Depois
de algum tempo de interregno, depois de uma paragem sem motivo aparente, mas que é apenas um sinal dos tempos que vivo, e vivemos, publico o último capítulo do meu
contributo para as memórias das freguesias de Santo António das Areias e Beirã.
O mítico Raul |
a)
Raúl
Numa galeria de figuras da minha terra, a primeira tem
claramente de ser esta, que dos cromos, era o maior: o Raúl era um rapazinho,
já homem, que nós achávamos não tão velho, embora soubéssemos mais avançado que
nós, que andaria aí pela casa dos 40, quando nós ainda éramos pequenos. O Raúl
tinha assim um corpo apequenado, de bracinhos pequeninos, e perninhas
esquálidas. Andava sempre “bem” vestido, de camisinha, às vezes fato, por vezes
gravata, mas sempre de chapéu. Provavelmente teria sofrido um ataque qualquer
quando era mais novo, ou teria vindo assim de nascença, mas como era diminuído,
o pobre, era muitas vezes alvo de gozo e troça dos miúdos, que nisto aqui, são
cruéis. Não digo éramos, porque nunca o tratei mal, e até sempre nutri por ele,
um carinho muito grande, porque nunca foi violento. O Raúl não articulava bem
as palavras, ora as balbuciava, ora as murmurava, e quase sempre se babava,
quando o fazia.
O Raúl era indissociável do seu carrinho de mão, que era como
se fosse uma extensão de si mesmo. O carrinho estava sempre carregadinho de
pedras, algumas bem grandes e pesadas, que ele acartava para o alto de um
monte, ali para junto do ribeiro, para conseguir construir uma “câja” para ele
e para a “Nina”, que era a sua apaixonada, mas de quem eu já não me recordo
muito bem se sabia quem era. Dias inteiros, as vezes bem de manhãzinhas, e
noite até, num trabalho incessante para a conquista de um sonho perdido que
nunca conseguiu.
O que eu sim me recordo assim mesmo muito engraçado, e faz-me
sorrir quando relembrei, era quando alguém o incomodava, importunava, lhe fazia
frente, e ele prontamente ameaçava em ir a “Xantantônho” à “câsadaquexa”,
traduzindo, a Santo António das Areias, à casa da queixa, ou seja, à GNR.
Lamento tanto que o seu desaparecimento não tenha guardado um
lugar na minha memória, mas a verdade é que lhe perdi o rasto. Não me consigo
recordar aquando se deu o seu fim, em que momento da minha vida de migrante da
terra o perdi, mas a verdade é que se foi, e para mim, hoje que olho para trás,
sinto que o hei-de sempre recordar assim, a beber um Sumol fresquinho, talvez
de laranja (creio que não bebia álcool), para atenuar o calor, enquanto voltava
a pegar no carrinho de mão cheio de pedras e se fazia à estrada sob um sol
abrasador de Verão.
b)
O “Calcinhas”
O “Calcinhas”,
figura mítica e a 3 dimensões desta galeria, era todo um figurão. Já homem de bem
mais que meia-idade, de quem parece que estou a ver a sua cara, e ouvir o seu
riso; vivia na Beirã mas creio que não era de lá. Tinha um emprego altamente
conceituado na alfândega, e era um senhor muito bem remunerado que vivia bem,
quer-se dizer, bem… em termos financeiros, porque… de resto, não tinha esposa,
filhos e familiares mais próximos. Era um solteirão já bem avançado, que fazia
as delícias da pequenada, quando nos ia contando as suas aventuras e
desventuras nas visitas que fazia às casas das meninas de região. O seu
Volkswagen carocha branco, com diversos pacotes de leite no tablier traseiro,
para desintoxicar dos excessos da noite anterior, percorre todos os tempos da
minha meninice.
Era baixinho, estava assim sempre meio vermelhote (?), e cheirava a perfume manhoso. Era calvo mas tinha o pouco cabelo sempre impecavelmente penteado, puxado para trás?
Mudo
Todas as terras
tinham um mudo, e o da Beirã… era bem castiço. Não me consigo recordar de onde
era oriundo, mas se o visse hoje ao longe, reconhecê-lo-ia de imediato. Não é
que fosse mudo de todo, e fartava-se de nos dizer que mudez, não é surdez; e
conseguia ouvir algumas coisas, como quando abria os braços esticados, emitia
um som com os lábios a baterem como se fosse um motor, e olhava o céu, imitando
um avião.
