quarta-feira, 31 de agosto de 2016

O meu amigo Tó Gordo, o crooner da Beirã

Definição de crooner (nome) – Um cantor, normalmente masculino, que canta numa voz doce, suave e baixa.


O Serviço estava cheio de contribuintes, habituados a subir a Marvão e verem ali esclarecidas todas as suas dúvidas, fossem elas relacionadas com rendimento, património, justiça tributária ou qualquer outra cobrança. Ali têm pela frente dois homens que têm de ser médicos de clínica geral, que têm de saber um pouco de todos os impostos e ali, de imediato, ao balcão, terem de ter uma resposta cabal, capaz de os satisfazer.

Só estou na casa há 16 anos, mas ainda me lembro bem do tempo em que em Marvão, éramos bem mais de 6 para conseguir chegar a todos os que se nos visitavam, mas agora os computadores… bem, mas isso é uma velha, profunda e longa questão que não a que me trouxe aqui hoje.

Dizia eu que a sala estava cheia de gente para atender, cobrar e o telefone não se calava. Até que numa dessas muitas chamadas, o meu chefe se virou para mim e disse: “Pedro, é para ti. É o Tó” (que já é por ele conhecido, por ser um cá dos meus).

“Vou já!, disse baixinho e algo aborrecido porque já lhe tinha explicado que ali era o meu lugar de trabalho e…”.

Depois de atender quem estava em mãos, aproximei-me já com a estratégia montada na cabeça que passaria por lhe explicar isso, que temos muito serviço, que somos poucos, mas antes que tivesse tempo para fosse o que fosse, do outro lado ouvi um…

- MAAAAAAAAAAANNNNNNNNNNNNNNNN! Estás fixe ? Ouve, tenho uma cena para te contar. Estou muuuuuiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiittttttaaaaaa bem. A vida corre-me 5 estrelas! O meu pai e a minha mãe estão a recuperar bem. (Ele de um AVC e ela de um problema qualquer também grande de saúde). Ele já vai a Santo António a conduzir, a comprar ao Rui Boto, o jornal desportivo para ler as notícias do Sporting e têm ido à fisioterapia. Estão aqui na Anta a receber apoio. Eu também como de lá. Sou muita bem servido e estou muita bem. Só como dieta.
(…)
- Caminho Muito. Todos os dias vou aos Barretos a beber café (1,5 km para cada lado).
(…)
- Não me falta tabaco. Tenho muito tabaco. O meu o pai compra-me uns pacotes no Rui Boto e tenho sempre que fumar.
(Tudo isto de uma assentada só, sem eu conseguir dizer fosse o que fosse e já mostrando algum comprometimento por não poder dar mais atenção às pessoas. 3 ou 4 minutos que pareciam horas.)
 - Ouve man, crooner, sabes porque é que te estou a ligar? Peciso que me arranjes uns cds. Não tenho música nova. E tu, de certeza que tens muita música.

- Ó Tó… essa cena dos cds já foi chão que deu uvas. Agora a malta não compra fisicamente os cds e ouve-os em aplicações da net ou em podcast. Eu tenho umas largas centenas de cds que comprei ao longo dos anos, mas estão no sótão, arquivados/encaixotados…

 - ERA ESSES! PARA EU OUVIR QUANDO ESTOU A ESTUDAR CIÊNCIA MODERNA!

- Ciência moderna?!?!?

- Ouve man! Tenho que te introduzir à ciência moderna. A ciência moderna tem um pouco de tudo: filosofia, psicologia, epistesmologia, estudo da razão pura.

- Mas…

- Eu sei que tu nunca tens tempo de ler. Nem para os filmes que tanto adoras tens tempo. É só família, as tuas cenas da internet, mas tens de ler isto! Ouve-me bem, estou nas 7 quintas. Acordo bem cedo, começo a estudar, vou andar aos Barretos e beber café e… vou lendo, tirano apontamentos e… só me falta a música! Quando é que me arranjas? Preciso mesmo!

- Eh Tó… eu levei os cds que colecionava todos para o sótão e tenho lá do rock ao clássico, coletâneas que fiz com o meu irmão, blues, pop, jazz, muito indie…

- Mas quando é que me trazes?!?!?!?

