sexta-feira, 17 de junho de 2022

Então, afinal, assim pensavas tu...


De parceirada, na janela da casa da avózinha... <3

E prontos, cá estou eu, a cristalizar no papel, um texto que ando a escrever na cabeça há 28 anos, desde 3 de junho de 1994, mais precisamente.

 

Muitas vezes quando estou parado, a pensar, parece aos outros, que em nada, com ar abstrato e perdido, ando mergulhado nestes pensamentos que são só meus, não por egoísmo, mas porque estão em construção, e ocupam grande parte do meu viver.

 

Desde aquele então, desde aquela fatídica manhã de calor, quando estava em Armação de Pêra (aquela que sempre foi a nossa praia, porque causa de ser aquela de onde o Tio Gomes, teu cunhado, era natural), quando subitamente faleceste tu, meu pai, o que queria mesmo era saber como é que tu, com precisamente a mesma idade que tenho hoje, te sentirias perante ti mesmo, a vida, os outros; não quando estavas a sentir o aperto colossal, de muitas toneladas no peito, como relatam os depoimentos médicos habituais em geral, mas se estivesses fora dessa situação, se estivesses bem.

 

Há medida que os anos se iam aproximando deste momento, eu ia-me apercebendo que apesar de todos sempre sabermos que 49 anos é uma idade muito horrorosamente jovem para se partir… tu eras mesmo muito novo!

 

Quando eu nasci, tinhas 28, apenas, mas já carregavas em cima dos ombros, uma vida de mais do dobro, com a juventude rebelde e musical de Castelo Branco, na tarola dos Cometas Negros, e com uma guerra colonial em Moçambique às costas, a qual nunca chegaste a compreender, e da qual nunca falavas, mas que te fazia acordar em sobressalto, e em lágrimas, muitas noites, sempre a carregando contigo, por ser um fardo duro demais de injustiças e horrores.

 

Ai, João Sobreiro... sempre usaste bigode, o que te fazia mais velho, e te dava um ar mais pesado. Sempre te vi assim, como pai, como mais velho, com respeito e de certa forma, inalcançável. A grande conclusão era que se quando partiste, olhavas para a montanha da vida, do mesmo ponto que eu a vejo hoje… eras um puto apenas! (que é como eu sinto que sou!)

 

Eu posso ter… aquilo que mais me orgulho até hoje: ter gerado e ajudado a criar duas filhas que amo mais que a vida (porque a daria por elas no instante seguinte, sem pestanejar), posso ter criado um lar, posso ter feito a história de vida com a Mulher de Sempre, desde os 15 (?!? na 1ª vez?, com diversos interregnos, mas sempre ligados), posso ter construído a vivenda dos meus sonhos, posso ter lutado por arranjar um emprego condigno, seguro, do Estado, que considero não mal remunerado, apesar de ser fora daquilo que era a minha formação académica; posso ter sido o vice-presidente do meu concelho, posso tudo isto mas… sou um puto! As diferenças entre aquele Pedro que teimava em andar de calções de banho na rua, quando montava a sua bicicleta BMX na Beirã, no Verão, e este que escreve aqui agora… não são muitas! São, se calhar, nenhumas!

 

É certo que posso ter em mim, todas as limitações da sociedade, posso ter assimilado os papéis condignos, embora de vez em quando resvale para alguma rebeldia adolescente que persiste em continuar viva, mas percebo cada vez mais porque é que o Peter Pan, do escocês James Barrie, a história do menino que nunca quis ser grande e crescer, é, para além de ser o meu livro de vida, capaz de ser mesmo a minha.

 

Tento sempre ajudar os outros e ser irmão (seja de quem for, seja um pobre desgraçado, um renegado, um leproso, desde que me mereça a confiança), combato as injustiças (custe-me o preço que custar), não tenho limites e sou irreverente (por achar que sou sempre capaz de chegar, mesmo onde me dizem que não), digo tudo aquilo que tenho a dizer, seja a quem for, sem medos de consequências; sou humilde (porque sei que por muito que tenha, nada é meu e nada tenho; porque a vida nesta terra, que não somos dela, é uma passagem e um fogacho), entrego-me sempre à primeira, e sou leal a quem me quer; sou Amor, que é o sentimento mais forte e mais bonito nesta terra.

 

O meu pai nunca me bateu, o que não posso dizer de um apontamento ou outro da minha mãe, mas que foram sempre merecidos e só me fizeram bem!

 

Sei reconhecer que não foi um pai perfeito, e ele também se sabia assim. Apesar de sempre zelar pelo nosso bem estar e tudo fazer por nós, teve sempre consciência que a sua vida, era a sua vida, a sua oportunidade de viver, e aproveitou-a da melhor maneira que a ele lhe pareceu. Apesar disso, teve um efeito em mim que foi a pessoa que mais me impactou, moldou e mais gostei de conhecer (perdoa-me mãe. Sei que tu também foste assim!), ao ponto da minha vida nunca mais ter sido a mesma.

