I
Numa
noite em que a minha filha Leonor estava internada no hospital, recém operada,
saí para jantar uma sandes no bar do hospital que arrematei com um gelado. Não
são só as grávidas que têm desejos destes e pensei que um gelado era mesmo o
indicado para me dar a alegria que precisava naquela noite de desaconchego quando
tinha o meu lar todo espartilhado pelo hospital, pela casa dos sogros e pela
minha casa, vazia como nunca antes. Sabia bem que a cidade estava quase
desertificada, mas bati a 3 ou 4 portas e nada. Só no largo atrás dos correios
consegui arranjar o Fizz desejado. Um jornalista conhecido da nossa praça, se é
que os há, conversava com amigos ligados à política, presumo que falando sobre
as eleições que se avizinhavam e disse algo como: “aí vem quem foi um dos
melhores vereadores da cultura do distrito. O melhor de Marvão.”
“Epá,
não me venhas com essa que ainda pensam que é verdade e eu fico vaidoso…”
“Mas
se é verdade… A tua obra ficou! Os eventos em que apostaste: o Rockfest, a Al Mossassa,
tantos…”
“Bem…
Trabalhei para os outros, trabalhando também para Marvão. Sempre tive a
consciência que desempenhava um cargo público porque tinham acreditado em mim.
Escolheram-me para eu fazer. Depois, não concordando com o que via, saí de
minha própria vontade. Com a consciência tranquila. Do trabalho realizado.”
II
Isto vem a propósito da Al Mossassa. Uma festa
que ajudei muito a criar e que me deu muitíssimo prazer de visitar. Deu-me
prazer porque revi amigos. Muitos amigos. Tantos amigos que não nos esquecem e
isso sim é que vale. Amigos de Marrocos, de Espanha, do Egito. Amigos de todas
as partes e de todo o mundo. Como a mãe estava de assistência à Leonor, marchei-me
com a dona Alice. Afinal não havia burros para ela andar e apanhei logo uma
desilusão. Mas o homem que organizava o Al Mossassa no terreno não era o Félix
da Cabalburr?!?!? Empresa de burros em Espanha como indica o nome?
- Ah… Se calhar era para trazerem os do Dr. José,
que tem os Caballos de Marvão.
- Mas se era, porque não os trouxeram? E ficaram
bem assim de organizar um Al Mossassa sem burros, sem essa peça fundamental
para a ambiência histórica?!?!? Bem, se assim foi, burros por ali em Marvão não
faltavam. Mas de duas patas!
III
Partimos às duas da tarde. Depois de almoço e
imaginei que deveria de haver muita gente a subir naquela altura. Imaginei
filas e autocarros e confusão. Nada. Tudo limpo. Subi até ao alto e levava-a
estudada. Como carregava comigo uma criança de 3 anos, se fosse mandado parar
pela guarda, responderia que tinha de ir ao serviço onde trabalho buscar uns
documentos e subiria. Sem importunar, sem incomodar. Se nós não nos sabemos valer
a nós próprios, quem poderá fazê-lo? Não foi necessário e o guarda que eu não
conhecia até foi simpático “ai desculpe, não via que era você senão nem o tinha
mandado parar aqui.”
IV
Nesta edição não me pareceu haver menos gente.
Até houve muita gente. As edições anteriores ajudaram (as últimas quatro já sem
mim) mas as primeiras foram tão fortes e bem sucedidas que pegou de estaca.
Essas sim foram trabalhadas para pegarem de estaca. Desta vez o tempo esteve
fabuloso. Este “Verão de São Martinho” parecia mesmo o Verão. O que eu sempre
disse a falar com alguns amigos e vendedores: um evento cultural demora muito a
fazer. Anos a criar. Eu apanhei anos de tempo terrível e vento que tudo voou,
mas ajudei a criar uma família do Al Mossassa. O ambiente pessoal, a envolvente
humana eram preciosos. Como alguns deles me confessaram, dava prazer vir fechar
o ano e o Verão com a família de Marvão. Nem importava o negócio mas era o Al
Mossassa era cereja no cimo do bolo. Enquanto estive lá apostei sempre muito
nesta componente humana. Amigos. Éramos sobretudo amigos e assim continuamos. Amigos.
Com muito prazer, muita alegria e o coração ainda mais transbordante que o da
minha pequena que me ia confessando (como no insuflável) “ó pai, estou tão
feliz.”