- Ó companheiro… assim que tiver tempo de lá ir procurar… Eu prometo. Vá Tó, fica bem e aquele abraço. (Senão nunca mais me desmarcava e não saia mais dali)

Pois tive mesmo de arranjar tempo e consegui selecionar 30, 40? cds que meti num saco de plástico forte e na bagageira do meu Kaguincha Twingo, para lhe ir levar á Beirã, assim que possível.

Ele bem perguntava quando seria, mas essa voragem dos tempos de que costumo falar, fez com que a semana ou os 15 dias que eu tinha imaginado, se tivesse prolongado por tempo a mais, mas nunca mais do dobro.
Eu gasto o tempo todo a viver. Sei que não o aplico mal, mas gasto-o. Família, Trabalho, Família, os meus hobbies (blogue, facebook, comunidade virtual), Família, sem cinema e pouco ou nenhum som.

E numa manhã destas, há duas semanas, maios ou menos, ia eu para cima, eram 8.35h/8.40h e depois da curva do infantário, sai-me uma aventesma muita grande, de barba, calções e t-shirt, a pedir boleia de braços abertos. Mandava parar todo e qualquer carro, mas… todos se desviavam.

“Cruzes! É o Tó!”, pensei.
Encostei de imediato e abri o vidro: -“foi o senhor que pediu uma limusine para Marvão?”

- PEDRO!!!! Meu grande amigo! Calha mesmo bem, man! Deixa aí entrar.

- Deixa-me adivinhar: tu pediste os discos na semana passada, eu disse que ia lá nesta semana. Sabia que não podia ir lá nesta quinta porque o enfermeiro ia lá dar-te a injeção para a bipolaridade, já hoje é sexta e tu pensaste: bom, passa-se a semana e aquele cabrão não me vem cá trazer o que me prometeu. Levantaste-te hoje e pensaste: vou-me a ver dele!

- Isso!

- Sou quase vidente. Se acabarem com as finanças e tiver de ir ver de vida, arranjo uma tenda dos marroquinos, vou comprar uma bola de cristal à feira da ladra, e faço-me à vida!

- “Tenho tudo orientado”, disse ele. “Quem me deu boleia até aqui a cima desde a Beirã, foi o Luís da Estrelinha (vice-presidente da câmara que nunca se livrou dessa alcunha entre as crianças que foram seus pares. Teria sido muito mais fácil para mim ter sido o filho do João Sobreiro, mas consegui sempre impor-me por mim). Como mora aqui, estou à boleia. Vou contigo para cima e calha mesmo bem. Mesmo bem. Era contigo que ia ter. Ouve, vou levar os discos…

- Epá, mas são muitos e pesados…

- Não faz mal. Não tenho presssa. Vou mesmo na minha. Se os carros pararem para me dar boleia (o que acho difícil. Muito difícil, digo eu), eu digo que não quero ir porque vou na minha. A minha mãe fez-me o almoço que trago aqui. Duas sandes impecáveis e está tudo a correr bem. Agora, se faz favor dás-me dois euros para beber café aqui e outro nos Barretos. Bom, vamos lá fazer a troca porque eu tenho aqui uns livros para te oferecer.

- Eh Tózinho, mas eu não ten…

- Lês só uma página antes de dormir. Vais ver que dormes melhor. Não é uma leitura assim séria, estudiosa, como se fosse um trabalho, como eu faço, mas é uma leitura.

Chegados ao alto, disse-lhe: “vamos lá acima ao serviço para fazermos a troca e não estarmos aqui como ciganos na rua. O meu chefe é um fixe e não há espiga.” Demoramos minutos. Assim foi.

Dei-lhe só um lamiré do som que lhe passava e ele deu-me os livros. Mas que não se pense que eram livros quaisquer. Obras recentes, de Junho de 2016, numa 1ª edição, com preço de amigo da FNAC. Juro que não sei onde é que esta alma vai buscar as referências. Mas irei certamente lê-los. Promessa a mim próprio.

“De Primatas a Astronautas”, de Leonard Mlodinow, com um chamariz de Stephen Hawking, esse mesmo, o génio encadeirado: “Mlodinow nunca falha na tarefa de tronar a ciência tão acessível quanto divertida.”
Hum… promete!



- “Cometa”, de Carl Sagan e Ann Druyan, 2ª edição de Abril de 2014.

