domingo, 17 de outubro de 2021

Shangri LA… - O meu horizonte longínquo sobre carris (PT VI) - Coisas a que brincávamos (naquela Beirã idílica)...

Com os óculos de ler do meu pai... tinha cá uma graça...

Para além de todos os jogos possíveis e imaginários de crianças que viviam numa aldeia situada no interior, no campo, existiam alguns inventados por nós, com regras muito próprias, que a existirem noutros lados, teriam pouco, ou nada a ver:

a)    Jogar aos castelos

Consistia basicamente num versão do jogo da apanhada, mas com regras muito próprias. Teriam de existir duas equipas com um número de participantes discutível e variável (dos 4 aos 20) que teria de ser dividido pelas duas, de forma homogénea. Uma equipa ficava de guardiã do espaço a conquistar (o adro da igreja da Beirã), e a outra equipa teria de fugir pela aldeia. Quando a equipa fugitiva dobrava a curva da Rua Vivas (a da igreja), a equipa que defendia o castelo poderia disponibilizar os membros que entendesse para os ir apanhar. Geralmente ficavam apenas dois, mais que suficientes, a guardarem o castelo (não mais que dois metros de entrada) para apanharem algum que chegasse ao último reduto.

O ideal seria, para um elemento da equipa fugitiva que queria conquistar o castelo, fugir a todos os caçadores, conseguir aproximar-se do castelo, e entrar nele sem ser apanhado, ganhando-o. Ou então, do ponto de vista da equipa que defendia, seria encontrar os fugitivos, e apanhá-los, um a um. Este jogo poderia ser muito rápido, como durar noites inteiras sem nunca ter sido resolvido. Acredito que ainda haja muitos nesta fase… há alguns anos.

 

b)    (Ir ao) Tanque da Broca

Nos anos 80, a Broca era já uma exploração decrépita e tenho ideia que pouca ou nenhuma atividade mantinha regularmente. Por vezes via o então proprietário, o Sr. João Forte, figura caraterística ainda viva, de grandes barbas longas, sempre de gorro de malha, fizesse frio ou calor, com duas ou três vaquitas pela estrada acima, mas a propriedade original fora fundada pelo seu pai, que faleceu centenário, e nunca cheguei a conhecer sendo eu já grande. Tinha diversas construções, uma das quais, um aviário; outra, uma vacaria, mas o encanto dos petizes da altura era o tanque, um espaço não muito grande mas que tinha sempre água a correr, onde os animais iam beber água. Era adornado com ervas, musgo, um ou outro inseto que se movia à tona da água; e os pais, não viam com os melhores olhos a atividade balnear dos petizes por lá.

Lembro-me que de uma vez, das muito poucas que o meu pai me meteu a mão em cima, trazia as cuecas molhadas na mão quase à hora de jantar, quando fui inquirido do porquê daquele preparo (não cheguei a tempo de as meter logo no saco da roupa suja, atrás da porta da casa de banho), e não consegui mais que uma desculpa esfarrapada que me valeu um açoite, porque revelei o motivo proibido que originou aquela situação.

Ir ao tanque da Broca era o máximo! Era a nossa Portagem.

 

c)    Corridas (de equilíbrio) em cima da linha (do comboio)

Conseguir manter o equilíbrio enquanto se caminhava rápido sobre os carris, era um desafio simples e que poderia ser um bom entretém. Atendendo a que junto ao depósito da água, existem diversas linhas, principais e acessórias, para que ficassem estacionados algumas carruagens que transportavam carros e mercadorias, poderia ser bem divertido num período de férias de verão, quando muitas crianças chegadas de fora, vinham visitar os familiares.

 

d)    Ir aos pássaros

Este era um passatempo claramente para os indivíduos mais velhos, já proprietários de uma pressão de ar, ou com a possibilidade de terem acesso a uma de um pai, irmão, primo, tio e por aí fora. Consistia em descobrir uma árvore onde os pássaros, habitualmente pardais, pernoitassem, para depois disparar sobre eles enquanto dormiam com recurso a uma lâmpada forte para os focar. Não só nunca gostei de pássaros fritos (não têm chicha! Aquilo é só ossos!), como sempre me pareceu da maior cobardia tal conceito, de matar enquanto dormem! Deus m’a livre! O meu coraçãozito de criança boa nunca me permitiu achar piada a tal entretém, e sempre me pareceu mais um exercício de cobardia, de luta desigual, que outra coisa qualquer.

Havia também a variável de “Ir às rãs”, mas também nunca gostei das suas patas fritas, como também sempre achei completamente absurdo andar aos tiros de pressão de ar aos animais. Sempre fui menina, aqui, ostracizado pelos demais machos que se queriam fazer grandes.


  Na minha festa do 3º aniversário, 1976, numa autêntica foto de geração, com (da esq. para dir., e de cima para baixo): Zé Luís Murta, “Bela” Carita, ladeados por uns olhos que não consigo identificar; a vizinha Paula, rindo, e outro rosto irreconhecível ao lado. Ao centro, os gémeos “Quim” e “Xana” Carita, com Rui da Paz no meio de ambos. Depois “Zé Fernando”, muito sério, e “Zé Manuel Pop” Dias. 

  Em baixo, Filipe Maridalho, rindo às gargalhadas; Vítor Felino, eu, a minha vizinha de Lisboa de quem gostava muito, muito (a São?), que nunca mais vi. 

