segunda-feira, 7 de novembro de 2016

Aos que já partiram (na minha frente)



O tropeção que dei na vida, sem estar nada à espera, e sem nunca ter sabido de onde e como é que realmente aconteceu, fez de mim um homem diferente. Este Pedro não é, definitivamente, o Pedro que era dantes. Tem muitas caraterísticas da sua personalidade que se mantêm intocáveis, porque são imutáveis e intrínsecas ao mais profundo do seu ser, mas este Pedro ganhou uma consciência diferente, uma maturidade e uma amplitude que não o conseguiriam fazer voltar para trás, para o que era até então, antes.

Depois deste intervalo brusco de mês e meio (em coma) no filme da sua vida, que chegou a meter em risco o visionamento do resto da fita, muitas coisas ganharam outra clareza, outros contornos, redefiniram-se estratégias e prioridades.

Depois da perda brusca e inesperada, em 2014, da tia paterna, que era, pela sua memória clara e espírito arguto, a matriarca da família, o repositório de todas as memórias que relatava e vivia com clarividência; o Pedro viu-se obrigado, aos 43 anos, a ser o fiel depositário da família Sobreiro. Filho do único filho varão que chegou a adulto de uma família só de mulheres, filho daquele que deixou tragicamente o mundo com apenas mais 6 anos que ele; aos 49, ele é hoje o ramo mais alto de uma família que não tem pais, avós, homens mais velhos a quem seguir. O Pedro é o Sobreiro mais alto deste montado, plantado no sopé da serra de Marvão.



O ter estado tão perto do fim, fez-me ganhar consciência de quão perto ele está e como é tudo tão efémero. Se pudéssemos parar a vida e levitar, se olhássemos para baixo e víssemos tudo o que passa na nossa vida e na dos outros, perceberíamos que muito do nosso tempo, no fundo, o que temos de mais precioso, é gasto em zangas, guerrilhas, quezílias, arrufos, desamores e chatices que não beneficiam ninguém. Ninguém ganha nada com o mal dos outros. Mesmo com aqueles que são nossos concorrentes… valores mais altos se levantam, sempre. Nem só de pão vive o homem. (e aqui pão pode ser traduzido como qualquer bem material, que aqui fica quando nós partirmos).

Vivi este dia de defuntos, dia 1 de Novembro, com uma emoção que nunca tinha experimentado antes do acidente me ter acontecido, nem nos anos depois, quando ainda estava a enturmar a minha consciência. Tendo tomado conta desta minha condição de mais alto dos Sobreiros, da falta que me fazem as ramadas que estavam acima de mim, percebi que teria de ser eu a honrar os que tinham aqui estado antes de mim.

No cemitério da Beirão estão todos os restos mortais dos que decidiram fazer vida nesta aldeia nascida do caminho-de-ferro, onde trabalhavam nos serviços associados, no transporte da ferrovia ou nos empregos dali nascidos. O meu avô, que nunca conheci (o chefe da estação que se reformou inspetor); a minha avó(zinha), que me coçava a cabeça em tardes sem fim e fazia gemadas do outro mundo, com ovos acabadinhos de sair do cú das galinhas que tinha no quintal e muito açúcar em cima; o meu Tio Gomes (padrinho do meu irmão, que trabalhava na PIDE DGS, mas segundo sei e ainda me dizem, apenas vigiava a fronteira e não fazia mal), a minha tia Maria de que já falei, e o meu pai, de quem passados 22 anos, ainda me custa falar, tal foi a influência que teve em mim.
Nesse cemitério, do qual a minha mãe costuma tomar conta das duas campas, ela já tinha orientado e falado com alguém que fizesse o tão difícil trabalho de as lavar, que para a sua situação física, se tornava quase impossível de realizar sem dor.

Na Beirã fiz questão que ficasse também gravado na pedra, o nome da última a desaparecer, a minha tia, para memória futura. Já passou mais de um ano e merece. Pelo tanto que nos deu.

