segunda-feira, 16 de maio de 2022

Shangri La - O meu horizonte longínquo sobre carris (Parte IX - Canastrões)

Depois de algum tempo de interregno, depois de uma paragem sem motivo aparente, mas que é apenas um sinal dos tempos que vivo, e vivemos, publico o último capítulo do meu contributo para as memórias das freguesias de Santo António das Areias e Beirã.

 

Segue-se um conjunto de memórias, das quais me vou lembrando quando quero escrever sobre o passado…

O mítico Raul

a)    Raúl

Numa galeria de figuras da minha terra, a primeira tem claramente de ser esta, que dos cromos, era o maior: o Raúl era um rapazinho, já homem, que nós achávamos não tão velho, embora soubéssemos mais avançado que nós, que andaria aí pela casa dos 40, quando nós ainda éramos pequenos. O Raúl tinha assim um corpo apequenado, de bracinhos pequeninos, e perninhas esquálidas. Andava sempre “bem” vestido, de camisinha, às vezes fato, por vezes gravata, mas sempre de chapéu. Provavelmente teria sofrido um ataque qualquer quando era mais novo, ou teria vindo assim de nascença, mas como era diminuído, o pobre, era muitas vezes alvo de gozo e troça dos miúdos, que nisto aqui, são cruéis. Não digo éramos, porque nunca o tratei mal, e até sempre nutri por ele, um carinho muito grande, porque nunca foi violento. O Raúl não articulava bem as palavras, ora as balbuciava, ora as murmurava, e quase sempre se babava, quando o fazia.

O Raúl era indissociável do seu carrinho de mão, que era como se fosse uma extensão de si mesmo. O carrinho estava sempre carregadinho de pedras, algumas bem grandes e pesadas, que ele acartava para o alto de um monte, ali para junto do ribeiro, para conseguir construir uma “câja” para ele e para a “Nina”, que era a sua apaixonada, mas de quem eu já não me recordo muito bem se sabia quem era. Dias inteiros, as vezes bem de manhãzinhas, e noite até, num trabalho incessante para a conquista de um sonho perdido que nunca conseguiu.

O que eu sim me recordo assim mesmo muito engraçado, e faz-me sorrir quando relembrei, era quando alguém o incomodava, importunava, lhe fazia frente, e ele prontamente ameaçava em ir a “Xantantônho” à “câsadaquexa”, traduzindo, a Santo António das Areias, à casa da queixa, ou seja, à GNR.

Lamento tanto que o seu desaparecimento não tenha guardado um lugar na minha memória, mas a verdade é que lhe perdi o rasto. Não me consigo recordar aquando se deu o seu fim, em que momento da minha vida de migrante da terra o perdi, mas a verdade é que se foi, e para mim, hoje que olho para trás, sinto que o hei-de sempre recordar assim, a beber um Sumol fresquinho, talvez de laranja (creio que não bebia álcool), para atenuar o calor, enquanto voltava a pegar no carrinho de mão cheio de pedras e se fazia à estrada sob um sol abrasador de Verão.

 

b)    O “Calcinhas”

O “Calcinhas”, figura mítica e a 3 dimensões desta galeria, era todo um figurão. Já homem de bem mais que meia-idade, de quem parece que estou a ver a sua cara, e ouvir o seu riso; vivia na Beirã mas creio que não era de lá. Tinha um emprego altamente conceituado na alfândega, e era um senhor muito bem remunerado que vivia bem, quer-se dizer, bem… em termos financeiros, porque… de resto, não tinha esposa, filhos e familiares mais próximos. Era um solteirão já bem avançado, que fazia as delícias da pequenada, quando nos ia contando as suas aventuras e desventuras nas visitas que fazia às casas das meninas de região. O seu Volkswagen carocha branco, com diversos pacotes de leite no tablier traseiro, para desintoxicar dos excessos da noite anterior, percorre todos os tempos da minha meninice.

Era baixinho, estava assim sempre meio vermelhote (?), e cheirava a perfume manhoso. Era calvo mas tinha o pouco cabelo sempre impecavelmente penteado, puxado para trás?


Mudo

Todas as terras tinham um mudo, e o da Beirã… era bem castiço. Não me consigo recordar de onde era oriundo, mas se o visse hoje ao longe, reconhecê-lo-ia de imediato. Não é que fosse mudo de todo, e fartava-se de nos dizer que mudez, não é surdez; e conseguia ouvir algumas coisas, como quando abria os braços esticados, emitia um som com os lábios a baterem como se fosse um motor, e olhava o céu, imitando um avião.