 Ao lado temos outro roto que não consigo identificar, e claro que o Tó Manel Mimoso, com um sorriso único, presidente daqueila freguesia até agora.


e)    Polícias e ladrões / índio e Cowboys / Detetives e Espiões

Creio que faz parte do imaginário infantil desde sempre brincar aos bons e aos maus, no seguimento dessa luta ancestral entre o bem e o mal, seja no campo, ou na cidade. Qualquer criança da Beirã nos 70 brincava assim, como certamente se teria brincado desta forma nos anos 60, e se brincou nos 80. Não sendo, pois, um exclusivo da infância rural, e certamente também teria entretido muitos petizes pelas urbes desse país fora, o que eu sim posso garantir é que aqui assumia contornos verdadeiramente hilariantes Agora que penso nisso, recordo que a discussão “estás morto ou não” mantida entre dois contrários situados em cabeços contíguos, era coisa para demorar… muito tempo… e quem ganhava sempre era… o mais velho (claro!)

Diversos elementos, e equipamentos poderiam ser adicionados para adensar a trama, mas uma nova arma comprada algures, talvez em Valência de Alcântara de onde vinham muitas e frescas novidades (não se esqueçam que em Portalegre ainda não existiam grandes superfícies comerciais, e era tudo caríssimo), ou um recém-construído (um atira-chinas, por exemplo, que consistia num pau comprido aí com um meio metro, que levava um elástico dobrado pregado numa das extremidades, para poder projetar uma carica (china) espalmada que segurava numa mola de roupa pregada na outra ponta) seriam fabulosos para adensarem o mistério.

 

f)     Jogar ao alho

O “Lá vai alho” era um jogo dos antigos populares que foi muito bem integrado pela nova geração porque o tradicional, que consistia numa equipa de dimensão variável dependente da composição da outra, que saltava para as cavalitas da que por sorte ficava de cabeça baixa a suportar os colegas, a “levar com o alho”, portanto; foi adaptado numa versão hard em que o pessoal se mandava “à maluca”, e avacalhava a situação. Aí, dava diversão. E mazelas! Mesmo.

A versão do lenço foi abandonada porque precisamente lhe faltava esta componente radical.

 

g)    Visita aos vagões estacionados ao lado da linha

Os vagões estacionados ao lado da linha, que serviam de camarata para os funcionários que estavam longe de casa e ali pernoitavam, consistiam um festim para a criançada ávida de novos conhecimentos. Ali tínhamos muitas vezes o primeiro contato com revistas para adultos que por lá eram abandonadas, visivelmente utilizadas, de páginas coladas, e ficávamos deslumbrados com esta educação sexual alternativa hardcore. É bom que se note que ainda não estávamos nos 80, o Estado Novo só tinha terminado há um par de anos, e tudo era muito longínquo.

“Gina”, “Tânia”, “Weekend Sex” passaram a integrar o nosso vocabulário… e as nossas prateleiras escondidas em casa.

 

h)    Ir aos tortulhos

Sempre que as condições meteorológicas o permitiam, e o sol rasgava as nuvens depois de temporadas de chuva, os fungos por todos mais desejados conhecidos como tortulhos, brotavam da terra em lugares específicos, cujas condições morfológicas, de luz e exposição, os tornavam num el dorado a perseguir.

Havendo alguns destes sítios perfeitamente identificados, eram supervisionados por espertalhões que tomavam aquele espaço como se fosse seu, muito porque o proprietário da terra não se preocupava com essa prática, e asssim ninguém lhes fazia frente.

Este repasto que sempre adorei, era confecionado por alguns com ovos mexidos, de omelete, mas na minha casa eram habitualmente cozinhados apenas grelhados à moda do meu pai, sob uma chapa, ao fogão, com duas ou três pedrinhas de sal no chapéu, virado ao contrário, formando um molhinho delicioso e suculento. Claro que para evitar que esses míscaros fossem venenosos, e pudessem ser motivo de um final trágico, era sempre colocado sobre eles um anel de prata, que, caso não ficasse negro, conferia a validade do produto.

Nunca cheguei a saber se esta cautela era mesmo válida, e me poderia servir de descanso, mas até à data, graças a Deus, resultou sempre.

Certo dia, alguém me convidou para também eu “ir a eles”. Ou porque tinha chovido muito e haviam muitos, ou porque alguém soprou que sabia de um sítio, enchi-me de coragem… e fui!    

Quase que me recordo do ar de espanto e felicidade do meu pai, pela minha intrépida audácia, mas assim que os começou a tirar do saco e a olhar bem para eles (e se eu procurei sempre os branquinhos com a anilha branca à volta do pé), foi fazendo um monte maior e um mais pequenito, com muitos menos.

- Então pai? Estes poucos não prestam?

Olhou para mim com um ar de misericórdia, e disse baixinho: não filho, estes poucachinhos, são os únicos que são bons. Os outros… é melhor não comermos.

Agora gosto muito que mos possam oferecer… Só.

 

i)     Andar de Carrinhos de Rolamentos

Então era assim: os rolamentos vinham não sei bem de onde, mas a verdade é que se pegássemos em quatro, e lhe metêssemos dois paus redondos a unir, de dois em dois, com uma madeira em cima, tínhamos um carrinho de rolamentos. Atualmente, existe inclusive, uma corrida deles no Porto da Espada, que já vai sendo muito popular.

As viaturas poderiam ter diversos formatos, atendendo ao tipo e tamanho do rolamento utilizado. Muitas vezes, eram utilizados dois maiores no eixo de trás, o que sempre conferia um ar racé, e desportivo. A memória que tenho era que o meu pai era muito jeitoso para bricolages, e o meu era dos mais rápidos de então.

       De visita ao Cristo-rei e a Lisboa: Gina, Vítor Felino, Bela Carita, com Miguel Sobreiro à frente, eu e Paulo Varela, Zé Dias e os manos Carita. 

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