Mandava-nos à
merda, quando gozávamos com ele, enrolando o dedo polegar à volta do nariz.
d)
Sr. Cardoso, “O
Cardosão”
De todas, a
mais erudita das figuras, era todo um cavalheiro. Calvo, sempre muito bem
vestido e composto, natural do norte, tenho ideia que de boas famílias, vivia
com a sua esposa, a D. Aurócia (?), e não tinha descendência. A sua casa, enorme,
na rua da igreja, tinha um escritório na parte de baixo; repleta de livros em
estantes, onde passava as tardes e as noites a ler. Fumador inveterado, adorava
receber a malta nova que nos sentávamos no chão, boquiabertos, a admirar as
suas preleções. Quem nunca fumou o seu primeiro cigarrinho com o Cardosão?
Saudades imensas…
e)
Sr. Sabino
Alto, bonacheirão,
com ar simpático e sempre bem-disposto, o Sr. Sabino trabalhava na alfândega, e
era um companheirão mais velho do meu pai, que vivia no prédio (dos moradores)
da alfândega, onde hoje funciona a Unidade de Cuidados Continuados d’ “A ANTA”.
Ficarão para sempre eternas as enormes favadas (único prato que a minha mãe não
cozinhava, por não gostar) que os dois comiam em conjunto, na casa deste,
sempre extraordinariamente bem molhadas. De resto, toda a Beirã tinha um pedacinho
de terra onde produzia favas, ou lhas davam, ou as conseguiam, e quando assim
era… convidavam o João Sobreiro que, claro que aceitava, por ser o seu prato
favorito. Até hoje eu as como, nem que seja por ficar a pensar nele.
f)
João Forte
De festa, mãe Alzira sorridente com Sr. Sabino, e o João Forte |
O João Forte,
figura ainda viva, personagem de sempre da Beirã, atravessa décadas e passou de
século com a particularidade de, aos meus olhos, estar sempre igual. Com uma
forma muito própria de vestir, sempre com o seu gorro de lã, e o seu estilo
informal, ainda hoje, quando entra nas finanças onde trabalho, parece que se
estabelece um túnel em direção ao passado, e a Beirã volta a ser o que era, com
comboios e tudo.
Filho de famílias abastadas, que foram deitando a perder todo
o seu património, nem eu sei muito bem porquê, creio que vive na mítica Broca,
creio que sem grandes condições, mas ainda vai felizmente rodando por aí, como
se fosse imune à passagem do tempo.
g)
O menino
Augusto
Irmão do João Forte, ainda hoje vivo também, o “menino”
Augusto, como ele próprio se batizou, e gostava de ser tratado, era, e é, uma figura
absolutamente fascinante, fora de qualquer baralho. Tendo sido estudante no
colégio de Tomar, uma escola de elite daquele então, cuja frequência atesta bem
a saúde financeira da família, sempre teve de tudo, menos de parvo; embora
muitos assim o achassem, e eu estou em crer que sempre gozou foi com eles, ao
fazer-se passar por tal.
Sei que teve casado e tem filhas, mas eu entro no filme já
muito depois, e sempre o conheci como uma figura… que não tem nada a ver com
nada.
Não lhe conheci trabalho, qualquer zelo na apresentação e
indumentária, mas sempre muito amigo da pinga, e a sua fama de sempre
alcoolicamente bem-disposto, cruza tempos e gerações.
Lá está, houve quem nunca o compreendesse, quem o
ostracizasse, quem o ofendesse, mas eu sempre nutri por ele enorme carinho,
admiração, e estima sincera. Ainda hoje, quando o reencontro na Clínica
Sanvimed, onde ambos somos clientes, me conta sempre como está da sua maleita
que ainda não percebi bem se foi um ataque de sarampo que teve em criança, que
agora, de vez em quando sai????; se foi um ”cobro”?!?!?, se foi lá o que foi.
Ele diz sempre que o Dr. Vitoriano lhe salvou a vida porque os médicos do
hospital de Portalegre não sabiam o que lhe haviam de fazer, como se isso fosse
mesmo verdade.