Mandava-nos à merda, quando gozávamos com ele, enrolando o dedo polegar à volta do nariz.

 

d)    Sr. Cardoso, “O Cardosão”

De todas, a mais erudita das figuras, era todo um cavalheiro. Calvo, sempre muito bem vestido e composto, natural do norte, tenho ideia que de boas famílias, vivia com a sua esposa, a D. Aurócia (?), e não tinha descendência. A sua casa, enorme, na rua da igreja, tinha um escritório na parte de baixo; repleta de livros em estantes, onde passava as tardes e as noites a ler. Fumador inveterado, adorava receber a malta nova que nos sentávamos no chão, boquiabertos, a admirar as suas preleções. Quem nunca fumou o seu primeiro cigarrinho com o Cardosão? Saudades imensas…

 

e)    Sr. Sabino

Alto, bonacheirão, com ar simpático e sempre bem-disposto, o Sr. Sabino trabalhava na alfândega, e era um companheirão mais velho do meu pai, que vivia no prédio (dos moradores) da alfândega, onde hoje funciona a Unidade de Cuidados Continuados d’ “A ANTA”. Ficarão para sempre eternas as enormes favadas (único prato que a minha mãe não cozinhava, por não gostar) que os dois comiam em conjunto, na casa deste, sempre extraordinariamente bem molhadas. De resto, toda a Beirã tinha um pedacinho de terra onde produzia favas, ou lhas davam, ou as conseguiam, e quando assim era… convidavam o João Sobreiro que, claro que aceitava, por ser o seu prato favorito. Até hoje eu as como, nem que seja por ficar a pensar nele.

 

f)     João Forte

De festa, mãe Alzira sorridente com Sr. Sabino, e o João Forte

O João Forte, figura ainda viva, personagem de sempre da Beirã, atravessa décadas e passou de século com a particularidade de, aos meus olhos, estar sempre igual. Com uma forma muito própria de vestir, sempre com o seu gorro de lã, e o seu estilo informal, ainda hoje, quando entra nas finanças onde trabalho, parece que se estabelece um túnel em direção ao passado, e a Beirã volta a ser o que era, com comboios e tudo.

Filho de famílias abastadas, que foram deitando a perder todo o seu património, nem eu sei muito bem porquê, creio que vive na mítica Broca, creio que sem grandes condições, mas ainda vai felizmente rodando por aí, como se fosse imune à passagem do tempo.

 

g)    O menino Augusto

Irmão do João Forte, ainda hoje vivo também, o “menino” Augusto, como ele próprio se batizou, e gostava de ser tratado, era, e é, uma figura absolutamente fascinante, fora de qualquer baralho. Tendo sido estudante no colégio de Tomar, uma escola de elite daquele então, cuja frequência atesta bem a saúde financeira da família, sempre teve de tudo, menos de parvo; embora muitos assim o achassem, e eu estou em crer que sempre gozou foi com eles, ao fazer-se passar por tal.

Sei que teve casado e tem filhas, mas eu entro no filme já muito depois, e sempre o conheci como uma figura… que não tem nada a ver com nada.

Não lhe conheci trabalho, qualquer zelo na apresentação e indumentária, mas sempre muito amigo da pinga, e a sua fama de sempre alcoolicamente bem-disposto, cruza tempos e gerações.

Lá está, houve quem nunca o compreendesse, quem o ostracizasse, quem o ofendesse, mas eu sempre nutri por ele enorme carinho, admiração, e estima sincera. Ainda hoje, quando o reencontro na Clínica Sanvimed, onde ambos somos clientes, me conta sempre como está da sua maleita que ainda não percebi bem se foi um ataque de sarampo que teve em criança, que agora, de vez em quando sai????; se foi um ”cobro”?!?!?, se foi lá o que foi. Ele diz sempre que o Dr. Vitoriano lhe salvou a vida porque os médicos do hospital de Portalegre não sabiam o que lhe haviam de fazer, como se isso fosse mesmo verdade.

