domingo, 7 de setembro de 2008

Sérgio António Amador Bernardo (07.06.1975 – 03.09.2008)


Este é daqueles textos que custa a parir… mas vai por ti.


O meu Velhinho, o meu Velharasco, o meu Velharanga levou caminho. Foi já há muito tempo que te comecei a tratar por Velho, Velho Camarada, Velho Companheiro, Velho Amigo e tu, com a tua graça natural, encarregaste-te de fazer as variações.

Terminou assim um longo calvário de dois anos que nos manteve a todos em suspenso. Cumpre-se agora precisamente esse tempo desde que deixei um jantar na Senhora de Estrela para acorrer de urgência a uma reunião de amigos que se juntaram na Ramila, preocupados, para tentar encontrar uma solução, uma forma de lidar com esta nova e dura realidade.


Ainda me lembro quando te conheci, há tantos anos atrás, pá… eras tu um franganito e eu não deveria ser muito maior, pois está claro. Franzino e desajeitado mas com uma piada, uma maneira de ser irresistível. Lembro-me de estarmos sentados nos ferros da pastelaria e tu me dizeres que escola não era contigo e que o velhote se passava porque a tua onda não eram as línguas e as ciências mas antes as tardes passadas na Baiuca a jogar às setas, a fumar e a beber uns copos, a conviver com a malta.

Contigo era tudo claro como a água. Gostavas de quem gostavas e de quem não gostavas não valia a pena sequer tentar. Seguiste a linha do teu tio João Grande na maneira de estar atrás do balcão e as tuas variações de humor fizeram escola. Grande amigo do amigo, de verdade mesmo, foste sempre companheirão à altura.

Pensando em ti… lembro-me das noites loucas na Renault 4L do Luís Sequeira.

Lembro-me da Maluka nos Fortios, das matinées da Cave, dos bailaricos nas festas e romarias do concelho…

Lembro-me dos petiscos e da Expo 92 em Sevilha.

Lembro-me das conversas em que te abria os olhos e fazia de mano mais velho.

Lembro-me de tanta merda que passámos juntos e sobretudo dos Verões em que trabalhámos no bar do Grupo Desportivo, quando ainda tinha o fascínio de atrair a rapaziada nova. Fizemos uma dupla em grande…

Na altura eu fazia as manhãs e tardes e tu as noites. Lembraste que nunca despejavas o bidão do vasilhame e eu no outro dia tinha que alombar com o teu e o meu? Lembras-te de uma vez que me fiz mulo e depois de estar cheio, comecei a meter as garrafas no chão? A tua cara quando lá entraste e viste que mal se podia meter o pé detrás do balcão. Foi remédio santo…

E o Ti Júlio da Bica, o pobre do velhote, tanto que ele sofreu connosco… quando lhe fechávamos a porta e o trancávamos lá dentro e fazíamos de gatos e miávamos por entre as mesas. “Venham cá, cabrões, que eu não tenho medo de vocês!”. Eh, eh. Uma vez deu-te com um cinzeiro na tola com tanta força que ias desmaiando.

E quando te dei aulas de condução no campo da bola no Fiat 600 da minha mãe? Para mim não sabia eu, quanto mais…

E os serões no Poejo com o Bonachinho, e as idas a Espanha com o Quiquin…

Agora recentemente o teu bar, o teu casamento, o teu filhote…



Já me tinham dito que andavas doente mas eu, conhecendo como conhecia as tuas pancadas, achei que podia ser mais uma mania passageira. Cruzei-me contigo nas escadas da Casa do Povo e estremeci por ser por demais óbvio que a coisa era grave. Muito pálido, com grandes olheiras, uma barriga enorme e andando com muita dificuldade, pressenti e lamentei o pior. O grande choque tive-o dias depois pelo João Carlos, que soube de tudo e me traçou o pior dos cenários. A irreversibilidade do caso deixou-me de rastos. Como podia ser possível?!?!??!

Sucederam-se os exames, as idas a Lisboa, os internamentos, as dúvidas e preocupações. Chorava com dúvida, angústia e raiva depois de falar contigo ao telefone, imaginando-te só e derrotado, longe daquele que era o teu mundo. Valeu-te então o enorme apoio da família Mamede que te soube amparar nessas horas difíceis na capital.

Tentei saber mais por médicos e enfermeiros amigos, perguntando sempre na esperança de encontrar um que me dissesse que afinal poderia haver uma saída mas foi em vão. Todos nós sabíamos quanto ia durar. Todos nós sabíamos como ia ser.

