segunda-feira, 23 de setembro de 2013

Partir...

Na noite em que aconteceu, faz hoje uma semana, eu tinha ido com a Leonor levar uma amiga a casa a pé. Como essa menina tinha estado junto a nós e ido visitar as minhas tias à Beirã connosco, convidei-a para jantar em nossa casa. A Mariana, com a ingenuidade rebelde das crianças, sem ninguém lhe perguntar nada, comentou com a mãe o convite inesperado:  “atão… eu no outro dia também a convidei e ela…” Eu tentei explicar-lhe que quando se é amigo, não se olha a essas coisas. Faz-se o bem e fica-se bem. Depois, fomos a pé para desmoer o jantar, estreando a rua nova, que leva o bairro à Avenida Dr. Manuel Magro Machado. Regressamos a casa só os dois, não ligando às reclamações “do longe que é” e “o que se tem de subir” da menina que só quer MTV e facebook e tem tendência para ser redondinha.

Ao passarmos junto ao Miradouro, ouvimos ruídos e gemidos. Uma respiração forçada. Estava escuro como o breu e não se conseguia ver nada a 5 metros de distância. Não havia luar e só se ouvia. Às vezes pareciam gemidos, como se alguém tivesse caído. Mas quem para ali àquela hora!? Uma das minhas vizinhas pensou em chamar os bombeiros ou a GNR. Como não fazíamos ideia de quem poderia ser, aconselhei a GNR. Não se via um palmo, mesmo! Só escuridão.

Descemos um pouco a rua e outro vizinho que se apercebeu do acontecido disse que tinham visto por ali o Chico Estoura, alcunha como era conhecido o rapaz na terra. “Ah… Esse barulho era porque ele devia ter andado a roubar fio de metal do miradouro. Fio que vale e é vendido ao monte. Oh… mas de certeza que quando a guarda vier já ele fugiu. Assim que ouvir o jipe, ou se nos ouvir aqui a nós, de certeza que se espanta!”, afiançou.

Como não sou homem de virar as costas à responsabilidade e para ser solidário com a vizinha que telefonou porque eu não tinha telemóvel (que tinha ficado em casa a carregar), aguardei que chegasse a GNR, Eu também fui testemunha! Não sabia bem do quê, mas tinha ouvido e poderia relatar isso, justificando o porquê do telefonema. Quanto mais não fosse, para isso dava, caso fizesse falta.

Afinal demoraram pouco. Menos do que se dizia na rua. Uns minutos apenas. Mas os guardas não traziam uma luz suficientemente forte para poder ver. Foram-se munir do material necessário e voltaram em pouco espaço de tempo.  Um guarda do concelho, homem alto e forte que conhecia bem a figura em causa, decidiu avançar  pelo relato que fizemos. Procurou com cautela, pensando que poderia ter caído ou estar em perigo de vida. Mas não tão em perigo que o preparasse para o que os seus olhos viram. Voltou cabisbaixo e desolado. “É o Chico, é. Está pendurado!”

A notícia foi desoladora. Ninguém esperava algo semelhante. Eu, pelo menos, fiquei incrédulo. Afinal os ruídos que tinha ouvido foram os últimos estertores do pobre Chico. O Chico nunca foi mau rapaz. É certo que teve uma vida atribulada que o álcool e, pelo que dizem que eu nunca vi nada, algumas substâncias menos legais ajudaram a atribular ainda mais. Mas era bom cachopo. Sempre foi muito correto,  educado para mim e para os meus. Falava sempre com educação e simpatia.

 - “Eh Chico! Andas bom?”

- “Pedrito …”

Era fácil gostar-se dele. Sempre o tratei com deferência e o trato era recíproco. Tinha sido colega de escola da minha mulher e lembro-me de o reconhecer, a ele e ao irmão gémeo Pedro, nas fotos da Cristina em pequena. Dois anos mais novo que eu. Cedo demais para partir. Cedo demais para partir por vontade própria. Fossem quais fossem os seus problemas, haveria de haver uma solução, ou quanto mais não fosse, uma forma de os minorar. Só existe uma coisa no mundo para a qual não há solução. Ele escolheu-a. Cedo demais. Ainda se falou na possibilidade de ter sido um acidente, de ter escorregado. Mas há pessoas que estiveram com ele nessa noite que garantiram que estava sóbrio, que brincou com crianças na esplanada do Sr. Zé Pinadas, que pode ter feito aquilo porque tinha uma audiência nessa semana em tribunal por causa do acidente em moto 4 que teve no ano passado, conduzindo a mota do patrão… A ser assim, mesmo que lhe dessem prisão perpétua, que não davam, nunca poderia ser pior que a forca que fez com os cabos que pensávamos que poderia estar a furtar. Mas essa é apenas uma hipótese, uma conjectura. A verdade é que foi cedo demais.

Regressei a casa e esperei uma noite atribulada. Muito movimento pela rua, muito grito quando a família soubesse mas não. Eu que tenho sono leve, dormi tranquilamente e nem sequer senti o movimento dos carros durante o sono. Tudo me pareceu estranhamente sossegado.