Recordo com muita saudade, os discursos que fazia em plena
Carreira de Cima, Castelo de Vide, nos anos 80, quando eu lá estudava, estando
já num estado bem avançado, muito do meio para a frente, e começava a dar num
tom bem alto, as suas fantásticas preleções sobre tudo e sobre nada, sempre com
enorme eloquência, espírito argumentatório, capacidade de persuasão, e
profundidade filosófica. Certo dia, há bem mais de 30 anos, mas que jamais me
esquecerei, do nada, lançou para quem quis ouvir, esta dúvida existencial, onde
equacionava toda a economia de mercado: Eu, Augusto da Mota Forte, plantei uma
alface. Veio o coelho… comeu a alface. Veio o caçador… matou o coelho. Ora eu,
Augusto da Mota Forte, tenho ou não tenho direito a uma pata desse coelho?
h)
Sr. Murta
Já conheci o
Sr. Murta sempre assim, com este ar das fotos; ou pelo menos, já como homem de
meia idade. Distinto Senhor e vereador da câmara, era dono de uma casa
lindíssima, junto à igreja, com uma horta e fantástica tangerineira, cujos
ramos deixavam cair os belíssimos frutos para o largo em frente desta, que nós
devorávamos. Desconheço a sua ligação à terra, até em termos laborais, porque
sempre me lembro de ouvir a sua ligação aos aviões (ou estarei a fazer
confusão?).
O seu filho
Luís Murta, quase que um ídolo para nós crianças, ou pelo menos para mim, o
era; tinha numa casa anexa à dos pais, uma coleção de aviões em miniatura que
montava, diversos desenhos, e ligações a tudo aquilo que adorávamos.
Após da sua morte,
o filho mais novo, Zé Luís, partiu para a cidade; e o Luís explora há décadas
uma casa destinada a artigos de caça e pesca, de altíssima qualidade, em
Castelo de Vide.
i)
Bonachinho
(José Manuel Bonacho)
O Zé Manuel Bonacho era para nós, rapazes dos setentas, uma
espécie de irmão mais velho, que nos acompanhava e levava para todo o lado,
sobretudo para a célebre discoteca “A Maluka”, nos Fortios, em alta nesse
então, destino de quase todos os fins de semana, à sexta e sábado. Filho de pai
soldado da Guarda Fiscal, mas de uma família com terras e abastada, era um
solteirão inveterado, a quem creio que nunca foi conhecida nenhuma namorada.
Licenciado, tinha uma profissão muito segura e credenciada na região de saúde
do Alentejo. Foi-se deixando ficar. Também um fumador inveterado faleceu de
doença súbita, inesperada, creio que de uma embolia cerebral, irremediavelmente
cedo demais, ainda antes dos 50, tal e qual o seu vizinho de cima tinha sido,
uns anos antes.
j) Paulinho Cascavél, o Carcacinha
Oriundo de uma família de muitos irmãos, os Pereiras, chegada
mais tarde à terra; creio que oriundos do Pereiro; o Paulinho Cascavél, ou
Carcacinha, como nos habituámos carinhosamente a tratar, também merece um lugar
de destaque nesta galeria. Tendo entrado muito novo para o serviço militar, ali
fez toda a sua vida, tendo atingido o posto de cabo, acho eu. Figura muito
caraterística, com uma piada natural incrível, adaptava-se a todas as situações
e conseguia nunca cair em falso, porque era natural e nunca se armava ao
pingarelho. Era o que era.
Memórias incríveis de quando vínhamos juntos de fim-de-semana
no comboio da beira-baixa, e começámos a conversa que um tinha um chouriço, que
seria tão bom de comer então: e outro trazia um barrrozinho daqueles para
ofertar a alguém, onde se costumavam assar os ditos cujos; outro trazia álcool
(já não me lembro de puro, se do outro), mas dali a estarmos a assar chouriços
em pleno comboio foi um instante, sempre com um vigia em cada janela da
carruagem, não fossemos nós ser apanhados e presos.
Essa e as aulas de ordem unida em plenos carris, numa noite
de festa na terra, enquanto a banda tocava, e os níveis alcoólicos ferviam, são
postais eternos para todo o sempre.
Também faleceu cedo demais, pagando de forma pesada, o seu
comportamento desviante e libertino numa Lisboa dos anos 90 a escape livre,
quando as doenças mortais com nomes pequenos de siglas, ceifavam vidas incautas,
castigando-as sem dó, nem piedade.
Muito amigo, do seu amigo, geria uma hortazinha de onde tinha
muito prazer e alegria em dar.
