quinta-feira, 5 de junho de 2008

Prisões...


Estava à minha espera à porta da escola e disse-me um “ainda bem que o vejo” envergonhado que lhe desmascarou a intenção. Levava a filha pela mão e dirigiu-se a mim com uma delicadeza e uma subserviência que não é destes tempos. Disse-me que estava sem trabalho, que tinha tempo do desemprego e que gostava muito de poder ficar durante esse período na escola, como auxiliar. Foi pronta a esclarecer que a sua vontade era trabalhar, que voltaria para a fábrica assim que a chamassem ou iria de pronto para outro emprego que lhe propusessem. Pediu-me que fizesse o que pudesse e que não a mandasse para longe ou para sítios mais duros onde não pudesse dar resposta.

Solicitei que me fornecesse os seus dados para que pudesse confirmar a sua situação através da Secção de Pessoal da Câmara. Expliquei-lhe que devido às fortes limitações orçamentais, apenas podemos ocupar as pessoas com direito a subsídio de desemprego porque nesses casos, a verba que a autarquia despende é residual e se limita ao subsídio de almoço e pouco mais. Para que se efectivasse esta questão era ainda fundamental obter o parecer favorável da direcção da escola, o que à partida seria garantido em face das permanentes dificuldades de conseguir pessoal auxiliar.

Tentei não criar expectativas e procurei sobretudo não fechar a porta que me pareceu tão importante para ela deixar aberta. Soube sempre por pessoas amigas das dificuldades e dos problemas que a assolavam e a levaram a cometer actos em que poderia ter deitado tudo a perder. Nunca tivemos qualquer tipo de proximidade para além do circunstancial, do “bom dia” e do “boa tarde” que são comuns na vizinhança e na pequenez da nossa aldeia mas fiquei sinceramente feliz por a ver assim esperançada e animada, com os olhitos reguilas da sua pequena a espreitarem a nossa conversa e a sorrirem tímidos de cada vez que se encontravam com os meus.

O tempo e a necessidade confirmaram-se e tudo parecia encaminhado.

Tudo feito passo a passo, com calma, ponderação, auscultação das partes, sem margem para erro porque sabia que estava a tratar com pessoas e é fundamental não criar falsas expectativas.

Encontrei-a dias depois, em pleno desespero, quase em lágrimas. Disse-me que tinha ido a uma visita das técnicas do Centro de Emprego e a tinham mandado para os Bombeiros baralhando os seus (nossos) planos. Sufocava na manifesta ansiedade provocada pelas previsíveis crises de ciúmes e retaliações.

Senti-me traído pelos acontecimentos, num misto de fúria e angústia que cresciam de cada vez que me lembrava do cuidado que tive em fazer tudo. Procurei saber o porquê desta alteração. Tive de ser duro com quem me tinha descansado e percebi a dada altura que a única possibilidade de conseguir repor a verdade dos factos passava pela tal doutora que foi responsável pela mudança de colocação.

“Ela disse-me que ela é que manda. Ela é que sabe e é dela a última palavra”, confessou-me, derrotada, em profunda mágoa e desilusão.

Quando peguei no telefone, sabia ao que ia, como sabia também que estava disposto a fazê-lo. Não é fácil termos de nos rebaixar a quem não devemos e sobretudo quando estamos certos de que não haveria necessidade para tal. Mas os motivos eram mais que fortes.

Despedi-me agradecido e coloquei-me a jeito e à disposição “para o que entendesse, e que não hesitasse em contactar-me”.

O preço a pagar foi recompensado pelo alívio e pela satisfação que me mostrou ao saber que iria para onde queria, a fazer o que queria e sobretudo, para junto de quem mais queria.

Passava por ela de manhã, quando ia levar a Leonor, ou quando a ia buscar ou tratar de qualquer outro assunto ou reunião e trocávamos sempre um sorriso cúmplice, o dela mais envergonhado, com a bata de funcionária que luzia como se fosse o uniforme da armada mais invencível. Como que a dizer: “cá estou. Graças a ti. Sempre levamos a nossa avante” e isso pagava tudo.

Nem era preciso que, de vez em quando, ao regressarmos a casa no final do dia, lá encontrássemos o saquinho de plástico pendurado na porta com o pãozinho caseiro que tinha amassado com tanto cuidado para nós. Coisas sem preços. Gestos que valem fortunas.

Pensei sinceramente que o assunto estava arrumado e que teria o tal ano e quase meio que afinal custou tanto a conseguir.

Da última vez que a vi, no início desta semana, encontrei-a triste e abatida e contou-me que estava de baixa e não podia comparecer. Queria saber “se era preciso dizer alguma coisa lá para cima” e eu fiquei sem jeito. Olhei para o atestado médico que tinha dobrado na mão e fiquei mal. Nem sequer lhe consegui perguntar se era alguma coisa de cuidado ou se era uma situação temporária. Às vezes gostava de ter outra calma, outra serenidade e nalguns casos até consigo mas naquele momento acho que fui também levado pela pressa de já ir ligeiramente atrasado. Uma coisa era certa: podendo ou não ser de cuidado, a expressão do seu rosto tudo indicava que não restavam dúvidas.

“Tem o número delas? Então dê-lhes um toque. Elas sabem esclarecê-la melhor que ninguém e pelo sim, pelo não… sempre fica descansada”.

Já na casa grande perguntei e disseram-me: “está doente. Tem uma depressão”.

Uma depressão que a acorrenta, a amordaça e a impede de ser feliz. Uma depressão que lhe come as forças e lhe tira o brilho do olhar, como se fosse um desenho animado a preto e branco numa banda desenhada de cores garridas.

Nessa guerra, já eu não posso ajudar. Apenas lamentar e torcer para que tudo passe depressa e volte a ser como era.

Quantas não assim…

Isto não me tem saído da cabeça.

2 comentários:

Garraio disse...

(...)

Luísa Garraio disse...

Ao ler o título deste “post” lembrei-me automaticamente de um título de um livro do Daniel Sampaio- “Vivemos livres numa prisão”…

A fotografia é bastante sugestiva, por um lado a vontade de bater à porta ( sem campainha mas com “instrumento” sonoro disponível a qualquer mão) do outro lado, a corrente e o cadeado que indicam que a porta está mesmo fechada…

Quantas pessoas sofrem com esta situação de desemprego e com todas as implicações que daí advêm…

Foi muito bom o Pedro interessar-se por dar a hipótese a esta pessoa de fazer aquilo que queria, e é mesmo muito importante ajudar dentro das nossas possibilidades, a que isso aconteça…

No caso particular das escolas, cada vez mais se deve dar oportunidade de colocar as pessoas no sítio certo, sim porque lidar com crianças e jovens não é o mesmo que preencher uns papéis, ou descascar umas batatas( com toda a importância que essas tarefas têm).

Parabéns por essa proximidade com as dificuldades de uma pessoa que precisava e precisa de ajuda, às vezes já é tarde, mas espero que agora o apoio médico lhe dê o que esta pessoa necessita para voltar a sorrir, a ter vontade de trabalhar…e acredito que isso acontecerá…