V
Os eventos que duram anos a criar rebentam-se num
ápice. Basta começarem a correr mal. O economista que gere agora a cultura pode
perceber muito de dinheiro mas de cultura… Diz quem ouviu que comentou que a
feira funciona e se faz com menos dinheiro. Será realmente assim? A feira islâmica
foi um legado deixado como uma mais-valia, feita com a prata da casa, com o
Hernâni, o Barradas e o Félix, o grande Félix que me chamou na segunda-feira “el
padre de Al Mossassa”. Não disse mentira e eu sei que é verdade. Fui guerreiro
aqui e sucedi-me bem. Feira cara seria com a companhia Vivarte que brilhava em
Portugal no meu tempo e chegou a atuar em Marvão no tempo da Madalena. As
pessoas que vinham ao Al Mossassa estavam habituadas a andar num Ferrarri
cultural. Agora resta um bólide que mal se segura com o que foi. E no futuro?
VI
A Al Mossassa era uma festa muito popular em Badajoz.
Badajoz vive muito melhor com a sua herança islâmica que nós. Todos se vestiam
de sultões, de árabes, de dançarinas, era como se fosse um Carnaval temático e
fora de tempo. Consegui conquistar esta festa para Marvão porque a minha
querida Consuelo, então consejal de cultura e Don Miguel Celdrán Matute, o
alcalde, emprestaram e deixaram perpetuar a vontade e a memória de Ibn Maruan,
o filho dos Marwan, da dinastia de cristãos islamizados que deram nome à nossa
vila. Quando ainda não existiam países, não havia Portugal nem Espanha, este
era o território de Ibn Marwan. Um homem rebelde que vivia em Batalyaws, Badajoz
actual e se rebelava contra o emir de Córdoba que dominava a região. Quando as
tropas do emir o apertavam, refugiava-se em Marvão, uma vila cimeira com
possibilidade de avistar as tropas inimigas a larga distância, com uma escarpa ingreme
e de difícil acesso para quem a atacava. Ponto fácil de defender que já antes fora
um castro pré-romano ou visigótico.
Quando eu era vereador da cultura percebi a
dimensão das grandes câmaras organizadoras nacionais e sabia que esse era um
campeonato de entrada difícil. Perto dos grandes centros, com bons acessos e com
homens que entendiam a força da cultura como o Telmo Faria de Óbidos, homem
novo e da área da história, era difícil de competir. Mértola, Santa Maria da
Feira, Silves poderiam ser estudados e eu fazia-o e visitava-os com o meu
pessoal da cultura (lembram-se? Que bonito que era… que bons tempos!) para
aprender a fazer bem mas eram casos inatingíveis por um interior desertificado onde
se contava cada tostão gasto em cultura como perdido.
Para que a Al Mossassa funcionasse não poderíamos
concorrer com eles. A nós bastava-nos que os espanhóis de Badajoz compreendessem
esta mesma origem histórica e se deixassem conquistar pela beleza, pela
organização, pela nossa gastronomia excelsa e se rendessem.
Pela beleza é fácil compreender. Marvão é muito, muito,
muito mais bonito que Badajoz. A envolvente ambiental, a água, o estado de
conservação, a limpeza.
A organização da feira sempre foi muito cuidada
por mim. Era eu, pessoalmente, sozinho quando ia representar o Município na
inauguração, quem visitava Badajoz (cuja feira se realizava sempre uma semana
antes) e selecionava os pontos de artesanato. Atestava na qualidade, atendia a
possibilidade de vinda e escolhia o melhor de cada tipo. A melhor joalharia, as
melhores peles, os incensos, os perfumes, as tapeçarias, a alimentação... As
coisas em Espanha eram muito aciganadas. Aquilo era um bocado tudo ao monte e
fé em Alá. O nosso espaço era muito mais reduzido e por dificuldades
logísticas, limitei a festa à parte alta da vila. Mandei então fazer nas
oficinas da câmara umas portas árabes que ainda lá continuam para justificar o
pagamento da entrada, num mergulho no tempo, no século IX, na fundação. O
visitante pagava 1 euro ou euro e meio e assim ficava possibilitado a usufruir
do trabalho de tantas pessoas para lhe proporcionarem um mundo para descobrir.
A Câmara não era feita só para cobrar dinheiro mas era importante e é
importante que os portugueses se habituem a pagar para terem acesso às coisas.
Nada é de borla.
Para não sobrecarregar os funcionários do
município estabeleci uma parceria com o Motoclube de Marvão e entreguei-lhe
parte do dinheiro cobrado ficando eles a cargo de supervisionarem esse trabalho.
Sinergias.
VII
Alguns amigos perguntaram-me agora o que achava. “Não
acho. Estou a ver. A desfrutar. A descansar”
Alguns dos meus braços direitos reclamavam: “então
mas tu não vês nada bem?”