Tomei então uma difícil resolução pessoal de não me deixar envolver mais do que seria capaz de suportar. Conhecendo-me bem e sabendo a verdade da amizade que nutria, procurei sempre acompanhar, estimular, apoiar mas guardando uma distância de segurança que me salvaguardasse a sanidade. Sabia que era duro demais para ser verdade.

A todo o tempo perguntei. Sempre quis saber e houve fases em que a vida parecia que te haveria de sorrir outra vez, não te salvando, mas garantindo-te a qualidade de vida necessária para seres feliz.

A debilidade dos últimos meses foi galopante. As visitas que te fazia e as conversas nas escadas da tua casa, sabíamo-lo ambos, apenas serviam para mitigar a solidão e providenciar alento. Os dias estavam contados e tu sabia-lo melhor que ninguém.

De cada vez que me ausentava, de serviço ou em férias, pensava sempre se te voltaria a ver e adiei até por mais não, a despedida que não queria ter.

Quis o destino que nos últimos dias estivéssemos mais em contacto porque a Estrela me pediu apoio numa questão relacionada com as finanças. Soube por ela que nesta fase final já não querias ficar no Hospital e procuravas a todo o custo estar em casa. Sabendo como é rija e directa, custou-me ouvir a sua voz vacilante e amargurada e decidi ir ao hospital para dar uma força.

Pensei que já estivesses inconsciente, mas à medida que me aproximei da cama vi como me olhaste e estremeci ao ouvir-te assobiar para mim, como fazias quando entrava no teu café, e o “oláááá” que me deste baixinho, como que a dizer “olha esta prenda que aqui me aparece agora…”.

“Sabes quem é, Sérgio?”, perguntaram-te.

“O Sabi. O Pedro. O Pedro Sabi” e passei-te a mão pela face num carícia que já não encontrou carne suficiente para a receber.

As fortes doses de medicamentação, sobretudo da poderosa morfina, faziam com que os períodos de consciência e de sono alternassem com muita rapidez e era difícil perceber se estarias ou não lá. Estava então bem claro que já não eras deste mundo e se há porventura exemplos em que a morte pode significar libertação, não restaram dúvidas que o teu caso foi um deles. Tudo era já tão difícil… o estar… o respirar… o perceber o fim da linha… que todos nós rezámos para que fosse quanto antes.

Mas da mãozinha tão frágil, de só pele e ossos, ainda vinha o teu calor e os teus olhitos apagados e tristes ainda pediam conforto e consolo quando se cruzavam com os nossos.

Pensei eu que por te ver, por te poder dar força e pedir calma e tranquilidade já tinha tido mais do que pedia, quando a Estrela te perguntou se querias um gelado. Enquanto descia as escadas, nunca desejei tanto encontrar um Calippo de morango e estava disposto a ir até ao fim do mundo para encontrar um. Felizmente estava bem à mão de semear e tendo autorização e estando quase sós, ainda te pude proporcionar esse momento de prazer, amigo, e ver como lutavas para te agarrar à vida e às coisas boas que ela tem. Um Calippo de Morango que não é um Magnum, nem um Cornetto, nem um gelado que se possa ver, mas que tu comeste com um prazer e uma vontade que fizeram dele a melhor coisa do mundo. Jamais me esquecerei desse gelado que te saciou a sede e te aliviou, nesse momento que foi um hino à vida e às coisas simples que passam despercebidas mas que no fundo, são as mais importantes. Depois alguém perguntou se “estava bom?” ou “o que é que se diz?” e tu ganhaste fôlego, respiraste fundo e ao teu melhor estilo disseste “dá-me outro!”. No teu melhor!

Quando parti sabia que não havia volta atrás e muito provavelmente não nos iríamos voltar a ver em vida. Pensei que tinha ficado em paz e que dali só seria para melhor mas não estava preparado para a minha própria reacção quando soube da tua partida.

O processo que se seguiu, foi duríssimo, como antevíamos. Tudo tão triste que não vale a pena sequer pensar.

Os tertulianos despediram-se de ti com um palma que não expressou nem uma milésima parte da nossa tristeza mas que foi plena de simbolismo.

Aguentei-me firme na segunda leitura na missa, como me pediram, e suportei as pernas que tremiam como varas verdes porque sei que tu querias que estivesse bem por ti.

Depois, saíste em ombros como os grandes toureiros em Las Ventas porque um Homem que viveu como tu e que sobretudo, sobre enfrentar a morte com uma dignidade e uma tranquilidade daquelas, não pode deixar este mundo de outra forma que não assim, carregado pelos amigos que sempre tanto quiseste e te quiseram. Eu sei que tu ias gostar.

