sexta-feira, 24 de maio de 2019

Morrer de amor (a história do Tio Zé Brás...)

Com o "meu" crucifixo em frente, antes de vir a mim...

Epá… isto está a tomar uma dimensão que pelo andar da carruagem, este blogue ainda acaba patrocinado pela Funerária Santos, ou Trindade, ou uma outra qualquer cá da zona, que eu nem sei bem qual é a cá de Santo António. E ainda bem.


Mas já todos sabem que este é o meu lugarinho. O sítio onde posso dizer o que me dá na veneta, onde não tenho de pagar as alcavalas do psiquiatra (que isto só com psicólogo não vai lá, garanto-vos), onde realmente me ouvem, nem que seja eu a mim próprio. Aqui arrumo as ideias, e vou organizando a “casa”, enquanto teclo. A história de sempre. A minha, afinal: um gajo gosta mesmo é de escrever, vai trabalhar para os impostos para poder viver (condignamente), mas realiza-se sempre é quando desagua aqui ao final do dia, vencendo o cansaço do dia inteiro ao balcão, em frente ao ecrã.


O assunto: mais um amigo que se foi, e por ter “mexido” comigo durante a vida, por ter tido algo que em mim impactou, tenho de aqui o recordar, fazendo um processo de luto muito meu.


O Ti Zé Brás entrou na minha vida quando me casei, por também ele estar casado com uma tia-avó da minha Cristina. Sempre o conheci assim, velhote, já curvado, com uma espinha quase dobrada sobre si mesma, sendo-lhe praticamente impossível olhar de frente para a paisagem. Defensor acérrimo do seu Vale de Ródão, vivia num Marvão que liga já para a parte dos Barretos, de onde se avista Castelo de Vide. Dono de um sentido de humor muito seu, castiço, antigo, tinha piada. Para mim, era dono de um falar e um sentir antigo, daqueles que está acabar, que já não se fará mais.


Muito apegado à sua casa, ao seu pedaço de terra, e sabia bem da sua contra-vontade em ir para a Santa Casa, em Marvão, contrária à da sua esposa, que já sentia as forças de viver a abalarem-lhe; e dos seus descendentes que tinham partido, e ido ver de vida na vila. Isto porque o Ti Zé era muito daquele tipo de pessoas de Marvão que cresceram com a ideia de que quem ia para a Santa Casa, entrava assim para um corredor fundo sem retorno, onde o único destino é o inexorável de nós todos, que é o fim de tudo nesta terra.  Quis esse mesmo destino que tudo se viesse a confirmar como ele o tinha previsto.


A tia estava muito descaída, lá, e a sua terna amabilidade de cada vez que nos via quando a íamos visitar à sua casa, tinha-se desfeito numa apatia confrangedora. Sem o seu poupinho, e os cabelinhos pretos, parecia ter o dobro da idade, e não só não nos conhecia, como não reagia aos nossos estímulos, aos nossos carinhos. Antevia-se o pior. Que aconteceu, em pouco tempo.
Custa a perceber mas apesar do carinho de todos os funcionários, da higiene, do empenho, do amor que se respira naquela casa, e eu sou bem testemunha disso desde há cerca de 5 anos, desde que tenho lá a minha tia-mãe, dá a sensação que nalgumas pessoas, há algo que desliga quando se instalam ali, como se fosse uma antecâmara da morte. Não creio que tenha sido assim no caso da tia, mas seguramente que foi no caso do Ti Zé, que esteve sempre contrariado, sobretudo depois do desaparecimento da sua companheira.


Quando faço a visita semanal à minha tia, sempre culpabilizando-me por não ir lá todos os dias, que era o que ela faria se tivesse consciência, e estivesse eu no seu lugar, faço sempre o mesmo trajeto: entro pela parte superior onde estão as senhoras, e regresso pela dos homens, em baixo, como que querendo dar um sopro de vida a todos, dar-lhe vida naquele enclausuramento onde respiram.
As da primeira sala, quase sempre a dormir, com muitas, muito em baixo; a sala seguinte onde muitas, muitas vezes pintam, e está um senhor de óculos que me faz sempre adeus como se me tivesse visto pela primeira vez; as senhoras da sala do fundo, sempre de trabalhos manuais, muito ativas e dedicadas.
Depois da visita ao “hospital”, que é como se chama a parte onde ela está, saio pelo rés do chão, onde aproveito para me “meter” com os homens: o amigo Machado, sempre ultra-tecnológico, agarrado ao seu portátil onde vê a bola, e acompanha as redes sociais; o meu amigo Chico lá da Beirã, que está igualzinho àquele que conheci em criança, de olhos gigantes aumentados pelos óculos cú de copo  de toda a vida; um tontinho que eu não conhecia senão dali mas se ri sempre imenso quando o fito, e se escangalha todo quando lhe digo baixinho: foste tu… ai, ai….enquanto levo a mão à boca fingindo tapar um segredo: o Ti Manel, o pai do meu amigo César que não teve a minha sorte, e ficou paraplégico no acidente que teve; e tantos outros… onde estava também o Tio Zé Brás.


