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Avô Leopoldo e avó Joaquina, sorrindo, à varanda, numa rara imagem assim, dos dois |
Toda a minha família para aqui se deslocou chegada da zona de Segura, Castelo Branco, onde o meu avô paterno chegou a chefe da estação dos comboios, como culminar de uma carreira construída sempre por mérito.
Essa figura determinante e patriarcal que nunca tive o prazer de conhecer (faleceu em 71, com essa mesma idade, quando eu, apenas dois anos depois, haveria de chegar), foi, absolutamente central na história da família Sobreiro. Pelo que sei e me foi chegando, sempre pelo relato de familiares próximos que com ele privaram, o meu avô foi um verdadeiro trepador, um fura pasto que entrou nos caminhos-de-ferro portugueses por baixo para, graças ao seu empenho, e à sua capacidade de trabalho, ter escalado por aquela estrutura acima, até se ter reformado como inspetor, depois de ter sido responsável pelas estações da Beirã, e de Valência de Alcântara, onde chegou a residir com a sua família. Recordo-me bem, enquanto criança, de voltarmos religiosamente a Valência, todos os sábados de tarde, para ali ficar boquiaberto com a facilidade com que as minha tias falavam castelhano, conheciam toda a gente, e por todas eram cumprimentadas como se ainda ali vivessem.
Tanto que eu lamento não conseguir andar para trás na minha árvore genealógica, mas duas gerações antes da minha, é o mais distante que consigo chegar. Concedo que possa nunca ter investigado tanto quanto podia, mas a verdade é que as tecnologias eram poucas naquele então, os recursos também, e as máquinas fotográficas, hoje banalizadas em qualquer telemóvel moderno, eram um caso muito raro.
Os meus avós maternos sempre estiveram longe, em Idanha-a-Nova, terra de onde a minha mãe é natural. Não tendo viatura própria, e nunca tendo memória de me terem visitado aqui onde vivia, foram duas figuras que se foram formando no meu imaginário afetivo alimentadas apenas por duas ou três visitas anuais, pelas férias grandes, pelo Natal; e uma ou outra visita esporádica de fim-de-semana. O meu avô era alfaiate de grande categoria e minucia, tendo inclusivamente realizado muitos trabalhos para a conceituada marca Dielmar. Homem católico convicto, sempre muito atencioso e compenetrado, lia imenso. Apesar de ter sido um excelente aluno, nunca teve hipótese de prosseguir os estudos, por dificuldades económicas. Não consigo dizer quem foram os meus bisavós. A minha mãe certamente levará isto a mal, mas é verdade. Aliás, com os avós paternos, passa-se o mesmo.
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Os “Cometas Negros”, de Castelo Branco, com o João todo de negro, lá atrás. |
E como é que que pegando em todas estas pontas soltas, os
astros se conjugaram para que a minha génese fosse possível? Pois teve a ver
com um baile de finalistas em Idanha-a-Nova, e a banda contratada para animar
tal evento serem uns tais “Cometas Negros”, de Castelo Branco, que eram um
sucesso na altura, porque interpretavam o rock que chegava rolando pelas rádios
piratas das ilhas de sua majestade. Rádios “bravas”, não legais porque o chefe
do governo de Portugal, um tal Professor Oliveira Salazar defendia que só o que
era nacional é que era bom, e por isso o Fado, Fátima, e o Futebol,
maioritariamente do Benfica, claro está, interessavam. Tendo ficado
classificados em segundo lugar num concurso de “ié-ié”, realizado no Monumental
de Lisboa, vencido pelos “Sheiks” do Paulo de Carvalho, os Cometas não eram
assim um asteróidezeco qualquer, e batiam forte. A sua fonte eram os Beatles,
os Shadows e outros que tais. Entre outros grandes músicos, lá atrás, na tarola
de uma Ludwig igualzinha à do Ringo Starr, estava um rapazola cheio de monetes,
com uns tiques que o transfiguravam em grande caretas, que eu não sei precisar
(porque nessa altura, não estava lá), se já os tinha de nascença, ou foi
ganhando pela vida fora.
