terça-feira, 4 de dezembro de 2007

O Conto de Fadas de Nova Iorque

Shane Macgowan - Mítico líder dos Pogues


Para mim a época natalícia só começa verdadeiramente não quando montamos a árvore de Natal, mas quando ouço na rádio o “Fairytale of New York” dos Pogues. Ouvi-o hoje mesmo na RFM.

Para mim, esta é A eterna música de Natal, a maior, a mais brilhante e comovedora de todas, aquela que toca no botãozinho que faz despoletar todo o processo que nos leva direitinhos em estado de graça até ao dia 25.

Os Pogues são uma das minhas paixões de adolescência, daquelas que mesmo que pareçam muito distantes, hão-de sempre estar debaixo da nossa pele. Conheci-os através de uns vinis emprestados pelo meu colega de carteira no primeiro dia de aulas no Liceu de Portalegre, o Chico da Portela.

Lembro-me como se fosse hoje. Para mim foi tudo uma tremenda excitação. O ciclo de Castelo de Vide estava-me a parecer pequeno demais sobretudo depois de ouvir as histórias fantásticas que os meus amigos mais velhos, já alunos em Portalegre, tinham para me contar. As miúdas e as roupas e os discos e os copos e as motas e os carros e um mundo novo à minha espera e ali estava eu já então, sentado à minha sorte numa aula de apresentação, ao lado de um rapazinho com ar de ser mais velho, mais citadino e tremendamente mais aborrecido. Parecia saído de um vídeo dos Smiths, penteando a farta melena a cada segundo que passava, perguntando-me insistentemente quanto tempo faltava para podermos ir embora. Sabia lá eu! Tinha acabado de chegar também! Mas isso não é resposta que se dê quando queremos dar uma de estilo e de cada vez que me perguntava eu sussurrava-lhe um “calma, man. Tá quase!”. Devo-me ter saído de tal maneira bem que no intervalo já éramos amigos.

O Chico vinha de Lisboa. Pais divorciados. Mãe colocada em Portalegre. Uma vida que apesar de curta já era bem conturbada e vivida. Dias depois haveria de trazer debaixo do braço umas rodelas enormes de vinil que me emprestou. Naquele tempo não havia Internet, nem mp3 e emprestar um disco era um acto de grande valia e sinal de uma amizade confiada. Emprestou-me todos os dos Pogues que eram a sua banda favorita, sem pestanejar. Eu à espera de uma grande barulheira e sai-me aquele som genial, puríssimo e muito irlândes, em que a tradição se cruzava com o punk.

Passei a amar, tanto, tanto, até à exaustão. Comi as letras e o som e a magia daquela banda que passou a ser minha para sempre.

Porém, a cereja em cima do bolo ainda estava para vir. Ninguém falava noutra coisa no Liceu. Os Pogues vinham o Portugal para um concerto de estreia no Coliseu. É claro, eu e o Chico desta vez dissemos presente! E nem a Ti Alzira se atreveu a estragar o arranjinho. Fomos no Renault 5 creme da sua mãe e pernoitei com eles no apartamento da Portela, onde vimos à noite o filme “Cat People” com a Nastassja Kinski. Parecia-me tudo um sonho e a cidade tão grande e a emoção do concerto num crescendo tal que me esqueci dos bilhetes na merda do carro quando nos foram levar e a mãe do Chico teve de fazer um contra-relógio da Portela ao Coliseu. Lembrem-se que não havia telemóveis. Tivemos que esperar que a senhora chegasse a casa, mas só depois de encontrarmos uma cabine disponível.

O concerto foi inesquecível. No Coliseu pairava uma nuvem de fumo adocicado e toda a malta dançava nas galerias e corredores. O Shane Macgowan, bebedíssimo como convinha, fez as honras da casa e encantou com o seu swing dançante. Atrás de si, uma deslumbrante máquina de ritmos e melodias que tornou todos os nossos sonhos em realidade.

Podia-vos falar no que veio depois, na viagem de Cacilheiro para o Seixal à 1 da manhã, das palavras escritas na areia frente ao Cais das Colinas, das tantas aventuras que vivemos juntos nessa noite, eu, o Chico, os seus amigos e amigas…

Mas o que interessa mesmo é que os Pogues ficaram, para sempre. Nenhuma outra banda conseguiu casar desta forma perfeita a modernidade e o legado folk.

“Faiytale of New York” é uma canção de amor maldita protagonizada por um bêbado encantador e a sua mal-sucedida amante que não se rendem a nada, a não ser que seja o espírito do Natal. Um encantador dueto agridoce entre dois falhados que emociona até as pedras da calçada.

