quinta-feira, 23 de março de 2017

Carta a ti, Cali (Parabéns!)


Como tu eras, quando eras minha

Tenho bem presente que nunca poderás lê-la, ou sequer entendê-la, se porventura a lesse baixinho, devagarinho, para que te chegasse. Mas ainda assim, nem que seja para gáudio do meu egoísmo, sinto-me na obrigação, e no direito, de a escrever. Consola-me que, ao plasmá-la aqui, na minha janelinha virtual para o mundo, a eternizarei para memória futura, para as gerações vindouras. Não ficará num papel, numa gaveta, num dossier, num sítio onde se possa perder, ou esquecer, ou estragar. Aqui, ficará sempre… aqui. Quero assim que para os meus, para os nossos, para as gerações futuras que virão depois de nós, fique plasmada a nossa história de amor. A história de um sobrinho que amaste como um filho, que nunca pudeste ter; e te amou a ti, como uma segunda mãe, apesar da dele o preencher, o encher e estar sempre ao mais alto nível, nesse cargo.

Parabéns, minha querida… pelos teus 86 anos. Pelos tantos, tantos anos que já tens. Tantos quantos os da tua mãe (03.11.05 – 07.12.91), e os da Tia Bia (05.01.1928 – 11.07.2014), as recordistas. Hoje és, a matriarca da família Sobreiro. Por ironia do destino, uma matriarca vazia… de lembranças, de afetos, de memórias e vivências. Um corpo… apenas. Aquele mesmo corpo onde dantes vivia aquela senhora esmerada, cuidadosa, dedicada a tudo e todos onde se metia, minuciosa, impecável. E o que isso dói… Essa desmaterialização…

Agradeço à força que tudo rege e comanda, agradeço àquele que para mim é Deus, e para ti será também, que tanto gostavas de ir à missa, mas que hoje em dia, até essa devoção te passa ao lado. Agradeço por te ter, por neste dia te poder abraçar e poder estar contigo. Depois de sair do serviço, fui ter contigo à santa casa que te acolhe, onde tanto és querida e estimada. Estavas vestidinha com um dos melhores fatinhos que tens, aperaltada com esmero e o colar a preceito que a tia Bela da Idanha te tinha oferecido. Quem te arranjou, sabia que este dia era especial, mais para os que te amam que para ti, e preparou-te com amor. Com aquele que passa cá para fora, que se vê, se nota e se sente.

Eu sabia que um bolo de anos não seria uma boa escolha, porque a vossa alimentação está muito condicionada, é preparada com cuidado e tem de se levar com cautela; e sabia que as prendas são coisas que nada te dizem. Mas queria estar contigo, isso era o que eu queria. Na sala, disse às tuas colegas que te ia cantar os parabéns e perguntei se me ajudavam. Elas que “claro que sim”, e que bonito que foi. Com elas todas a levantarem-se, as que podiam, com um “ah, mas faz anos?!?!? E quantos faz? Dê cá um beijinho…”


Aquela senhora que é da família dos Casanova, que sempre me pareceu um pouco alheada, mas que agora percebi, tem o grande problema de ouvir muito mal (por isso vive quase à parte), que foi uma das que se surpreendeu com a efemeridade da data, dirigiu-se a mim (creio que das únicas vezes), para me dizer “ah, hoje esteve cá já aquela senhora que vem cá quase sempre, como você.”

- A minha mãe?
- Ai é sua mãe?!?!? Olhe, pensava que era sua irmã.
(Meus risos. Muitos) – Olhe, minha querida, das duas… uma: ou é ela que está muito nova, ou sou eu que estou muito usado (o que não deixa de ser verdade, e bem revelado pela careca).