Ora o bom do João Sobreiro tinha na sua folha de finalista do
liceu, uma caricatura que deixava antever, com a ajuda das rimas que a
legendam, a figura de que estamos a falar: música, mulheres, copos, e muita
confusão por tantas vezes se meter em saraus que acabavam ao murro. Criado numa
família muito matriarcal, rodeado por três irmãs mais velhas, uma delas quase
com idade para ser sua mãe, a Maria; cedo mostrou que não teria aptidão para
seguir as pisadas do pai, e de saber receber as muitas cunhas que certamente
teria, mas que preferia… algo diferente, não tão… absorvente, digo eu.
Deixou de tocar nos Cometas Negros quando estavam a atuar no
casino de Monte Gordo, e apesar de bem pagos, sobrava sempre pouco para o dia
seguinte. Estando a família a passar férias em Armação de Pêra, o meu avô
apanhou o autocarro, deslocou-se ali, e procurou por lá informar-se se lhe
poderiam dizer onde estava a banda. Segundo me contou o meu próprio pai, quando
se aproximou deles, perguntou pelo seu João, e não o conseguiu reconhecer, tais
eram os penteados.
“Paizinho, estou aqui…”, foram as palavras que lhe conseguiu
dirigir, temerário.
Com calma e sensatez, o Sr. Leopoldo chamou-o à parte, e
colocando-lhe a consciência no sítio onde deveria estar, recordou-lhe que
dentro de dias teria de se ausentar para outro continente, para lutar por essa
terra contra os naturais dela. Ao saber que teria de arriscar a sua própria
vida; que a mãe, as irmãs, e restante família estavam todos a passar um período
de férias de Verão a escassos quilómetros dali, em Armação de Pêra, convidou-o
a dar-lhes o prazer de voltarem a estar juntos, apesar de pairar sobre o
reencontro, a angústia da dúvida de o poderem não votar a ver mais.
Gozaram assim de um reencontro saboroso que antecedeu um
período duríssimo, que haveria de moldar o meu pai para sempre, em que deve ter
vivido experiências absolutamente marcantes de companheirismo, beleza natural,
medo, farra, festa e dor. Tantas noites, depois de tantos anos, continuava a
acordar de noite, sobressaltado, a chorar, a suar, em sofrimento… Porque o
estigma do stress pós traumático é uma realidade, embora invisível, quase
sempre constante em quem arriscou a vida lá fora, muitas vezes por uma causa
que nem sequer percebia, quanto mais querer que concordasse com ela.
Depois do regressado são e salvo, o João e a Alzira casaram-se em Fátima, a 19 de Dezembro 1971, e assentaram arrais na Beirã, nesta pequena aldeia movida por serviços, onde a 8 de Junho de 1973 receberam nos braços este seu filho, experiência de vida que iriam repetir 7 anos depois, em 25 de Janeiro, com a chegada do Miguel.
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Casamento
de João Sobreiro e Alzira Ereio, a 19 de Dezembro de 1971, em Fátima |
Sendo filho da revolução que estaria para acontecer no ano
seguinte, não tenho memória alguma do que foi estar sob o Estado Novo, e do que
foi viver sem liberdade. O que sim sei foi que o meu tio Lázaro trabalhava para
a P.I.D.E., sobretudo na área do controle de passageiros e mercadorias da
fronteira, mas que não era considerado como se fosse mais um dos maus, porque
se limitava a bem exercer as suas funções, a ser profissional, e a defender o
nosso país de ameaças externas. Mais assustado ficou o meu pai que na ânsia de
conseguir destruir todos os vestígios de tempos sombrios que o cunhado teria em
seu poder (livros e outro material), os queimou num grande lumaracho no
quintal, para que não pudessem ser descobertos pelos revolucionários, sob pena
disso poder ter consequências nefastas para a toda a família.
Por isso, não me lembro que me tenham mandado calar sem que me tivessem dado uma explicação, como não me lembro de não poder dizer, desde que houvesse educação, claro, aquilo que me ia cá dentro.
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