Integrada no 3º álbum de originais, “If I should fall from Grace with God”, haveria de se tornar num êxito retumbante ao alcançar o nº 1 das tabelas irlandesas e o nº 2 nas britânicas. A voz feminina era suposta ser a de Cait O’Riordan, então baixista e único elemento feminino do grupo, mas as expectativas foram goradas com a sua súbita saída da banda. Haveria de ser Kirsty MacColl, mulher do produtor do álbum, Steve Lillywhite, a levar a avançada em frente, superando as expectativas e rubricando uma performance única.

O estatuto mítico e quase lendário desta canção haveria de chegar gradualmente com o passar dos anos e adensou-se com a morte súbita da intérprete, a 18 de Dezembro de 2000, com apenas 41 anos, vítima de um estúpido acidente com um barco a motor quando fazia mergulho com os filhos no México.

Ao contrário das expectativas indiciadas pela sua carreira etílica, Shane Macgowan tem resistido aos anos.

A música ficará para sempre. Desfrutem-na e quando a ouvirem da próxima vez, lembrem-se que por detrás de uma grande canção, há sempre uma grande história.

Quanto ao Chico da Portela, tempos depois roubou-me a namorada de então e nem desculpa me pediu por me ter partido o coração.

Depois desapareceu. Nunca mais o vi.

Gostava bem de lhe dar um abraço. Se possível, com esta banda sonora.



O Conto de fadas de Nova Iorque
Tradução caseira por Traduções Sabi

Era noite de Natal querida,
Na cela dos bêbados,
Um velho disse-me, não vais ver o próximo,
E depois cantou uma canção,
“O velho e raro whisky da montanha”
Virei a cara,
E sonhei contigo.

Saiu-me um sortudo,
Veio como 1 em 18,
Eu tenho um pressentimento,
Que este ano é para nós dois,
Então Feliz Natal,
Amo-te querida,
E consigo ver tempos melhores,
Em que os nossos sonhos se tornarão realidade.

Eles têm carros grandes como carros,
Têm rios de ouro,
Mas o vento passa por ti,
Isto não é sítio para velhos,
Quando pegaste na minha mão,
Numa fria Noite de Natal,
Prometeste-me que a Brodway estava à minha espera.

Tu eras bonito,
E tu linda,
Rainha de Nova Iorque,
Quando a banda acabou de tocar,
Eles uivaram por mais,
O Sinatra cantava,
Todos os bêbados acompanhavam,
Beijámo-nos numa esquina,
E dançámos noite fora.

E os rapazes do coro da Polícia
Cantavam “A Baía de Galway”
E os sinos tocavam,
Anunciando o Natal.

És um vadio,
És um roto,
És um monte de ferro-velho,
Deitada e quase morta, destilando nessa cama,
És um escumalha, és uma larva,
És um feixe barato de piolhos,
Feliz Natal meu cara de rabo,
Rezo a Deus que seja o nosso último.

Eu podia ter sido alguém,
Bem, isso qualquer um podia,
Tu roubaste-me os meus sonhos,
Quando te encontrei pela primeira vez,
Eu guardei-os comigo querida,
Juntei-os aos meus,
Não consigo realizá-los sozinho,
Eu construí os meus sonhos à tua volta.

E os rapazes do coro da Polícia
Ainda cantavam “A Baía de Galway”
E os sinos tocavam,
Anunciando o Natal.

Digam lá que não é uma maravilha? Ainda hoje me arrepia todo. Feliz Natal!

10 comentários:

Luís Bugalhão disse...

olá ti' sabi. joyeux noël.

pogues é bem companheiro. eu tb 'tive nesse concerto, tão bêbado como todos os que estavam no coliseu (talvez entre os polícias houvesse alguém que não estava, mas eram a excepção), ainda que uma garrafa de chivas tivesse ficado à porta quando tentava passar, disfarçada, dentro da mala da minha futura mulher. no fim fomos buscá-la (foi o Garcês, da Música no Coração, salvo erro, que organizava o espectáculo, que ficou com ela. a malta disse-lhe logo que o conhecíamos da tv e que no fim do concerto íamos lá por ela, o que se revelou uma táctica de sucesso, pois ele não a mamou com os vips, e nós ainda fomos para os bastidores do palco 'ver os artistas'), e acabámos com a dita nos repuxos do rossio, entre mergulhos e muita dança, que ninguém conseguía estar parado depois de uma desbunda como a que tínhamos assistido.
desse concerto só me lembro de ter olhado para o palco durante dois minutos, aqueles em que tentei ver o que se passava com o filho duma siflítica (era por isso que ele tinha os dentes assim, a sério) que cantava no palco. o que se passava era que o gajo tinha malhado, coitado, que aquilo não é água. o restante tempo estive sempre a beber (ficou a de chivas mas passaram duas de extracto de abssinto. era só ir buscar trina de laranja ao bar e... tunga) e a dançar.
só te conto tudo isto pq tb para mim aquele foi um dos concertos do meu top five em Portugal. e é bem sentir que para um adolescente, como eras na altura, aquilo foi do melhor. é que eu, mm sendo já um homenzinho (estava embarcado, como 2º sargento na corveta Honório Barreto) desci à minha adolescência e senti-me como quando... olha como quando o benfas ganhava tudo na década de '80!
por isso, e para terminar, obrigado pela linda balada de natal, obrigado pela evocação de tão distantes memórias e obrigado por continuares a pôr o dedo nas 'feridas' que temos na consciência (não gosto de almas, sou agnóstico, nem de 'coração', os sentimentos passam-se no corpo todo, não é num só órgão).