Obras cheias de apontamentos, índices, notas e recortes. Mas onde é que este homem tem a cabeça? E onde é que a gente que pensa nele, se é que pensa, pensa que ele a tem?

Habitue-me a admirar o Tó Gordo, era assim que o conhecíamos, porque era mesmo anafado, desde que me lembro. Dono de uma inteligência rara, foi sempre idolatrado por todos os pais da pequena aldeia onde nasci, por ser um exemplo de filho.
“Mete os olhos no Tó!”, “Havias de ser assim” eram paragonas que se ouviam por toda a Beirã, um pouco por todas as casas.

Um par de anos mais velho que eu, um bom par de anos, uma década?, já ia distante quando eu comecei a ganhar consciência. Ele já fazia a barba, andava de colete e cabelo pelos ombros quando eu comecei a fazer xixi no urinol dos grandes.

Num nosso tempo onde os miúdos bons daqui, do concelho, de agora, arranjam empregos lá fora (Seguros, Miguel Miranda) e dão aulas no estrangeiro (Arquitetura, Rui Pinto), o Tó foi um dos primeiros a desbravar esse caminho para Lisboa. E logo para estudar Filosofia, creio que na Clássica.

Filho único de uma família tipo da Beirã (pai guarda-fiscal; mãe doméstica), sempre viveu num lar honrado, de pessoas muito respeitadas, honestas, trabalhadoras. Miúdo nada problemático, com uma forma de pensar muito alternativa, sempre foi muito católico e lembro-me da sua ida a Taizé. Eu também queria ter uma cruz daquelas, em forma de pomba. Eu também queria ter sido assim.

Em Lisboa, o Tó perdeu-se. Cortou-se o vínculo, sei lá como. Mas por deslumbre ou más influências, entrou na vida alternativa. O álcool e as drogas apoderaram-se dele. Deixei de ter notícias. Deixei de o ver e de saber dele.

Certo dia fui a Lisboa com os meus pais, de comboio e em Santa Apolónia encontrámo-lo. Fortuitamente. Recordo-me de ter visto a minha mãe chorar, pelo choque de o ter visto assim desarranjado. Não sei se estaria dentro de si e que discurso deu, mas estaria certamente muito longe do Tó da Beirã que todos conhecíamos.

Soube por amigos e vim a saber por ele depois também que o Tó chegou a ser uma figura do Bairro Alto, daquelas típicas, características, como a velha do “pontapé na cona!”

Só soube que estava de regresso quando me apercebi que se tinha passado completamente. Do tipo andar despido, ofender a mãe e todo nú a fugir em Portalegre, de uma vez que o levaram para o hospital.

Nesse entretanto, os anos também foram passando por mim. Casei-me, nasceu-me uma filha e comecei a ir frequentando o quarto do Tó. Sempre com um som de fundo, sempre com o seu hábito de escrita e com o seu bom trato e educação.

Li os poemas dele que adorava, e me maravilhavam pela arte da escrita por imagens, sempre com um Mário Cesarini e um Herberto Hélder como ídolos, por trás.

Noites em que ouvimos, dissecámos e escamoteámos o FMI do José Mário Branco. Quem nos haveria de dizer então que haveria de voltar…



“Vamos então beber o cafezinho?”, perguntou naquela manhã, em jeito de quem já estava a dever tempo à estrada, que havia-de caminhar a seguir.

Um café, um cigarro, dois homens a falar como rezava cada um a Deus à noite, e na importância de sabermos agradecer cada dia, como se fosse o último. Porque a vida é uma bênção e porque a sua consciência nos faz limpar de muitos artifícios nocivos que teimam em afastar-nos daquilo que é essencial e verdadeiramente importante.

Disse-me, seguro e confiante: "Estou muito mais magro. Só como dieta. Não se nota?"
- Porra Tó... Ainda bem que me dizes isso. Já temia que não estivesses bem de saúde"

Vi-o descer a calçada, com o saco com o farnel que a mamã lhe aviou e os discos que o amigo lhe emprestou. A vida é efémera. Na realidade, não valemos mais do que aquilo que somos, sentimos, respiramos, vivemos no momento.




Fui feliz naquela manhã, diferente de todas as outras.

E ele… sei que também foi. 

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