domingo, 8 de agosto de 2021

Shangri La - meu horizonte longínquo sobre carris - Parte II - A (minha) Raíz


Avô Leopoldo e avó Joaquina, sorrindo, à varanda, numa rara imagem assim, dos dois


Toda a minha família para aqui se deslocou chegada da zona de Segura, Castelo Branco, onde o meu avô paterno chegou a chefe da estação dos comboios, como culminar de uma carreira construída sempre por mérito.

Essa figura determinante e patriarcal que nunca tive o prazer de conhecer (faleceu em 71, com essa mesma idade, quando eu, apenas dois anos depois, haveria de chegar), foi, absolutamente central na história da família Sobreiro. Pelo que sei e me foi chegando, sempre pelo relato de familiares próximos que com ele privaram, o meu avô foi um verdadeiro trepador, um fura pasto que entrou nos caminhos-de-ferro portugueses por baixo para, graças ao seu empenho, e à sua capacidade de trabalho, ter escalado por aquela estrutura acima, até se ter reformado como inspetor, depois de ter sido responsável pelas estações da Beirã, e de Valência de Alcântara, onde chegou a residir com a sua família. Recordo-me bem, enquanto criança, de voltarmos religiosamente a Valência, todos os sábados de tarde, para ali ficar boquiaberto com a facilidade com que as minha tias falavam castelhano, conheciam toda a gente, e por todas eram cumprimentadas como se ainda ali vivessem.

    Tanto que eu lamento não conseguir andar para trás na minha árvore genealógica, mas duas gerações antes da minha, é o mais distante que consigo chegar. Concedo que possa nunca ter investigado tanto quanto podia, mas a verdade é que as tecnologias eram poucas naquele então, os recursos também, e as máquinas fotográficas, hoje banalizadas em qualquer telemóvel moderno, eram um caso muito raro.

    Os meus avós maternos sempre estiveram longe, em Idanha-a-Nova, terra de onde a minha mãe é natural. Não tendo viatura própria, e nunca tendo memória de me terem visitado aqui onde vivia, foram duas figuras que se foram formando no meu imaginário afetivo alimentadas apenas por duas ou três visitas anuais, pelas férias grandes, pelo Natal; e uma ou outra visita esporádica de fim-de-semana. O meu avô era alfaiate de grande categoria e minucia, tendo inclusivamente realizado muitos trabalhos para a conceituada marca Dielmar. Homem católico convicto, sempre muito atencioso e compenetrado, lia imenso. Apesar de ter sido um excelente aluno, nunca teve hipótese de prosseguir os estudos, por dificuldades económicas. Não consigo dizer quem foram os meus bisavós. A minha mãe certamente levará isto a mal, mas é verdade. Aliás, com os avós paternos, passa-se o mesmo.

Os “Cometas Negros”, de Castelo Branco, com o João todo de negro, lá atrás.


   E como é que que pegando em todas estas pontas soltas, os astros se conjugaram para que a minha génese fosse possível? Pois teve a ver com um baile de finalistas em Idanha-a-Nova, e a banda contratada para animar tal evento serem uns tais “Cometas Negros”, de Castelo Branco, que eram um sucesso na altura, porque interpretavam o rock que chegava rolando pelas rádios piratas das ilhas de sua majestade. Rádios “bravas”, não legais porque o chefe do governo de Portugal, um tal Professor Oliveira Salazar defendia que só o que era nacional é que era bom, e por isso o Fado, Fátima, e o Futebol, maioritariamente do Benfica, claro está, interessavam. Tendo ficado classificados em segundo lugar num concurso de “ié-ié”, realizado no Monumental de Lisboa, vencido pelos “Sheiks” do Paulo de Carvalho, os Cometas não eram assim um asteróidezeco qualquer, e batiam forte. A sua fonte eram os Beatles, os Shadows e outros que tais. Entre outros grandes músicos, lá atrás, na tarola de uma Ludwig igualzinha à do Ringo Starr, estava um rapazola cheio de monetes, com uns tiques que o transfiguravam em grande caretas, que eu não sei precisar (porque nessa altura, não estava lá), se já os tinha de nascença, ou foi ganhando pela vida fora.