'bracinho

ps1 - não comentei a marcha dos cágados para Valência pq n valia a pena. os nossos parceiros de caminhada disseram o que havia para dizer.
ps2 - subscrevo na totalidade o que dizes do benfas no post anterior, com excepção dos adu's e dos maria's. para taralhoco já chegava o mantorras e para entrevado já cá tínhamos o nuno 'amélia' gomes. e ainda há os coentrões e os miguelitos e assim... o espanhol não pode fazer ovos sem omeletes, caro sofredor. 'p'ó ano é que é (como diziam os lagartos).
ps3 - onde é que fica o 'cais das colinas'?

Garraio disse...

Ehhh pá!!11

Anos oitenta, foi há 20 anitos ou mais!!

E eu que tinha tanta pena dos meus manos lagartões que estiveram 18 anos sem provar nadinha...

De certeza que eles nem se lembram desta minha sequia actual. A minha "sorte" é que eu este ano sou do Altético de Madrid!!

Garraio disse...

E vocês os dois, pais de famílias eram para se inibirem um pouco de vir prá qui contar as bubas que apanharam nos concertos a que foram.

Eu cá não tenho coragem para comentar a minhas idas a concertos, não destes grupos tão mediaticos, mas dos Go Graal Blues Band, UHF e outros velhinhos que começaram a bater nos anos 70 e tal (belos 15 anitos que eu tinha... Uf... a ver se a minha filhota não lê isto!!!!)

Luís Bugalhão disse...

ó garraio, mas desses é outra estória! esses eram malta c'a gente via nos mesmos bares a que íamos, eram santos da casa que faziam milagres, e ainda há muitos milagres cá na memória tb... agora tira lá essa dos anos 70, que a coisa começou a zunir a sério foi nos 80 (mm qd sabemos dum single 'cavalos de corrida', dum outro chamado 'sémem', ou até duns saudosos CTT (destruição, destruição, destruição!).

e aqui não se trata de tugas versus bandas mediáticas. cada um no seu lugar, e todos com direito aos 15 minutos de fama na nossa alembradura.

o que se trata é de uma linda balada de natal, de um concerto memorável e do bom que é sentir que a comunhão de ideias e sentimentos existe. mm que entre um alentejano de cepa que emigrou para se fazer gente e voltou ao ninho, e um outro que só lá foi, ao alentejo, para nascer e voltou para o outro ninho, o da urbe. ou seja, até um alentejano com licença e um alentejano amestrado podem sentir do mm modo, ou de modo semelhante, o hino à alegria de viver que aquele concerto foi.

qt às referências que cada um tem, em termos de música popular urbana, elas fundem-se com a vida que cada um apanhou pela frente. não é pela idade, nem pela naturalidade, nem pela superioridade que às vezes lemos nos críticos, que a música cá fica. ela fica cá, e reproduz-se, pq é popular, pq diz respeito, pq é boa, pq nos faz sonhar, pq nos embebeda, pq propicia estórias para contar aos filhos.

e deixo-te outra referência, de que o pedro não falou, provavelmente por esquecimento, e que vinha a propósito, quer deste post dos pogues, quer no outro do boss (até por ser o cristo da música popular anglo-saxónica): Van Morrison. faz uma busca na net e no emul, caso não conheças (e eu acho que, armado em velho cm estavas no comentário, deves conhecê-lo), e dp diz qq coisa.

abraço

ps. e a perna esquerda melhorou? espero que sim, até pq, se é para ter um membro doente, que seja o direito, que o esquerdo faz-nos muito mais falta. ;-)

Luís Bugalhão disse...

e vê mais este garraio (e todos, cm é óbvio): elvis costello.

e agora estou a ouvir o 'nascido nos estados unidos' na rádio, e não consigo deixar de pensar que há p'r áqui qq coisa de místico, de exotérico...

vou ligar para a maia. para a abelha, que vi lá pelos anos ... ah... deixa cá ver alzheimer... há muitos, prontos.

mas ela deve explicar o porquê do 'bruto agostinho' aparecer enquanto eu digitava estas loas. ou é milagre, ou é coisa de promoções da indústria. hum... deve ser milagre, que isso de indústria, na música, não existe, pois não?

