Realmente… a gente sabia que mais cedo ou mais tarde… a coisa tinha que se dar.
As pessoas perguntavam: “Então e a Cris… como está?”.
Eu respondia: “Está mesmo muito grávida”.
E toda a gente se ria e eu ria-me também do riso delas. Que remédio…
Diziam-me então que era engraçado eu dizer “muito grávida”. Ora eu acho esta expressão que sempre usei, o mais natural possível porque a gravidez é um processo evolutivo e não uma condição perene como por exemplo… a morte. Não cabe na cabeça de ninguém dizer que um indivíduo está “muito morto” ou apenas “mais ou menos morto”. Diz-se “está morto” e acabou.
Ora já com a gravidez não se passa o mesmo, uma vez que não estamos a lidar com uma realidade imutável, antes pelo muito contrário. Imaginem esta cena: uma jovem entra num autocarro e pede a um cavalheiro que lhe ceda o lugar no espaço prioritário a grávidas. A reacção mais natural do sujeito, analisando a silhueta curvilínea e os abdominais de ginásio da piquena, é questionar-lhe a gestação, ao que esta pode responder “o senhor não nota porque este está mesmo acabadinho de fazer. Venho agora de me banhar no jacuzzi do apartamento novo do meu namorado”. Dizendo por outras palavras… Ele não notou porque “ela está pouco grávida”. Ora a minha esposa estava precisamente nos antípodas desta situação e luzia uma barriga “altamente grávida” que de certeza, pegando no exemplo anterior, ainda não teria entrado no autocarro e já toda a gente estaria de pé, disposta a ceder-lhe o assento de boa vontade, incluindo o motorista.
Estando assim tão grávida, ninguém esperava que chegasse ao dia previsto para o desembarque, 14 de Fevereiro. Muito menos eu. Mas isso também não fez que acreditasse quando nessa manhã de dia 1 de Fevereiro, ela me acordou com um “acho que não passa de hoje”.
“Mas sentes-te mal? Rebentou-te alguma coisa? Estás com dores?”.
“Não… não sei explicar… mas acho que é hoje…”. Não havendo nada de concreto, seguimos cada um para seu lado, ela para fazer duas análises complementares para a criopreservação e eu para mais um dia de trabalho. É que a minha mulher é de uma calma que impressiona. Quando eu podia estar histérico e aos gritos, com meio mundo de volta de mim… ela apenas assobiaria para o lado. A Cris é uma mulher da fibra da rainha mãe de Inglaterra que recusou abandonar uma Londres acossada pelos bombardeios nazis, e passava as tardes a mamar gins tónicos na varanda e a contar as bombas que caiam ao lado. A minha mulher é dessa massa. O mundo a acabar e ela a pensar o que é que há-de fazer a seguir.
Liguei a meio da manhã para saber se estava tudo bem. Que sim… que não havia nada. Menos de uma hora depois devolveu-me a chamada para me dizer que fosse depressa, que já lhe tinha rebentado a bolsa e a pequena vinha mesmo a caminho.
Soube entretanto que por vezes, sobretudo nos segundos filhos, o espaço que medeia entre o fase em que ela me dizia que estava e o nascimento pode ser de apenas… 15 minutos! Não me recordo bem do trajecto mas sei que o Twingo quase voou. Asas não lhe achei… Se não rebentou nesse dia…
A minha chegada ao hospital deve ter sido digna de um filme do Woody Allen… cheio de malas, maletas, sacos e casacos, esbaforido e já a recriminar-me por não ter logo feito caso das proféticas palavras dela ao despertar. Se eu perdesse aquele momento, nunca mais me iria perdoar.
Ia à espera de encontrá-la aos gritos, o corpo médico em desalinho, as empregadas todas aos pulos, a maternidade virada do avesso e quando entro no quarto… encontro-a com o ar mais calmo e relaxado do mundo. “Já cá estás?”. E eu pensei: “só isto?!?!?”.
Antes assim. Era meio-dia e 45m.