Encafuado no sofá, como se estivesse a ser engolido por ele, passou a ter um olhar ainda mais distante, sozinho, triste, desde eu partiu a sua mulher. Pela familiaridade que temos, tinha para com ele sempre um cumprimento especial. Chegava-me junto, tocava-o (e como eu percebi ali a importância do toque… Há muitas tardes em que apenas sorrio e encho de festas a minha tia, sem nunca tentar dizer sequer uma palavra), e perguntava-lhe:
- Então Tio, como é que está hoje?
- Eeeeeeehhhhhh…

- Já comeu?
- Já comi. Já comi… (Como se estivesse a despachar-me)


E a clássica: Então está tudo bem?
- Eh… práqui estou à espera…


À espera disto que aconteceu agora. Não creio que estivesse doente, e havia-os por lá seguramente bem piores, mas… foi-se.
Não dizem que os elefantes que morrem de ordem natural, sem serem chacinados, ou assassinados, vão todos morrer ao mesmo sítio? Deve ser o mesmo.


O Tio Zé Brás era um artista. Sempre conheci, e me apaixonei, desde que vi o primeiro, dos seus trabalhinhos em madeira. Com uma navalhinha, ia debulhando a peça em bruto, e dali nasciam alfaias agrícolas em miniatura, pequenos apetrechos da vida mundana que os seus olhos iam absorvendo e cristalizavam com o seu engenho. Isso ou bonecos sarrafeiros com grandes pilas, com mangalhos que arrastavam pelo cháo. Uma vez ofereceu-me uns sapatinhos de madeira do tamanho  de um dedal que têm estado sempre no meu carro. Gosto de olhar para eles e lembrar-me da nossa amizade.


A sua obra maior que eu adquiri foi no São Marcos de há 2 ou 3 anos, um cristo cruxificado absolutamente magnífico que dormiu imenso tempo por cima do nosso leito enquanto dormíamos, e agora deu lugar a uma reprodução de um Van Gogh lindíssimo, o meu pintor de eleição, que retrata um casal de agricultores que descansa sobre a palha, Muito apropriado, portanto.
Pediu-me já não sei bem se 10, 15, ou 20 euros. Muito menos que aquilo que eu sabia que valeria para mim sentimentalmente, e poderia vir a valer num futuro que é agora. Hoje, para mim, não tem preço.


No funeral da sua esposa, no cemitério de Marvão, recordo-me que o apanhei quando saia, após o corpo ter sido devolvido à terra, e quando lhe disse “sinto muito”, disse que sim com a cabeça, como se estivesse a fazer um esforço para perceber a minha solidariedade, mas como se já tivesse entrado num transe que o haveria de levar a deixar de estar neste mundo… em paz, respeitando a ordem natural das coisas.


Ontem, ao balcão das finanças, enquanto trabalhava, comentei a sua partida com o seu vizinho Michael Ibelings, da Quinta da Saimeira, que ele ternamente chamava por “Mgúúúel”. Sentindo-me próximo dele, mais ainda depois do nosso relacionamento no movimento político “Marvão para Todos”, das últimas eleições, abordei a partida trágica e súbita do Tio Zé, como por aqui descrevo. Apesar de saber que é estrangeiro, e não tão dado a mostrar as suas emoções quanto nós, portugas, o Miguel não conseguiu esconder a emoção que deixou transparecer no brilho dos olhos quando abordou os passeios que davam juntos, e aquilo que lhe conseguiu mostrar.


A vida… é dar, e receber.
E há algo que não se explica, mas se traduz numa paz de alma indescritível quando sentimos que fizemos o bem. Essa é a minha grande busca.


Que descanse em paz…


Ao neto André Babinha, à filha Dionísia, e ao genro Vicente Ribeiro, envio um beijo enorme e as maiores condolências.


Na dor, nunca se esqueçam: não é para sempre. Nós todos estamos em contagem decrescente. Vamos todos desfrutar do tempo que ainda temos. Esse fim está sempre certo.
 
Com o adorado neto André...

1 comentário:

Unknown disse...

Obrigado Pedro pela bela homenagem. Zé Bráz era uma pessoa especial.
Abraço Michiel Ibelings