A minha mãe sempre foi aquela cunhada que teve uma relação contigo de… irmãs. Difícil encontrar cunhadas que se dessem tão bem, que tu tanto nos ajudaste quando podias, mas que nunca te deixou, que nisso aí, saio bem a ela. Desta vez, a Dona Alzira creio que levou um miminho, não muito doce, para petisco da rapaziada. Perfumes, desodorizantes, aquele shampoo que te faz bem ao eczema que tens detrás das orelhas, atenções, relíquias, para mim, tesouros. Nunca te deixou a ti porque sabia que tu nunca, enquanto pudeste, a deixaste a ela, a nós todos.

Estou a aprender a envelhecer, sabes? Já tenho quase os 44, vê-me bem. Já não sou aquele puto traquina, terrível, sempre educado mas muito transgressor, em tudo. O que adorava meter o que fosse ao limite. A ver até onde é que dava. Sempre a caminhar na corda bamba entre o correto e o que poderia ser diferente. Já não sou o teu Pedro, o puto da Beirã, que tudo questionava e pensava. Agora sou um senhor de família com duas filhas, que tem um emprego de pessoas grandes, que tem se gerir um lar, ou melhor, co-gerir um lar. Como tive de aprender a viver, sem algumas pedras chave da minha vivência, que a vida me roubou num ápice; agora estou a aprender a envelhecer... a ter filhas já adolescentes, que amanhã vão ser mulheres, que seguirão o seu próprio caminho, ficando sempre eu no meu lugarinho, para trás.

O ir mantendo um contato regular, semanal, com a tua realidade, com o lugar onde vives, tem-me ajudado a ter uma verdadeira noção da efemeridade da vida. Tu, infelizmente, estás apanhada por essa maleita batizada com o nome de um médico estrangeiro, mas que na realidade é… demência. O cérebro é um computador que, quando berra, berrou. Nada há a fazer. Nem atualizações de software, nem placas adicionais, nem upgrades, nada lhe vale. É a vida, que é assim. Há pois que aceitá-la.


Se não estivesses assim, eu continuaria a fazer aquilo que fazia contigo ao início. Levar-te-ia a dar passeios para fora dali, iria mostrar-te e recordar-te o nosso mundo, levar-te-ia ao alto da torre de menagem do castelo de Marvão, à barragem da Apartadura, à Portagem para veres o restaurante Sever, onde me levavas tanta vez na infância, aos domingos com a restante família; ao Modelo, para veres como é uma mercearia de hoje, igual à que tu tinhas, só que muito maior.

Depois eu apercebi-me do vão que era isto tudo. Realizei, o nada que ficava. Consciencializei-me que o cansaço, era o que mais permanecia e, com muito custo meu, desliguei. Aceito-te hoje já como és, como estás, como tem de ser. E custa-me tanto ir ver-te, acredita, porque me apercebo de tanta gente que sofre de maleitas do físico, acossado pela idade; mas que vive com uma cabeça que pede tanto mais mas que… não tem. Porque não tem possibilidade. Porque as famílias, têm outras prioridades… onde elas não estão incluídas. Se fosses uma dessas…

E o que eu me lembro da Ti Bia, coitadinha, que partiu não na primeira noite, mas logo na outra a seguir. O tanto que ela ainda queria, sabia e podia. Mas apagou-se.

A vida, é mesmo um dar e receber. Não há nada mais valioso que a saúde, e nada é mais fundamental que o amor. O amor por ti, pela minha mulher, pelas minhas filhas, pela minha mãe, pelo meu irmão, pelos filhos deste e pela mulher, pela minha afilhada, pelos meus cunhados, pelos meus sogros, pelas minhas tias, pelos primos e primas, amigos e amigas verdadeiros. Verdadeiros. O amor ao próximo deve ser defendido mas… por vezes, é tão difícil de materializar. Que abandonamos. Os outros que não nos querem bem e só têm interesse em nós, seja porque motivo for, não merecem.

A vida é uma passagem. Se nada para cá trazemos, nada de cá levamos. Deveríamos pensar mais vezes nisso. Lembra-te que és pó, e em pó te hás-de tornar, ensinam eles.