As contracções começaram lentamente e de forma espaçada. Pelo que me contou do que aprendeu nas aulas de preparação para o parto e daquilo que pude reter na única sessão que presenciei, é importante manter a calmar e relaxar. No princípio tudo bem… mas à medida que a “corda esticava”, todas as teorias “zen” foram ficando para trás e a coisa entrou na fase da dureza.
E um homem, por mais boa vontade que tenha, não foi feito para estas coisas, pá. Tudo aquilo nos faz muita confusão. Se a natureza nos quisesse a assistir a estas coisas tinha arranjado forma de nos ter lá e não nos convocava só para o “pontapé de saída”, se é que me faço entender.
Lembrei-me dos últimos serões, quando ela recostada no cadeirão da sala nos mostrava os vultos na barriga que revelavam as movimentações da pequena. Um braço a passar… o que parecia uma perna… um alto de um lado que se deslocava num repente para o outro… Ela sorria com ar cândido, com a certeza que tudo estava bem mas para um gajo, tanto movimento na barriga faz confusão e é tudo tão à “Aliens” que houve vezes que temi que a Sigourney Weaver me entrasse com estrondo pela janela da sala adentro equipada de “mega-fuzíl” nas unhas.
Mas enfim… tudo tinha desembocado ali, naquele momento de aperto para ela em que as coisas complicam e a gente não pode fazer mais nada a não ser desejar que passe tudo num instante e corra pelo melhor.
De vez em quando pediam-me que saísse. Numa dessa vezes, encostado à parede do corredor vazio, agachei-me para descansar as pernas e recolhi-me em pensamento, tentando abstrair-me do que ouvia. Minutos depois, alguém fez uma pergunta de uma sala perto da entrada e supus que fosse para uma enfermeira que entretanto apareceu do outro lado. Mas não. Afinal era para mim.
“Vai nascer?”.
Fiz um esforço para identificar o rosto antes que chegasse perto, tentando evitar o embaraço de não reconhecer alguém que devia. “Desculpe?”.
“Já vai nascer?”.
“Acho que… sim…”.
“É o Pedro, não é?”.
“Sim… sou…”. E ela era uma rapariga na casa dos 20, de ar afável e rosto delicado, cabelos escuros e ondulados pelos ombros, também ela à espera de bebé. Tive a sorte que antes de lhe fazer alguma pergunta, ela tivesse dito tudo…
“Ah… bem me parecia… Sabe… eu sou leitora do seu blogue e tenho acompanhado a gravidez da sua mulher bem de perto… mas estava à espera que ainda faltasse mais tempo…”.
“Pois… Nós também… era para ser dia 14 mas… pelos vistos… vai chegar antes…”.
“Isto é engraçado porque quase parece que o conheço. Já o leio há muito tempo. Há mais de um ano. Conheci-o através do blogue da Marisa e agora vou lá muita vez… quase todos os dias…”
“Há 1 ano? E ainda não se aborreceu?”.
“Não, nunca. Eu rio-me muito com o que você escreve… às vezes até chamo o meu marido para ler também… outras vezes quase que dá para chorar…”
“…”
“Por isso estou a par de tudo o que tu… ai, você… diz e faz…”…
A conversa durou mais alguns minutos em que trocámos impressões e votos de felicidades para ambos e eu pensei, como se já não bastasse o turbilhão de emoções que o destino me reservou para este dia… ainda mais esta…
Provavelmente foi emocionante para ela ter tido a oportunidade de me conhecer e trocar algumas impressões comigo, no sentido em que me conhece de há muito virtualmente e só agora, pela primeira vez, pode interagir com o Pedro de carne e osso e perceber que eu realmente existo e não sou uma mera personagem aprisionada no limbo tecnológico da internet.
Mas por muito isso tenha significado para ela, o que eu lhe posso assegurar é que foi garantidamente, muito mais importante para mim. E foi assim porque me fez sentir que tudo isto, toda esta aventura do blogue, esta responsabilidade auto-imposta como minha forma de libertação maior, vale a pena. Vale a pena porque ao me permitir partilhar a minha experiência de vida com os outros, me faz aproximar das pessoas, me faz ser ouvido, me faz fazer sentido.