Eu, que fui educado não a apontarem-me o bom que
era mas, a indicarem-me o que tinha de melhorar, respondia:
“Se eu fosse vereador da cultura, aquela parede
onde está o palco tinha de estar pintada. É certo que é de uma propriedade
privada mas o que nós estamos aqui a vender é Marvão e ali sai mal visto, com
as paredes sujas e sem pintura.”
“Se eu fosse vereador da cultura, o palco nunca
estaria ali naquela praça. Era uma área nobre, própria para artesanato e quando
muito poderia estar no centro mas muito mas pequeno porque o espaço não
aumenta. Não há terreno e pessoas para mais.”
“Se eu fosse vereador da cultura, preocupava-me
mais com o bem comum e de Marvão e nunca deixaria que o dinheiro no Multibanco
acabasse. Houve imensas pessoas que quiseram comprar, apesar da crise, e não
tinham onde levantar dinheiro. Como os postos não tinham multibanco, uns
ficaram sem comprar e outros sem vender. Quem perdeu? Marvão.”
“Se eu fosse vereador da cultura, mandava vir uns
sanitários móveis para as pessoas pudessem ir à casa de banho como fazia na
minha altura. Assim entopem as instalações do Café Castelo Lounge e reclamam.
Castigam o proprietário que não tem culpa nenhuma, é boa gente e deixa que
funcionem como casas de banho públicas quando não são.”
Se eu fosse vereador, mas não sou. Não pactuei e
saí por pé próprio. Agora vão ser mais 4 anos para as pessoas inteligentes e
pensantes em Marvão viverem na idade das trevas, no feudalismo. Pode parecer
que estamos calados e consentimos, mas respeitamos as regras do jogo.
Consentimos mas não calamos. Daqui a 4 anos tem que terminar. A lei não deixa
mais mandatos a quem lá está e vai ter de terminar.
Agora temos não uma mas duas lanças em África:
Santo António e Marvão. Marvão para grande surpresa minha que tinha apostado
que assim não seria. Disse-me o neto de um grande arquitecto português (Nuno Teotónio
Pereira) que reside em Marvão, o Tiago, que se sentia feliz porque a junta que era
do PSD há mais tempo que o que ele tem de vida, tinha mudado. Por um voto que
era claramente na Sandra, no Partido Socialista.
É bom que se distingam as coisas, porque têm de
se distinguir. Eu sou amigo do vencido, do Manuel Joaquim Gaio e tenho
admiração pelo percurso e pela sua carreira profissional. É um empresário de
sucesso e deve-o a si. Gosto muito da sua esposa que muito considero e do seu
filho que me parece uma jóia de rapaz e um sério candidato a um futuro em
Marvão. Tem subido graças a si e vai longe. Não tenho grande proximidade com a
Sandra. Sou muito amigo da irmã e conheço a mãe e o pai mas não somos muito
próximos. Mas isso não invalida que eu deixe de considerar que esta é uma
vitória da liberdade e do povo e da justiça que lhe atribuiu um voto que era
mais que óbvio. Fico feliz por ser assim e não o escondo. O Pedro é este. Doa a
quem doer. Amigo quando faz falta mas sempre verdeiro e a dizer aquilo em que
pensa realmente. As pessoas, se forem realmente minhas amigas, sei que não
ficarão magoadas comigo como eu não fiquei magoado com elas por não terem
falado comigo quando abandonei o barco por sentir falte de apoio de todo o
lado. Menos da minha família. Essa sim, esteve cá sempre.
Já vai tarde e já vou longo mas uma folha em
branco é o meu território.
Despeço-me com as palavras que o Hoceín da tenda
do chá me disse quando se despediu de mim, no domingo. “Eu vengo sempre a Marvão.
Negócio es fraco e mal. Mas os amigos muy fuertes e me gusta mucho. Viengo sempre”.
E ofereceu uma espada de brincar à minha filha Alice. O Hoceín foi-me visitar
ao hospital de Portalegre quando eu quase não recebia visitas. Recordo-me mal
desse tempo depois do coma mas lembro-me desse episódio, dele, do amigo dos
doces e do Manuel Ventura.
Coisas que ficam. O tempo passa e elas ficam. Os
valores.
Inshalah
3 comentários:
Que pena que eu tenho de nunca ter estado em Marvão na altura da Al Mossassa.
Um abraço
Por seres como és tens amigos de verdade, amigos que disfarçam e... os que não gostam de ti e receiam a tua acutilância. Mas eu entendo-te, orgulho-me por seres assim... "o vento verga e abana os pinheiros, mas eles continuam firmes". É isto...
excelente comentario, um abraço
Enviar um comentário