Sei que me tenho esforçado para ser um bom rapaz, um bom cristão, um seguidor de Cristo, um menino à altura, que te haverias de orgulhar do teu Pedro ser assim. Não há ninguém no mundo, nem pode haver, que seja capaz de dizer assim: não gosto do Pedro porque o Pedro me fez isto de mal. Não pode! Se houver, que dê um passo em frente e abra a boca. Estou limpo, de costas seguras e nunca tentei prejudicar fosse quem fosse. Peco, por vezes, por me dar demais. Depois dói-me ter de tirar. Mas eu consigo suportar isso. Acho que é uma das maleitas do processo de crescimento. Crescer dói. Mas nisso aí também sou implacável: como quem não se sente, não é filho de boa gente… eu acredito que sou. E preso muito a minha memória.

Como queria estar a sós contigo, trouxe-te cá para fora e estivemos os dois ao solinho, tu com o meu casaco pelas costas. Soprava um vento frio. Parecia Inverno e não a Primavera que vem sempre com os teus anos, do tempo quente e das andorinhas no teu beirado de casa, que quis gravar no meu peito para sempre. Estivemos ali uns largos minutos, em que nos enfiámos numa máquina do tempo para a Beirã dos anos 70 e muitos, quase 80. Passou por nós a Dona Alzira, grávida do Miguel. Sentados ao sol nas escadarias da Rua Fernando Namora nº 1, tu coçavas-me a cabeça com os teus pentinhos com que ajeitavas o poupo, cá atrás. Olhei-te nos olhos e já não vi a luz, vida, vontade. Apenas uma claridade vaga e um fitar perdido, atordoado, sem saberes muito bem ao que ias e estavas.


Era capaz de estar ali tempos sem fim, assim encostado a ti, só a sentir-te. O teu calor na minha mão.

Fui-te levar à salinha para o jantar e passámos pela grande cá de cima, onde as coleguinhas se meteram contigo com um “ah, mas estou tão bonita hoje…”
- A minha tia faz hoje os anos!
- Ai sim?!?!?!? Então dê cá um beijinho de parabéns, e vieram todas, ou quase todas a beijá-la. Ela coitadinha, já nem isso sabe dar. Encosta a carinha.
- Então de quando é?
- Século passado, 31.Faz os 86.
- Então é minha quinta!!! Dá um beijinho.

Tão bom.

Foi a primeira a sentar-se. Ficou assim, no dia em que celebrou os 86 anos de vida. Sozinha. Assim chegamos, assim partimos, por muito acompanhados que estejamos. Não vale de nada a pergunta se: “valerá a pena, assim?”. Será conforme a vontade de Deus. A ele pedimos a força suficiente para conseguirmos aceitar a sua vontade. O mano João, meu pai, partiu com 35 anos menos. Nós nunca saberemos como é que será o nosso percurso de vida. Até ser.


Ao passar por algumas colegas, falavam entre si de voz baixa. A uma saiu-lhe um “ai… este sobrinho… vale ouro. Se não fosse ele…”

Sorri e fiquei a pensar que, não me interessa os outros todos, familiares, amigos, conterrâneos, mais ou menos próximos. Eu sei… de mim. E por mim, hei-de sempre estar e responder, até que Deus queira. Não há rankings aqui de afetos, não há pagamentos a serem feitos, não há aqui prestações de contas. É a consciência. O sentido do dever cumprido, ou não. Eu examino-a todas a noites, antes de me encostar, e deito-me sempre de paz com ela. Sei que sei pedir perdão, assim que me aperceba que falhei, porque falhar é humano. Mas fechar os olhos com a tranquilidade de ter estado bem, não tem preço.

Eu sei que a Cali foi feliz. Pedimos um de cada vez. Até que Ele queira.


Eu também fui feliz. Sou.

Obrigado

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