E foi um momento mágico, Cristina. Tão simples mas tão bonito da tua parte. O facto de teres vencido a timidez e te teres aproximado, a tua preocupação, o teu desejo que tudo corresse bem… Tudo isso me comove e me dá alento para que continue. Faz-me ter fé na condição humana. Faz-me querer ser um homem melhor a cada dia que passa. Bem hajas por isso.
Mas eu estava a meio de uma grande batalha e os “ais” que vinham do outro lado da porta fizeram questão de mo relembrar. As horas pesavam… os minutos já doíam… e não havia maneira.
Eu… tentando compreender a aflição dela, pensava… deve ser como ter uma bola daquelas insufláveis de praia da Nívea cá dentro… com passagens tão estreitas por onde sair… Como é que será?
Deu-se entretanto um quase inédito engarrafamento da sala de partos. Uma daquelas cenas que só a mim… bem… a elas.. ou melhor, das que só me acontecem a mim até através delas. Como sabem, os partos por aqui são escassos. De quando em quando, lá vem um e há semanas que nem vê-los. Pois deu-se a coincidência, ou a lua, ou lá o que seja, que a cegonha da minha queria aterrar e a chaminé estava entupida com outras duas a fazerem o ninho em simultâneo… Ele há coisas…
Maneira que foi preciso muito esperar, muito sofrer, muito penar, incluindo uma tentativa de epidural falhada por ter sido extemporânea, até chegar o grande momento.
Reservo-me os detalhes do parto em si, por tão íntimos e pessoais, mas não resisto a duas apreciações:
Primeira - A vida e a morte, ou mais precisamente, os actos de nascer e morrer são momentos de uma intensidade de tal forma brutal que os torna indescritíveis. Por mais exaustiva que fosse a narrativa, jamais poderia transmitir o poder que eles encerram em si. Ponto final.
Segunda - Aconselho vivamente todos os futuros papás que façam o favor de “fazerem das tripas coração” e não perderem POR NADA DESTE MUNDO, a oportunidade de verem nascer o seu rebento. Pode haver muita coisa boa que faça esta vida valer a pena, mas nenhuma com este valor.
Passam-se 9 meses a sonhar e num repente, surge-nos o tudo… do nada. Ainda deitar fumo e a tremer, atordoada pela luz e pelo choque de temperaturas, mas já com um porte que enchia a sala e quase me rebentou com o coração de alegria. Enchem-se-me os olhos de emoção de cada vez que penso nisso. Que coisa do… caraças, pá!
A minha Alice… baptizada pela mana mais velha (Tomás seria, se varão fosse) com um nome melódico e que não podia estar mais na berra, seja pela chegada da obra cinematográfica que mestre Burton estreia por estes dias; seja nos coleccionáveis dos jornais de grande tiragem… quase que a fazer crer que tudo tinha sido premeditado. A Alice está na moda!
A minha Alice… finalmente entre nós. Bem chegada. Bem recebida. Afastados todos os mitos e todos os medos.. que eu não sou daqueles que desfrutam da gravidez. Quanto mais depressa cá fora… MELHOR!
A Alice, enfim entre nós. Desejo-lhe que seja uma jornada… de maravilhas!
Quero aqui solenemente agradecer a TODO o pessoal do 4º piso (renovado e com belíssimas condições. Parece um hotel dos modernos, tipo Spa…) que teve um comportamento absolutamente notável e imaculado. Todos eles/as (assistentes, enfermeiros/as; médicos/as) foram de um profissionalismo e de uma amabilidade insuperáveis e estão de parabéns. Por ter sido o principal responsável da operação e o primeiro a receber nos braços a jovem infanta, não posso deixar de evidenciar o desempenho do enfermeiro/parteiro Sérgio que demonstrou ser um Às na sua arte. 5 estrelas!
Um abraço também para o meu colega Miguel, para a Vera e a sua Maria, bons companheiros de quarto nesta jornada que há-de ficar para a vida. Toda a felicidade do mundo!