Recordo com muita saudade, os discursos que fazia em plena Carreira de Cima, Castelo de Vide, nos anos 80, quando eu lá estudava, estando já num estado bem avançado, muito do meio para a frente, e começava a dar num tom bem alto, as suas fantásticas preleções sobre tudo e sobre nada, sempre com enorme eloquência, espírito argumentatório, capacidade de persuasão, e profundidade filosófica. Certo dia, há bem mais de 30 anos, mas que jamais me esquecerei, do nada, lançou para quem quis ouvir, esta dúvida existencial, onde equacionava toda a economia de mercado: Eu, Augusto da Mota Forte, plantei uma alface. Veio o coelho… comeu a alface. Veio o caçador… matou o coelho. Ora eu, Augusto da Mota Forte, tenho ou não tenho direito a uma pata desse coelho?


h)    Sr. Murta

     Nos anos do Zé Manuel Bonacho, na garagem dos seus pais, na rua onde eu vivia, que se enchia sempre de comida e amigos. Com o Sr. Murta a fumar, como era habitual nele, o Zé Manuel Dias, o Prof. Tavares, então padre da paróquia, que me batizou, lá atrás; o Zé Manuel, com a sua caraterística barba e o seu ar inocente, a minha tia Cremilde, rindo ao lado; a minha madrinha Fatinha e a minha mãe. Estou ao centro, a rir. A piada deveria de ser mesmo muito boa. 

Já conheci o Sr. Murta sempre assim, com este ar das fotos; ou pelo menos, já como homem de meia idade. Distinto Senhor e vereador da câmara, era dono de uma casa lindíssima, junto à igreja, com uma horta e fantástica tangerineira, cujos ramos deixavam cair os belíssimos frutos para o largo em frente desta, que nós devorávamos. Desconheço a sua ligação à terra, até em termos laborais, porque sempre me lembro de ouvir a sua ligação aos aviões (ou estarei a fazer confusão?).

O seu filho Luís Murta, quase que um ídolo para nós crianças, ou pelo menos para mim, o era; tinha numa casa anexa à dos pais, uma coleção de aviões em miniatura que montava, diversos desenhos, e ligações a tudo aquilo que adorávamos.

Após da sua morte, o filho mais novo, Zé Luís, partiu para a cidade; e o Luís explora há décadas uma casa destinada a artigos de caça e pesca, de altíssima qualidade, em Castelo de Vide.

 

i)     Bonachinho (José Manuel Bonacho)

O Zé Manuel Bonacho era para nós, rapazes dos setentas, uma espécie de irmão mais velho, que nos acompanhava e levava para todo o lado, sobretudo para a célebre discoteca “A Maluka”, nos Fortios, em alta nesse então, destino de quase todos os fins de semana, à sexta e sábado. Filho de pai soldado da Guarda Fiscal, mas de uma família com terras e abastada, era um solteirão inveterado, a quem creio que nunca foi conhecida nenhuma namorada. Licenciado, tinha uma profissão muito segura e credenciada na região de saúde do Alentejo. Foi-se deixando ficar. Também um fumador inveterado faleceu de doença súbita, inesperada, creio que de uma embolia cerebral, irremediavelmente cedo demais, ainda antes dos 50, tal e qual o seu vizinho de cima tinha sido, uns anos antes.

 

j)     Paulinho Cascavél, o Carcacinha

Oriundo de uma família de muitos irmãos, os Pereiras, chegada mais tarde à terra; creio que oriundos do Pereiro; o Paulinho Cascavél, ou Carcacinha, como nos habituámos carinhosamente a tratar, também merece um lugar de destaque nesta galeria. Tendo entrado muito novo para o serviço militar, ali fez toda a sua vida, tendo atingido o posto de cabo, acho eu. Figura muito caraterística, com uma piada natural incrível, adaptava-se a todas as situações e conseguia nunca cair em falso, porque era natural e nunca se armava ao pingarelho. Era o que era.

Memórias incríveis de quando vínhamos juntos de fim-de-semana no comboio da beira-baixa, e começámos a conversa que um tinha um chouriço, que seria tão bom de comer então: e outro trazia um barrrozinho daqueles para ofertar a alguém, onde se costumavam assar os ditos cujos; outro trazia álcool (já não me lembro de puro, se do outro), mas dali a estarmos a assar chouriços em pleno comboio foi um instante, sempre com um vigia em cada janela da carruagem, não fossemos nós ser apanhados e presos.

Essa e as aulas de ordem unida em plenos carris, numa noite de festa na terra, enquanto a banda tocava, e os níveis alcoólicos ferviam, são postais eternos para todo o sempre.

Também faleceu cedo demais, pagando de forma pesada, o seu comportamento desviante e libertino numa Lisboa dos anos 90 a escape livre, quando as doenças mortais com nomes pequenos de siglas, ceifavam vidas incautas, castigando-as  sem dó, nem piedade.

Muito amigo, do seu amigo, geria uma hortazinha de onde tinha muito prazer e alegria em dar.