Ando há dias com este texto na cabeça… criando-o… dando-lhe voltas… adiando escrevê-lo…

O que eu queria mesmo era fazer-te a minha homenagem, querido, dizer-te que valeu a pena e que jamais te esqueceremos.

Queria que soubesses, Sérgio, meu Velho, que isto sem ti fica tão mais triste.

Estejas lá onde estiveres e eu acredito mesmo que estás, sê feliz. E descansa em paz. Tu mereces, campeão.

Abraço do Sabi


Nestes dias, andei a dar voltas aos meus arquivos e apeteceu-me recordar alguns momentos felizes:

No dia do casamento

Com o nosso filho Gira

No recém aberto "Adro"









A primeira montagem da "Real Tertúlia do Camarão de Marvão"
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Na missa limitei-me a ler o que me passaram mas se tivesse o direito de opção, eram estas as palavras do grande Bob Dylan que gostaria de te deixar.
A música chama-se “A morte não é o fim” e diz que:

Quando estás triste e só e não tens um amigo,
Lembra-te que a morte não é o fim.
E quando tudo o que tinhas como sagrado, se desmorona e perde o sentido,
Lembra-te que a morte não é o fim.
Não é o fim, não é o fim,
Lembra-te que a morte não é o fim.

Quando enfrentas as encruzilhadas que não consegues compreender,
Lembra-te que a morte não é o fim.
E se todos os teus sonhos se desvanecem, e não sabes o que te espera,
Lembra-te que a morte não é o fim.
Não é o fim, não é o fim,
Lembra-te que a morte não é o fim.

Quando a tempestade te cerca e as chuvas fortes caem,
Lembra-te que a morte não é o fim.
E se não há ninguém que te conforte e te estenda uma mão amiga,
Lembra-te que a morte não é o fim.
Não é o fim, não é o fim,
Lembra-te que a morte não é o fim.

Porque a árvore da vida crescerá,
Onde o espírito nunca morre,
E a luz da salvação brilhará,
Nos céus negros e vazios,

Quando as cidades ardem com a carne flamejante dos homens,
Lembra-te que a morte não é o fim.
E quando procuras em vão para encontrar um homem que seja justo,
Lembra-te que a morte não é o fim.
Não é o fim, não é o fim,
Lembra-te que a morte não é o fim.
Até sempre!

4 comentários:

joao carlos disse...

Que descanse finalmente em paz, este amigo que teve uma grande infelicidade, que durou 2 anos! Que angustia, viver assim!!! Grande, foi a despedida dos seus amigos, alguns até o levaram em ombros desde a casa mortuaria, até a sua ultima morada. Outros tambem o queriam levar, mas era tanta, tanta gente...
Foi digno de um heroi, ver aquela campa repleta de milhares de flores.... Até sempre, Bernardo!

casa da carapeta disse...

Não podiamos também nós deixar de te prestar uma última homenagem.É com uma mistura confusa de sentimentos que o fazemos, dor, saúdade e alivio por sabermos que chegou ao fim uma longa caminhada de sofrimento. Estejas onde estiveres estarás sempre conosco presente nos nossos corações e a fazer parte das nossas vidas.
Até sempre SÉRGIO "CARROÇA".
Maria João Ramilo e Fernando "Cabanas"

Sandra Bugalhão disse...

Obrigada Pedro, por esse amor que tu tens por essa terra que nos viu nascer e pela forma como o transmites.Há já algum tempo, que te queria felicitar por este Blog , infelizmente o tempo escasseia.
Apesar da distância os amigos vão estar sempre no meu coração. Nos ultimos anos não tenho estado tão presente junto daqueles que me viram crescer. A minha vida mudou, eu mudei, tornei-me na profissional e na mãe de familia que sou hoje.No bau das minhas recordações passam imagens de uma infância, passada no canto roubado onde um menino brincava comigo, para mim foi como um irmão.
Ultimamente, e sabendo dos seus problemas de saude pensava muito nele. Em Fevereiro foi a ultima vez que o vi, não tinha nos meus planos ir visitá-lo, por saber que já se encontava bastante debilitado, mas ao saber que ele tinha perguntado por mim, fui ao seu encontro. Do Sérgio que eu conheci nada...apenas aquele olhar, mas agora triste. Agarrei nas suas mãos e falei com ele. Conversas banais, como se nada se estivesse a passar. Consegui sempre conter a lágrima que teimava em sair,até ao ultimo beijo de despedida no largo da igreja.Disse-me então que iria comprar um carro novo e que nessa altura viria a Beja. O que aconteceu depois todos sabemos. Para mim vai ser mais uma estrelinha que está no céu a brilhar.
Até sempre...