'bracinho

John The Revelator disse...

Mais uma das grandes bandas que herdei do mano velho (e sábio). Agora já vou mandando uns bitaites e de vez em quando ensino qualquer coisinha. Sinais dos tempos. Só dizer que os dias felizmente agora são mais alegres, porque o rapazinho que mete musica nos altifalantes do Continente até nem têm uns gostos muito maus. Esta musica roda umas 4 vezes por dia, pena que a seguir venha a Mariah Carey, Pat Benatar e companhia...

PS: Vamos lá ver se a merda dos posters do benfica são retirados da parede, caso contrario vejo-me forçado a frequentar outro estabelecimento. Eu sei que o meu sporting anda uma vergonha mas isto já é abuso. Vá la mais uma rodada de bagacinhos que pago eu...

Luís Bugalhão disse...

ó revelator não desesperes, que os lampiões agora andam (quase) na mesma. e se esperaste quase duas décadas para voltar a ver o padeiro, pq é q agora, com meia dúzia de anos de sequeiro, já andas assim? deixa-te ficar por cá, que esta malta não gosta de verde alvalade, mas gosta de outros verdes.

e essa de pogues, ou de bitaites na música do continente, quer dizer que é o que fazes? diz mais coisas catano! anda cá p'ró meio dos cotas, qu'isto é gente boa. somos do glorioso, logo somos bons chefes de família, logo só tratamos mal as marias (qd o slb perde), nunca os companheiros de tasca. mm que sejam desse clube de bairro lisboeta.

binde mais bezes ao tasco. faz bem à ialma!

'bracinho

Garraio disse...

Luis, esses grupos tugas que tu vias nos cafés, tenho a certeza que os vi antes dos anos 80.

Para mais não havia nota, de resto limitava-me a colher azeitonas ao ritmo dos sons escolhidos pelo Luis Filipe Barros, no Rock em Stock.

Na nossa sociedade sempre houve classes. E classes... ;)

Como " o vento " me empurrou pró lado de lá, sempre ouvi mais música (rock) espanhola, o que era um produto que só se consumia internamente, senão vocês conheceriam, pela certa.

Ñu, Barón Rojo, Asfalto, Miguel Rios, Tequilla, etç.

Da anglo-saxonica, fico-me quase pelo mais comercial e/ou grandes êxitos, Straits, Police, Supertramp, The Cure. Enfim, a música das massas.

Luís Bugalhão disse...

sim garraio, sempre houve classes. e continua a haver.
mas nós, do povo, não somos desta classe por ouvir esta música, ou doutra por ouvir aquela.

o punk por exemplo aparece como reacção ao mainstream estéril dos anos '70, e em menos de nada estava absorvido e a ser servido aos milhões pela indústria sedenta de grandes lucros.

a música tradicional tb sempre foi feita pelo povo, mas depois começou a ser utilizada para fazer carradas de réplicas tipo iglésias, marcos paulos, emanuéis, etc, etc...
mas mm esses têm a a sua razão de ser, e o seu nicho de mercado, pq o povo os ouve.

a conversa sobre os anos '70 em portugal roda em torno disso. havia uma 'movida' tuga (em lx e no porto apenas, como é óbvio) que estava a fazer coisas, que lá conseguia editar um single (os que te falei anteriormente eram todos dos finais de '70), que lá fazia uns concertos, mas não descolou para aquilo que temos hoje (que não sendo bom, está a milhas, para melhor, do que havia na altura) enquanto a valentim de carvalho não editou o chico fininho e, mais tarde, o ar de rock do rui veloso.

agora, o que tb não tem a ver com classes é a atitude de 'ai eu disso não sei nada. eu mais sou mais terra-a-terra. não tive tempo para ouvir essas coisas, disso não vale a pena falar'.

vale caraças! não ouviste, não conheceste, mas ainda estás a tempo. e repara que os nomes que te enviei para procurar na net são cotas, velhos, dinossauros, o que lhes quiseres chamar. é só questão de te dispores a ouvi-los e vais ver que compreenderás muito melhor a estória da balada, a estória do concerto, e o significado que subjaz a uma coisa contada como se de apenas uma bebedeira se tratasse.

no hard feelings

'bracinho

Catarina disse...

o meu primeiro CD, a minha música de natal preferida...E eu que só ouço a Antena 3, coincidência ou não, também a ouvi ontem na rfm, no rádio da cozinha, enquanto tentava a muito custo alimentar a minha doentinha. E só por causa desta música o meu dia melhorou um bocadinho, e só por causa desta música me esqueci por momentos o quanto é difícil vê-la assim tão abatida...afinal a virose há-de passar e falta pouco tempo para celebrar com ela o seu primeiro Natal!