Pelo que soube, a realização do funeral no dia seguinte estava pendente da chegada de um tio da França. Soube horas depois que seria às 18 horas. Assim que saí foi para lá que me desloquei. Pareceu-me que havia lá mais gente do que aquela que se seria de esperar. Um dos amigos que por ali aguardavam e aos quais me juntei, comentou que dantes, neste tipo de casos, nem missa havia e pouca gente assistia fazendo jus ao mote popular “quem morre porque quer, não se lhe reza por alma”. Nessa tarde, muitos estavam para assistir e verem a dor alheia que é sempre um espectáculo eletrizante e gratuito numa localidade de província sem cinema e centros comerciais. Mas alguns foram para prestar homenagem a uma vida que se perdeu, nos quais me inscrevo. Tudo ainda poderia vir a ser tão diferente e bem sucedido… Mas foi-se o Chico e fechou-se o livro aqui. Um livro daqueles de bolso de cowboys, com muita confusão e rebaldaria. Mas foi um livro que se fechou.

No espaço de poucos meses, quatro marvanenses engrossaram as estatísticas trágicas do suicídio no Alentejo. Todos jovens e com saúde, optaram pela pior sentença. Foram juízes carrascos em causa própria e meteram um fim a tudo: o João Manuel Freire Carlos, mais conhecido por “Diana”, sempre bem disposto e disposto a ajudar; a Dona Odete, a sempre desenrascada, muito trabalhadora e cheia de vida Dona Odete das farturas e do bar do GDA, com duas filhas, um filho e vários netos para ajudar a criar, embalar, ensinar e amar; e o Maçãs, o sempre problemático Maçãs que para mim era um bom rapaz. Cordial, educado. Havia linhas que eu sabia que não podia transpor e ele percebia isso porque também sabia que existiam linhas que não podia transpor em relação a mim. Limites. Distância. Respeito. Como me contou há dias um ex-patrão dele, “era uma jóia de moço, aprimorado e que fazia tudo bem até beber. Era o álcool que o transformavam num arruaceiro, num instável, num furacão prestes a rebentar com tudo. Quando entrava em actividade era um poço de força e ninguém o conseguia parar. Tinha filhas, creio que duas que ficaram sem ele. Encontrei-o no ano passado na fisioterapia no Hospital de Portalegre quando eu estava a reaprender a andar com a ajuda da minha amiga Rita. “Epá… estás muito melhor desde a última vez que te vi. Pareces outro…” disse-me. “Eu é que não passo disto…”, e cocheava. Mas passou…

No cemitério não gosto de assistir aos momentos finais que são sempre mais intensos e deveriam ser apenas da família. As pessoas deveriam recuar e deixar esse momento ficar na intimidade. Há momentos íntimos nas famílias que nunca deveriam ser violentados. Momentos só seus. Eu recuei.

Depois de rezar aos meus no local, regressei à aldeia em silêncio, como gosto. No caminho, duas mães que conversavam entre si contavam uma à outra de que forma receberam a notícia da morte dos filhos, porque ambos eram guardas e ambos se mataram. Novos e saudáveis, sem uma doença a assombrar a existência, decidiram acabar. Elas recordaram o choque da notícia. Partilharam o momento da dor. Exorcizaram, falando, os seus males passados. Disseram que nunca mais foram as mesmas. Nem nós, como comunidade. Quando acontece uma pedrada destas no charco, as ondas de choque vão-se propagando até desaparecerem. Por vezes levam anos. Muitos anos. E nós, ficamos mais pobres.

Naquele dia não se propiciou. Dei apenas um abraço ao gémeo Pedro que vive na vila e é quem eu vejo menos. Mas custou-me não dar um abraço à mãe do Francisco, a Dona Rita, que por vezes, quando me cumprimenta, ainda me trata por senhor vereador. Mas o que tem de ser tem muita força e encontrei-a a ela e à filha em Marvão, dias depois. Dei-lhe as mãos, pedi-lhe desculpa por não ter falado com ela no dia mas preferi depois, com calma. Ela agradeceu e disse-me que se lembra de muito pouco. Deveria estar medicada e no reboliço, muita coisa passou ao lado. Disse-lhe: “Dona Rita, sinto muito pelo que o seu filho fez”.

Fiquei com aquilo que sempre me resta e é o meu consolo: a minha consciência em paz.

Aos quatro que partiram: este vai por vocês!


Com um abraço do vosso amigo Pedro Sobreiro 

2 comentários:

zira disse...

A D.Rita teve um desgosto imenso.Teve que ter.Acordei muitas vezes com o diálogo que mantinha com o filho manhã cedo. Entendo a perda dela.O filho era a preocupação diária dela. E nesse dia, ao fechar a persiana, ele passou e cumprimentou-me afável como sempre. Parou uns metros mais à frente para cumprimentar o Marco e o Tiago. Eu vi e para mim própria comentei que era bom nas terras pequenas haver esta empatia. Quem me diria o que já tinha premeditado? A doença da dor psicológica é tanta que sabemos daqueles que se cortam e magoam fisicamente. Por ser insuportavel. E os que estamos á volta muitas vezes não damos por isso. Á D. Rita devo a dor de mãe, e visita quase diária que me fazia quando tu estiveste em coma. É uma mulher grata.Sensivel. A vida foi madrasta quando lhe levou o primeiro marido. Um rapaz que conviveu com jovens filhos dos funcionários da Alfândega, que de férias o apreciavam no grupo. Por isso doeu-me muito esta perda. Fez-me mais uma vez questionar o que é ou não importante.Tu fizeste-o como eu não seria capaz.Bem.

Helena Barreta disse...

A infelicidade tem que ser muita para se optar por pôr termo à vida. É triste.

Um abraço