Ficará sempre até sempre…

 

k)    Zé Maria da Graça

Pai de três belas meninas da terra, casado com uma senhora creio que dos lados de Nisa,  Montalvão, ou por aí; o Zé Maria da Graça personificava na perfeição a imagem-tipo dos guardas-fiscais, a tal franja considerável da população masculina. Homem muto correto, bom, e educado, dava-se bem com toda a gente, a todos queria bem, e por todos era querido. Não sendo de muitos estudos, que não eram necessários para aquela carreira, sabia estar, se posicionar, e bem parecer. Tinha nível. Conhecia-me de toda a via, desde gaiato.

Voltei a apanhá-lo quando já era homem, e nutrimos uma amizade boa, sincera e do melhor. Cliente habitual da Casa Nicau, da qual passou a ser ainda mais asssíduo quando o estabelecimento passou para a frente da sua casa, era um companheirão, e recordo com saudade imensa, as tardes de tertúlia que passsámos a beber cerveja e a comermos “meio quilinho delas”, sendo que elas eram deliciosas gambas fritas pela D. Teresa Nicau, com pãozinho torrado, e molhinho de muita margarina derretida com sumo de limão. Coisa tão boa…

Metia-se comigo, e gostava muito de na paródia, à frente de pessoas com as quais não estávamos habitualmente, dizer: “vá, dá cá um beijinho ao pai”, o que eu correspondia de imediato, com um repenicado na bochecha, para ele me dizer de seguida, às gargalhadas, “Ai… eu adoro este gaiato! Gosto mais dele do que se fosse meu filho!”

A sua morte súbita, quando caiu redondo para o chão, do nada, no quintal de frente da sua casa, consternou-me imenso, e deu-me um abanão tremendo por sentir que também o meu tempo se está a esvair, ao ver grandes da minha galeria de ídolos e amigos ir-se esfumando.


Tó Gonçalves

1-      Encontro de jovens na Beirã, com um grupo católico trazido pelo padre Fernando Farinha, ao centro da imagem, com o meu irmão às cavalitas, por volta de 82. Do lado direito do padre, em cima do muro estavam o Quim Carita (a fazer músculo), o Zé Dias (a sorrir), eu, e os primos Chico António e Chico Zé, alguns dos que habitualmente por lá passavam férias. Por debaixo de nós estava o Tó Gonçalves, de colete e crachás, muito em voga naquele então.


Os dois amigos, na Beirã, numa foto recente

A bem de ver, acho que nunca houve criança alguma na Beirã, que não tivesse ouvido dos pais dizer, certo dia, quando procuravam um exemplo a seguir: mete os olhos no Tó Gordo!

O Tó, para os amigos; gordo porque de magrinho nunca teve nada, era o António Manuel Vaz Gonçalves, uma criança e um aluno brilhante, que por todos era elogiado, e sempre foi identificado como um exemplo a seguir. Também filho de um guarda fiscal, um Senhor guarda, o Sr. Gonçalves, sempre muito calmo e correto, foi revelando desde muito novo, que era também uma carta fora do baralho. Seguindo um percurso académico notável, entrou para a universidade em Lisboa, para cursar Filosofia e… mudou. Os excessos da vida académica, citadina, e o afastamento das raízes, fizeram com que se tivesse transformado num barco à deriva que chegou a tocar os limites da sanidade. Meu amigo pessoal, por quem nutro uma enorme estima, carinho e admiração, chegou, depois desta fase mais difícil, de internamentos complicados, e processos muito difíceis; a escrever uma notável obra poética, tão clara e visual, que sempre admirei pela forma como as palavras cortavam o ar. Depois da tenebrosa travessia pelos infernos da perdição, nunca de problemas duros e pesados, segundo me contou; mas sim de uma relação proibida com o álcool; chegou a tirar um curso de Inglês na Escola Superior de Educação de Portalegre, e não estou já bem certo se não chegou mesmo a lecionar.

Ultimamente tenho notado, com grande mágoa, que o seu estado de saúde se tem estado a agravar, e de cada vez parece mais que vive num mundo isolado, só seu, que por mais que o queiram ajudar, se fecha sobre si mesmo, e fica impenetrável.

Não creio que no dia 5 de Dezembro, muitos mais se tenham lembrado de o abraçar para o felicitar pelo seu aniversário.

A alegria correspondida com que me olha sempre, comove-me sem chorar.

 

l)     João Sobreiro

Foto clássica do pai, com a sua companheira de sempre...

De figuras da terra, claro que não poderia passar por esta, que obviamente não poderia ter  outro lugar, senão este, o derradeiro. O João Sobreiro foi um verdadeiro cometa negro, como a célebre banda albicastrense a que pertenceu, que marcou a sua juventude e de toda a região. Escrever sobre o ser que me deu a vida, e sinto que me corre ainda hoje nas veias, é duro e doce ao mesmo tempo, é libertador e recompensador, é justo mas com sabor a injustiça, como foi o seu desaparecimento.