Ora o bom do João Sobreiro tinha na sua folha de finalista do liceu, uma caricatura que deixava antever, com a ajuda das rimas que a legendam, a figura de que estamos a falar: música, mulheres, copos, e muita confusão por tantas vezes se meter em saraus que acabavam ao murro. Criado numa família muito matriarcal, rodeado por três irmãs mais velhas, uma delas quase com idade para ser sua mãe, a Maria; cedo mostrou que não teria aptidão para seguir as pisadas do pai, e de saber receber as muitas cunhas que certamente teria, mas que preferia… algo diferente, não tão… absorvente, digo eu.

Deixou de tocar nos Cometas Negros quando estavam a atuar no casino de Monte Gordo, e apesar de bem pagos, sobrava sempre pouco para o dia seguinte. Estando a família a passar férias em Armação de Pêra, o meu avô apanhou o autocarro, deslocou-se ali, e procurou por lá informar-se se lhe poderiam dizer onde estava a banda. Segundo me contou o meu próprio pai, quando se aproximou deles, perguntou pelo seu João, e não o conseguiu reconhecer, tais eram os penteados.

“Paizinho, estou aqui…”, foram as palavras que lhe conseguiu dirigir, temerário.

Com calma e sensatez, o Sr. Leopoldo chamou-o à parte, e colocando-lhe a consciência no sítio onde deveria estar, recordou-lhe que dentro de dias teria de se ausentar para outro continente, para lutar por essa terra contra os naturais dela. Ao saber que teria de arriscar a sua própria vida; que a mãe, as irmãs, e restante família estavam todos a passar um período de férias de Verão a escassos quilómetros dali, em Armação de Pêra, convidou-o a dar-lhes o prazer de voltarem a estar juntos, apesar de pairar sobre o reencontro, a angústia da dúvida de o poderem não votar a ver mais.

Gozaram assim de um reencontro saboroso que antecedeu um período duríssimo, que haveria de moldar o meu pai para sempre, em que deve ter vivido experiências absolutamente marcantes de companheirismo, beleza natural, medo, farra, festa e dor. Tantas noites, depois de tantos anos, continuava a acordar de noite, sobressaltado, a chorar, a suar, em sofrimento… Porque o estigma do stress pós traumático é uma realidade, embora invisível, quase sempre constante em quem arriscou a vida lá fora, muitas vezes por uma causa que nem sequer percebia, quanto mais querer que concordasse com ela.

Depois do regressado são e salvo, o João e a Alzira casaram-se em Fátima, a 19 de Dezembro 1971, e assentaram arrais na Beirã, nesta pequena aldeia movida por serviços, onde a 8 de Junho de 1973 receberam nos braços este seu filho, experiência de vida que iriam repetir 7 anos depois, em 25 de Janeiro, com a chegada do Miguel.


Casamento de João Sobreiro e Alzira Ereio,
a 19 de Dezembro de 1971, em Fátima


    
Sendo filho da revolução que estaria para acontecer no ano seguinte, não tenho memória alguma do que foi estar sob o Estado Novo, e do que foi viver sem liberdade. O que sim sei foi que o meu tio Lázaro trabalhava para a P.I.D.E., sobretudo na área do controle de passageiros e mercadorias da fronteira, mas que não era considerado como se fosse mais um dos maus, porque se limitava a bem exercer as suas funções, a ser profissional, e a defender o nosso país de ameaças externas. Mais assustado ficou o meu pai que na ânsia de conseguir destruir todos os vestígios de tempos sombrios que o cunhado teria em seu poder (livros e outro material), os queimou num grande lumaracho no quintal, para que não pudessem ser descobertos pelos revolucionários, sob pena disso poder ter consequências nefastas para a toda a família.

Por isso, não me lembro que me tenham mandado calar sem que me tivessem dado uma explicação, como não me lembro de não poder dizer, desde que houvesse educação, claro, aquilo que me ia cá dentro. 


Na Beirã, juntos por um evento qualquer, comigo menos bem disposto que a mãe.
Sou fã de tudo! (da camisa à Bee Gees do pai, das patilhas, dos óculos e do bigode; bem como da camisola e dos óculos da mãe!)

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