Ficará sempre até sempre…
k) Zé Maria da Graça
Pai de três belas meninas da terra, casado com uma senhora
creio que dos lados de Nisa, Montalvão,
ou por aí; o Zé Maria da Graça personificava na perfeição a imagem-tipo dos
guardas-fiscais, a tal franja considerável da população masculina. Homem muto
correto, bom, e educado, dava-se bem com toda a gente, a todos queria bem, e
por todos era querido. Não sendo de muitos estudos, que não eram necessários
para aquela carreira, sabia estar, se posicionar, e bem parecer. Tinha nível.
Conhecia-me de toda a via, desde gaiato.
Voltei a apanhá-lo quando já era homem, e nutrimos uma
amizade boa, sincera e do melhor. Cliente habitual da Casa Nicau, da qual
passou a ser ainda mais asssíduo quando o estabelecimento passou para a frente
da sua casa, era um companheirão, e recordo com saudade imensa, as tardes de
tertúlia que passsámos a beber cerveja e a comermos “meio quilinho delas”,
sendo que elas eram deliciosas gambas fritas pela D. Teresa Nicau, com pãozinho
torrado, e molhinho de muita margarina derretida com sumo de limão. Coisa tão
boa…
Metia-se comigo, e gostava muito de na paródia, à frente de
pessoas com as quais não estávamos habitualmente, dizer: “vá, dá cá um beijinho
ao pai”, o que eu correspondia de imediato, com um repenicado na bochecha, para
ele me dizer de seguida, às gargalhadas, “Ai… eu adoro este gaiato! Gosto mais
dele do que se fosse meu filho!”
A sua morte súbita, quando caiu redondo para o chão, do nada,
no quintal de frente da sua casa, consternou-me imenso, e deu-me um abanão
tremendo por sentir que também o meu tempo se está a esvair, ao ver grandes da
minha galeria de ídolos e amigos ir-se esfumando.
Tó Gonçalves
A bem de ver, acho que nunca houve criança alguma na Beirã,
que não tivesse ouvido dos pais dizer, certo dia, quando procuravam um exemplo
a seguir: mete os olhos no Tó Gordo!
O Tó, para os amigos; gordo porque de magrinho nunca teve
nada, era o António Manuel Vaz Gonçalves, uma criança e um aluno brilhante, que
por todos era elogiado, e sempre foi identificado como um exemplo a seguir.
Também filho de um guarda fiscal, um Senhor guarda, o Sr. Gonçalves, sempre
muito calmo e correto, foi revelando desde muito novo, que era também uma carta
fora do baralho. Seguindo um percurso académico notável, entrou para a universidade
em Lisboa, para cursar Filosofia e… mudou. Os excessos da vida académica,
citadina, e o afastamento das raízes, fizeram com que se tivesse transformado
num barco à deriva que chegou a tocar os limites da sanidade. Meu amigo
pessoal, por quem nutro uma enorme estima, carinho e admiração, chegou, depois
desta fase mais difícil, de internamentos complicados, e processos muito difíceis;
a escrever uma notável obra poética, tão clara e visual, que sempre admirei
pela forma como as palavras cortavam o ar. Depois da tenebrosa travessia pelos
infernos da perdição, nunca de problemas duros e pesados, segundo me contou;
mas sim de uma relação proibida com o álcool; chegou a tirar um curso de Inglês
na Escola Superior de Educação de Portalegre, e não estou já bem certo se não
chegou mesmo a lecionar.
Ultimamente tenho notado, com grande mágoa, que o seu estado
de saúde se tem estado a agravar, e de cada vez parece mais que vive num mundo
isolado, só seu, que por mais que o queiram ajudar, se fecha sobre si mesmo, e
fica impenetrável.
Não creio que no dia 5 de Dezembro, muitos mais se tenham lembrado
de o abraçar para o felicitar pelo seu aniversário.
A alegria correspondida com que me olha sempre, comove-me sem
chorar.
l)
João Sobreiro
Foto clássica do pai, com a sua companheira de sempre... |
De figuras da terra, claro que não poderia passar por esta,
que obviamente não poderia ter outro
lugar, senão este, o derradeiro. O João Sobreiro foi um verdadeiro cometa negro,
como a célebre banda albicastrense a que pertenceu, que marcou a sua juventude
e de toda a região. Escrever sobre o ser que me deu a vida, e sinto que me
corre ainda hoje nas veias, é duro e doce ao mesmo tempo, é libertador e
recompensador, é justo mas com sabor a injustiça, como foi o seu
desaparecimento.