Figura muito popular em Castelo Branco nos anos 60, filho do tal ferroviário que chegou a chefe daquela estação, depois da Beirã, e até de Valência de Alcântara, onde se reformou como inspetor; nunca foi um apaixonado pela escola.

Viveu a década quente do século passado em alta rotação, quase com o estatuto de estrela pop/rock, estrelando nos bailes de finalistas da região, tendo tido o seu auge num concurso de música moderna portuguesa no Monumental, em Lisboa, que perderam apenas para os “Sheiks”, do Paulo de Carvalho. Abandonou a ribalta quando teve de partir para uma guerra ultramarina que não compreendia, e chegou a doar a sua estimada bateria Ludwig, que ostentava sempre como grande relíquia, por ser igual à do Ringo Starr, dos Beatles, um dos seus ídolos; não esperando regressar.

Nunca tendo brilhado nas aulas, apesar da belíssima caligrafia e da técnica de desenho que nunca explorou convenientemente, no meu entender, foi cumprindo os minímos para prosseguir. Quando voltou de além-mar, aceitou o convite de emprego do seu tio/padrinho João Dinis Carita, como ajudante de despachante, e fixou-se na Beirã, para onde trouxe a sua então namorada, depois mulher, a idanhense Alzira Ereio. A Beirã naquela atura era então uma terra de pleno emprego, onde se sabia que as pessoas que dependiam dos serviços viviam bem, se respirava saúde social, e se fomentava uma frondosa vida comunitária.

O João Sobreiro afirmou-se então, como um homem que sabia estar e, sobretudo, alguém ao lado do qual se estava bem, junto do qual havia boa disposição e alegria de viver. Sempre acompanhado com a sua viola acústica, que levava para todo o lado, e lhe permitia abrir alas em qualquer lugar, a confraternizar com os seus amigos (cartadas, sueca e truco; e matraquilhos, eram o seu forte), que eram sempre muitos; o João fazia a festa. Fosse depois de uma caçada, numa jantarada, numa tarde/noite de bola, a seguir o seu Sporting; ou noutra festa qualquer, poderiam haver muitos a dar nas vistas, mas nenhum com a sua forma exuberante e sincera.

Para quem não o conhecesse, poderia parecer um bom-vivant, talvez vago, até; mas quem soubesse bem como era, saberia bem destacar em si, os aspetos menos conhecidos de bom leitor, do amante de palavras cruzadas, de apaixonado de cowboyadas, em livro, ou cinema.

Dono de um coração puro que poucos conheciam (as farras e os excessos eram sempre um assunto muito mais apetecível), tinha gestos e pormenores que jamais esquecerei, como depois de a sua mãe, a minha querida avó Joaquina, ter falecido; após diversas idas ao hospital de Portalegre para tentar debelar o seu sofrimento, me ter vindo oferecer numa caixinha pequenina de plástico de ourivesaria, que sei que ainda tenho em minha casa algures, com alguns dos seus cabelinhos brancos caídos nas viagens, no banco do nosso Peugeot 205 vermelho.

Há 25 anos atrás não havia bombeiros, não havia VMER, não haviam prontos socorros imediatos, Portalegre ficava sempre longe demais, e aquela indisposição matinal, por vezes frequente, sempre recuperável, parecia que haveria de passar. Mas infelizmente não passou, e assim ficou uma viúva guerreira que teve de refazer a sua vida, começar tudo de novo na escola básica integrada de Santo António, reintegrada no mercado de trabalho por concurso, longe do seu serviço, que entretanto fechara, para assim conseguir que um filho universitário conseguisse terminar os estudos superiores; e que o outro, que ainda estava no início da sua escalada académica, conseguisse um lugar ao sol, terminando o seu também.

Do João ficou a saudade imensa, diária, dolorosa, enquanto eu durar; e a ânsia silenciosa de um dia conseguirmos voltar a dar um abraço dos nossos, daqueles que dávamos quando me queria premiar sempre que sabia que tinha alcançado um sucesso escolar, e onde ficávamos ali assim, colados, apertados, a suster a respiração, sem nada dizer, ambos a sentirmo-nos a transbordar de orgulho.

Tenho tentado ser um bom menino, pai.

Onde quer que estejas, um dia, que oxalá esteja longe, por haver sempre tanto a fazer por aqui, vou ver de ti.

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