 

O meu pai desapareceu numa manhã em que se sentiu mal, com um forte aperto no peito, e por isso não pôde ir levar o meu irmão, de então 14 anos, à escola de Santo António onde estudava, a 4 quilómetros de distância, que foi conduzido pela minha mãe, que… quando regressou… ele já não estava, ou tinha acabado de partir.

Naquele então, não existiam Bombeiros Voluntários de Marvão, os de Castelo de Vide ficavam muito distantes, e o Hospital de Portalegre parecia quase à distância de Lisboa. Houve uma enorme negligência de todos nós, por todos os sintomas que vinha revelando nos últimos meses, muita submissão à sua vontade em fugir dos médicos e à medicina em geral, por estar certo que lhe iriam cortar com aquilo que eram os seus hábitos favoritos de toda vida, que fazia questão em manter, custasse o que custasse.

 

O seu desaparecimento foi, para ele, um momento. Terrível e certamente extremamente doloroso e aterrador, mas que aconteceu de uma vez, só, derradeira, fulcral, determinante.

Não se viu, nem o vimos… definhar numa cama de hospital, a ser comido por uma doença ruim, desgastante, cruel, avassaladora em dias que pareceriam meses, anos, décadas; nem se viu, nem o vimos ficar apanhado por uma trombose qualquer, diminuído, aprisionado de um corpo cujos membros já não lhe obedeciam aos movimentos que queria fazer.

 

Deixou foi uma mulher viúva com 43 anos naquela data, e dois filhos, um de 20 anos, outro de 14; um a estudar na faculdade em Lisboa, o outro, aqui, como contei; e nós nunca mais fomos os mesmos. Eu, recém licenciado em Comunicação Social, não me senti com capacidade, nem background (até com direito de pedir o financeiro) para andar por Lisboa à procura de emprego, com as televisões privadas a rebentarem, mas com a família desfeita por aqui; e o Miguel, que era o seu grande companheiro de sempre, ainda estava a aprender a ser gente, quanto mais.

 

Mas o João Sobreiro… foda-se!!!!, o João Sobreiro tinha um nível (sempre sabendo até onde poderia ir, e quando deveria parar), uma classe (que o permitia saber estar tanto com a alta, como com o pastor mais modesto, analfabeto), uma cultura (sempre a ler, sempre com as palavras cruzadas que acabava de forma exímia, deixando-me boquiaberto), uma alegria de viver (sempre bem disposto, sempre de viola às costas, sempre a fazer a festa onde quer que entrava), tinha um amor por nós (mulher, filhos, mãe, irmãs, sobrinhos, primos), e por tantos, tantos amigos do emprego, daquilo em que se metia como os escuteiros, as caçadas, as ramboiadas, os tempos de Castelo Branco (onde ainda é lembrado com tanta saudade), que é recordado ainda hoje! por Homens que vão às lágrimas, por se recordarem de tempos que já não voltam, e pelos belos momentos que passaram juntos.

 

O João fez aquilo que é mais importante: deixou marca! Bateu fundo em quem com ele contatou. Deixou o mundo diferente do que encontrou!

 

Hoje teria 77 anos, e… tanta gente que é feliz, se sente bem, e faz feliz os que estão à sua volta com essa idade. Tantas coisas que poderiam ser ainda feitas…

A sua irmã, Cremilde, ainda cá está, Graças a Deus, na Santa Casa da Misericórdia de Marvão, com 91 anos, embora a demência do Alzheimer, já a tenha levado há muito, e apenas restar um corpo muito débil, um escombro que nós muito amamos, e persistimos em continuar a visitar, e amar, como um monumento ainda vivo que tanto amamos.

 

Aqui chegado, pois, a constatação maior e a certeza é que o tempo, o tempo, é o bem mais precioso que temos na vida, e ai daquele que não o souber bem aproveitar! Mal nos damos conta… já foi!!!

 

Peço a Deus que te tenha em descanso, e se acredito nessa entidade máxima, não acredito que haja céus, ou infernos, mas antes outras vidas, outras dimensões que decorrem desta. Aspiro piamente, a que chegado o momento em que tenhamos de “subir de nível”, muitas coisas nos sejam explicadas, e palavra de honra que gostava mesmo de te voltar a encontrar! Adoraria poder dar-te um abraço dos nossos, daqueles que me davas quando sabias das boas notas que tinha tido, e ficávamos ali assim abraçados, colados um, ao outro, assim bem apertados, até sentir os ossos e me começar a faltar o ar.

 

Vai por ti, meu velho!   

 

Saudades!!!

As saudades que eu tenho de falar e tu me ouvires...(quando ainda nem sequer televisão tínhamos),

 

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