Figura muito popular em Castelo Branco nos anos 60, filho do
tal ferroviário que chegou a chefe daquela estação, depois da Beirã, e até de
Valência de Alcântara, onde se reformou como inspetor; nunca foi um apaixonado
pela escola.
Viveu a década quente do século passado em alta rotação,
quase com o estatuto de estrela pop/rock, estrelando nos bailes de finalistas
da região, tendo tido o seu auge num concurso de música moderna portuguesa no
Monumental, em Lisboa, que perderam apenas para os “Sheiks”, do Paulo de
Carvalho. Abandonou a ribalta quando teve de partir para uma guerra ultramarina
que não compreendia, e chegou a doar a sua estimada bateria Ludwig, que
ostentava sempre como grande relíquia, por ser igual à do Ringo Starr, dos
Beatles, um dos seus ídolos; não esperando regressar.
Nunca tendo brilhado nas aulas, apesar da belíssima
caligrafia e da técnica de desenho que nunca explorou convenientemente, no meu
entender, foi cumprindo os minímos para prosseguir. Quando voltou de além-mar, aceitou
o convite de emprego do seu tio/padrinho João Dinis Carita, como ajudante de
despachante, e fixou-se na Beirã, para onde trouxe a sua então namorada, depois
mulher, a idanhense Alzira Ereio. A Beirã naquela atura era então uma terra de
pleno emprego, onde se sabia que as pessoas que dependiam dos serviços viviam
bem, se respirava saúde social, e se fomentava uma frondosa vida comunitária.
O João Sobreiro afirmou-se então, como um homem que sabia
estar e, sobretudo, alguém ao lado do qual se estava bem, junto do qual havia
boa disposição e alegria de viver. Sempre acompanhado com a sua viola acústica,
que levava para todo o lado, e lhe permitia abrir alas em qualquer lugar, a
confraternizar com os seus amigos (cartadas, sueca e truco; e matraquilhos, eram
o seu forte), que eram sempre muitos; o João fazia a festa. Fosse depois de uma
caçada, numa jantarada, numa tarde/noite de bola, a seguir o seu Sporting; ou
noutra festa qualquer, poderiam haver muitos a dar nas vistas, mas nenhum com a
sua forma exuberante e sincera.
Para quem não o conhecesse, poderia parecer um bom-vivant,
talvez vago, até; mas quem soubesse bem como era, saberia bem destacar em si,
os aspetos menos conhecidos de bom leitor, do amante de palavras cruzadas, de
apaixonado de cowboyadas, em livro, ou cinema.
Dono de um coração puro que poucos conheciam (as farras e os
excessos eram sempre um assunto muito mais apetecível), tinha gestos e
pormenores que jamais esquecerei, como depois de a sua mãe, a minha querida avó
Joaquina, ter falecido; após diversas idas ao hospital de Portalegre para tentar
debelar o seu sofrimento, me ter vindo oferecer numa caixinha pequenina de plástico
de ourivesaria, que sei que ainda tenho em minha casa algures, com alguns dos
seus cabelinhos brancos caídos nas viagens, no banco do nosso Peugeot 205
vermelho.
Há 25 anos atrás não havia bombeiros, não havia VMER, não
haviam prontos socorros imediatos, Portalegre ficava sempre longe demais, e
aquela indisposição matinal, por vezes frequente, sempre recuperável, parecia
que haveria de passar. Mas infelizmente não passou, e assim ficou uma viúva
guerreira que teve de refazer a sua vida, começar tudo de novo na escola básica
integrada de Santo António, reintegrada no mercado de trabalho por concurso,
longe do seu serviço, que entretanto fechara, para assim conseguir que um filho
universitário conseguisse terminar os estudos superiores; e que o outro, que
ainda estava no início da sua escalada académica, conseguisse um lugar ao sol,
terminando o seu também.
Do João ficou a saudade imensa, diária, dolorosa, enquanto eu
durar; e a ânsia silenciosa de um dia conseguirmos voltar a dar um abraço dos nossos,
daqueles que dávamos quando me queria premiar sempre que sabia que tinha
alcançado um sucesso escolar, e onde ficávamos ali assim, colados, apertados, a
suster a respiração, sem nada dizer, ambos a sentirmo-nos a transbordar de
orgulho.
Tenho tentado ser um bom menino, pai.
Onde quer que estejas, um dia, que oxalá esteja longe, por
haver sempre tanto a fazer por aqui, vou ver de ti.
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