O nosso sítio... (é) na Beirã


Descansado daqui, ficava apenas por manter viva a memória do meu tio paterno, que faleceu com apenas 14 anos, enquanto subia uma escadaria na Beirã, junto ao caminho-de-ferro, ao lado da loja do Sr. João Viegas e do Sr. Andrade. Segundo me contaram, a minha avó já teria perdido uma filha ainda bebé, mas esta morte do filho primogénito, de coração, assombrou não toda a família que o conheceu e acompanhou, como todos os outros que a ele se seguiram, nos quais obviamente me incluo. Na verdade, a minha tia Mirene, da Covilhã, faleceu desse problema depois de ter sido intervencionada a ele mais que uma vez; o meu pai também se ficou por ele não lhe ter valido e essa é certamente uma das falhas prováveis desta série de árvores, enquanto as outras tendem para outras maleitas. Há que encarar o que é indesmentível e fazer tudo para lhe conseguir fazer frente.

Manuel Bengala Lopes Sobreiro
N. 06.07.1923
F. 24.03.1937
Com apenas 14 anos

A sepultura do meu tio tinha sido oferecida pelo tio Bengala, como ficou expresso na lápide. Naquele então, os comboios ainda não tinham chegado, a freguesia ainda não existia e aquele cemitério foi o pouso mais certo.

Sempre me lembro dela assim, com um ar de abandono. Às minha tias tinha-lhe faltado força e discernimento para a poderem manter em condições e foi ficando.

Depois de sair do serviço, pensando nos ensinamentos que tenho tido com a minha Fernanda Cristina, fui ao Tapas e comprei 3 garrafões de lixivia que essa substância fantástica, limpa tudo e tudo luz após a abraçar. Menos a roupa, claro está. Por isso, passei por casa, vesti roupa velha e quando já caia a noite despejei os garrafões sobre a pedra, a lápide e deixei atuar. Não ficou perfeita mas ficou melhor e da próxima vez que a visitar, a ajeitarei melhor. Uma florzinha bastou. Sóbria, simples e de plástico, porque conserva melhor.

O antes...

E muita lixívia depois...
A paz e o silêncio do cemitério ao entardecer

Tenho outros Sobreiros, de sangue, cujos restos mortais estão sepultados na Covilhã, mãe e filho, mas estão… longe demais. Senão longe do coração, porque de certo que não estão, estão longe demais para que possamos equacionar uma ida ao cemitério, lá. E é incrível como o afastamento geográfico marca tanto a relação entre as pessoas. Bem diz o povo que longe da vista, terá de estar longe do coração. São gente nossa, nós viemos deles, somos feitos da mesma massa, mas se não há convívio, conversas, contacto próximo, se tudo se resume a um contato telefónico fortuito, duas ou três visitas nos anos, quando as há, não é a mesma coisa como se morássemos aqui, lado a lado. Lutamos por nos mantermos próximos deles mas… muitas vezes… é inglória.

Para além de Sobreiro, sou também Ereio, da Beira Baixa, tenho lá os meus, e o que resta dos que já foram, mas o estarem longe… sempre o estarem longe…

É por isso que me esforço tanto para que eu e o meu irmão nunca percamos, e os miúdos nunca deixem de sentir esta ligação tão umbilical que tínhamos.

A distância… acaba por definir tudo. É importante que quem pense nisto, pense sempre muito a sério nesta questão. Porque acaba por definir tudo.

Ainda hoje atendi um senhor que me disse ao balcão, com algum, muito lamento, que tinha pouca cabeça para este assuntos sérios como os que o tinham levado ao meu serviço. O filho tinha começado um negócio aqui mas… teve uma oferta melhor para a cidade grande e saiu… a filha está no estrangeiro, vem (brilhando os olhos) no Natal mas… vai ter que ir logo (fechou-se o sorriso), a esposa está a passar menos bem, muito menos bem e é ele que tem de assegurar…

Dei-lhe a mão e disse: “ânimo, força!”

Vi que estranhou e... percebeu.


Mas sei o difícil que deve de ser. As pessoas, os nossos, têm de estar sempre primeiro.

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