhaca”, sempre que jogava o nosso Benfica do coração. Ali comentávamos, ali sofríamos, ali exultávamos. Ultimamente foi operado às cataratas da vista.
Perguntava-lhe as melhoras e ele… “Pxxxxxxxxxxxxxxxxxx… uma diferença… Agora tudo é clarinho, clarinho. Se eu soubesse. Já tinha sido há mais tempo… Agora é à  outra…”
“Ai ó Senhor Adriano… você começa-me a dizer que isso é tão bom, tão bom, que eu ainda vou mas é lá pedir para ser operado, mesmo sem ter catarata alguma. Só para ver se isto fica mais nítido.”


O Adriano não era velho, nada disso. Estaria na casa dos 70 e muitos, talvez 80s e picos. Mas mexia-se, coitadito, lá andava com a Bengalinha, já muito mouquinho, mas ainda mexia.


Há tempos teve um problema grave na cabeça. Deu-lhe qualquer coisa ruim. Soube dele que mal dava razão da sua existência. As filhas… ficavam muito abatidas quando perguntávamos por ele. Diziam que era um estar, mas não estar. Tudo sofria até que Deus o chamou. Que o tenha em descanso, entre essa imagem belíssima que é a luz perpétua. Que descanse em paz.

1 comentário:

José Cerdeiral disse...

Sem comentários, belíssimo depoimento e prova de amizade
que descanse em paz.