BRUNO PIRES MOURA disse...

07-09-2008
O sentimento de revolta por não se poder fazer nada por um amigo é algo horrível e de uma frustração enorme.

Foi há mais de dois anos que um dia disseste que não te sentias bem - até deixaste de fumar disseste-me que não te sabia bem - na altura nem pensei em nada de mais. Mas o pior estava para vir quando um dia se soube que estavas realmente doente, ficámos todos desorientados: aquele nosso grupinho da malta terrível ficou de rastos, ninguém sabia que fazer – estava tudo de cabeça perdida.

Mas, entre todos, decidimos que podíamos ajudar em algo que muitos estávamos à vontade, então voltamos a abrir o teu bar o sonho de tanto tempo, tantas conversas que tivemos… tantas e tantas vezes que me dizias que te ias despedir para ter o teu próprio bar, e eu pensava na açorda de marisco que fazias, que depois ia poder comer ali sempre que quisesse, lembro-me tão bem de quando íamos à do Primeiro Ramos na Bica e jantávamos os 3, depois sentávamo-nos ao lume na salinha da entrada a fumar e a beber uns copos. São essas as recordações boas que me deixas, não foi na tua infância que nos conhecemos, mas todos os momentos que vivi contigo foram muito bons.

Esta foi a segunda vez que ia em viagem e que me deram uma notícia terrível como a da tua morte! Voltei a perceber que é muito perigoso receber uma notícia dessas assim no meio da estrada. Eram precisamente 19:40h do dia 3 de Setembro de 2008 estava a caminho de Lisboa quando o Primeiro Ramos me disse o que tinha acontecido, fiquei sem saber que fazer - se voltar para trás, se seguir em frente - liguei a alguém que me pudesse ajudar a acalmar, lá parei o carro e chorei até conseguir ter forças para arrancar, já não tive descanso em toda noite e foi sair de Lisboa de madrugada para vir acompanhar-te nos últimos momentos.

Nem há uns dias tinha lá estado ao pé de ti, o medo de te ver era terrível porque sei que a fragilidade é algo que me persegue, mas vi a Estrela no bar do Hospital, tinha ido buscar-te um descafeinado, depois lá tomei coragem para subir e lá fui eu ver como estavas. Senti que deveria ter ido mais vezes, mas nunca tive coragem para o fazer. A primeira coisa que me disseste quando entrei na enfermaria foi o de sempre, o que era normal quando me vias já desde os tempos do Poejo: " HEE BRUTO MOURA! ". Nesse momento tive que me aguentar à tua frente. Lá falamos um pouco: contaste que tinha lá estado o Manuel Coelho no dia antes e que estavas “ esparvoado de todo “ que nem te lembravas dele nem de ninguém... Não me aguentei muito mais que uns 15, 20 minutos não sabia mais que te dizer... Depois, quando me deste a mão para nos despedirmos, eu ia abrir a minha mão mas a tua não me largava, e eu continuei a apertar até que tu quisesses largar - para quem parecia estar ali tão frágil, a força com que seguraste na minha mão deixou-me a pensar que poderia ser o último aperto de mão. E infelizmente foi mesmo!

Deus deu-te o eterno descanso e aliviou todo o sofrimento destes dois anos, mas deixa uma enorme tristeza dentro de todos nós.

Descansa em paz amigo, havemos de nos voltar a encontrar um dia.

Bruno Moura

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16-09-2008
Vim agora do teu bar, será sempre o bar do
“ Carroça ” isso já ninguém vai conseguir mudar mesmo que se viva uma eternidade. Quando entre nós mandamos mensagens a combinar onde se vai, surge sempre ou “ SERGIO “ ou “ CARROÇA “

Ainda nem tinha estado lá muito, estar lá na altura é bom, vejo o teu filho, a tua mulher, aquela que sempre lutou com unhas e dentes para te ter, aquela que não te abandonou nunca mesmo. Esteve contigo até ao último dia, até ao último segundo.

Mas quando vinha para casa é tudo bem mais difícil, apesar de entre os amigos falarmos de ti com um brilho nos olhos, é impossível esquecer que já não vais voltar lá.
Mas podes estar descansadinho que os teus amigos vão fazer tudo para que nada falte nem a tua mulher nem ao teu filho

Escrevo para te recordar, é a forma de te manter vivo cá dentro. Já algum tempo que não sentia assim a perda de alguém que me tocasse tanto, talvez nunca tenha sentido mesmo nada assim, mas a vida é mesmo assim coloca-nos a prova para que sejamos cada vez mais fortes.

Até breve…

O amigo... Bruno Moura