Recebi, graças a Deus e aos muitos amigos, centenas de mensagens mas uma delas tocou-me particularmente por ir de encontro ao que sinto. Dizia a maior de todas as verdades: não há bênção maior que a de gerar uma vida.
Bem hajam! Grande abraço!
9 comentários:
É lindo o que escreveste Pedro e tambem sou da opinião que o pai tambem devia assistir ao parto mas não sei se o meu marido se aguentava acho que caia para o lado , muitas felicidades para Alice e para a Leonor.
Lindo. É, de facto, uma benção o nascimento dos filhos. É, para mim, o momento mais alto da condição humana.
Também eu vos "conheço" através do blogue, também eu vou sabendo de vós através deste espaço. E gosto.
Desejo-vos muitas felicidades e que a vida seja generosa para a Alice e companhia.
Obrigada pela partilha.
Um beijinho cheio de ternura para a mamã e para a bebé.
Parabéns Leonor, pela mana.
Um abraço.
Quando saí da aula de preparação para o parto, naquele dia 1 de Fevereiro, ainda voltei atrás a ver de si. Disseram-me que já tinha nascido a Alice e que o Pedro estava lá dentro. Senti assim um alivio e uma felicidade como se se tratasse de o nascimento de alguém muito amigo.
O prazer de o conhecer, garanto-lhe, foi todo meu.
Muitas felicidades para esse ninho!
Cristina (também já muito grávida!)
Muitos, muitos Parabéns!! Fico muito feliz por voçês!! Um beijinho muito grande à Cristina e um maior às duas Princesas!!
(não sei se já sabe, mas para Maio...vou ter uma Maria :-))
A família (q tb é um pouco minha) aumentou! Estou mt feliz por vocês e desejo à Alice uma vida cheia de saúde e coragem, contudo, tb com a dimensão sonhadora q uma tal Alice, anterior a ela e vinda dos livros, viveu :D
Sólo tu sabes emocionarte y emocionarnos de esta forma.
Esta mañana he pensado en ti y en tu niña y me he dicho: voy a ver si ya nació!... y me encuentro contigo, con Cris y con ella en la sala de partos!.... madre mía , qué alegría !.
No sabes lo que me has costado no empezar a leer por atrás! ... también he dejado caer una lagrimita de alegria, de esfuerzo, de dolor ...., cuando cuantas algo, lo haces de tal forma que hasta he sentido mis dolores de parto y la emoción que tuve al ver la carita de mis niños....
Un beso muy fuerte para todos y que traiga esa linda menina toda a felicidade do mundo para vocès..... bem merecen !.
Traéla pronto a España para que conozca su segunda tierra y empiece a quererla como nos quiere su papá.
Beijinhos.
Olá Pedro,
Adorei a "Crónica de um desembarque", está o máximo! Acredito que, daqui por algum tempo, a Alice vai adorar ler!
Bjs para ti e para as tuas Princesas.
Beijinhos e forte abraço a todas.
Obrigado pelas vossas palavras. (Agradecido…)
Muitas felicidades, em especial para as futuras mamãs Cristina e Catarina. Não sabia que estavas de esperanças, cachopa!!! Oxalá seja parecida com a mãe. ;) Um hora pequenina e que venham bem.
Beijinho especial tb à Goyi… que tem andado desaparecida… Onde é que tu te metes de vez em quando, cara linda? Aparece que a gente precisa de ti. Tu sabes como somos parecidos… Já falámos tanto disso… Beijo forte para ti e todos teus. Trata-me desses benfiquistas!
Abraço tb à Maria, à Helena, à prima Marília e à Carlinha.
BEM HAJAM!
Foi a primeira vez que li o blog... e foi com entusiasmo que li a entrada nesta vossa nova aventura! =) MUITAS FELICIDADES PARA TODOS!! Foi tambem com muita alegria que li o agradecimento aos enfermeiros de Ptg, que foram meus colegas durante dois anos.. Quanto ao Enf. Sergio, meu colega e conhecido, é sem duvida um grande homem e profissional!! Fico feliz que tenha gostado desta que foi também a minha casa e que sempre sentirei como minha!! =)
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