Conheci o meu vizinho Bicho quando fui colocado no Serviço de Finanças de Marvão. A empatia foi imediata. O meu vizinho Bicho era um cavalheiro de outro tempo. Alto e esguio, apresentava-se sempre muito bem ataviado na inseparável companhia do seu chapéu preto de estilo clássico que era também a sua imagem de marca. Educado e bem falante, encantava os seus interlocutores com o charme da sabedoria que foi ganhando ao longo da vida. Cortês e de trato fácil, genuíno e sempre amável, estava sempre bem onde quer que estivesse.
Quem nele investisse dois dedos de conversa acabava sempre por ficar pelo menos meia hora, seduzido pela natural eloquência e pela clareza e autenticidade do seu discurso. As histórias encadeavam-se umas nas outras e nós deixávamo-nos ir, embalados pelos seus inenarráveis enredos.
O meu vizinho Bicho morava ao fundo da minha rua, umas casas a seguir à minha e nós encontrávamo-nos com frequência. Ele no quintal, de volta das flores e das suas culturas, eu de passagem para despejar o lixo ou em descompressão após uma das minhas corridas. “Então onde foi hoje a volta, ó vizinho?”. Eu lá lhe contava e a sua reacção era sempre a mesma: "assoprava" (como só ele sabia fazer), batia com a mão na perna em sinal de espanto e dizia-me: “você é o maior valentão que por aqui há. As pessoas até se admiram como é que corre tanto, tanto… Veja lá não lhe faça mal…” e eu descansava-o dizendo que não, que já estava habituado. E por ali ficávamos de cavaqueira, sempre menos tempo do que eu gostaria mas ele, vivendo só, tinha todo o tempo do mundo e eu sempre tantas coisas por fazer que me impediam a demora.
Quando ia ao supermercado e o encontrava no Tapas, sentado com os seus amigos, convidava-me sempre a uma bebida, com as mãos abertas em direcção ao balcão e a cabeça ligeiramente inclinada em sinal de verdadeira boa vontade.
O meu vizinho era uma galã. Tirava sempre o chapéu quando cumprimentava uma senhora.
Há dias veio-me pedir ajuda para preencher o IRS. Estava confundido com as datas… dizia que dantes tinha prédios arrendados que agora já não estavam… entretanto tinha feito uma venda e não sabia em que fase deveria apresentar a declaração. Eu tranquilizei-o e disse-lhe que desde que me deixasse consultar os documentos lhe tratava de tudo. Que ficasse descansado…
Foi a minha casa num dia em que toda a família estava de férias, pela Páscoa. Sentou-se confortavelmente no meu sofá e por ali ficámos. Gabou-me a moradia, a vida, as filhas… Falou-me nos netos que tanto adorava e os olhos brilharam-lhe na cara pálida traçada pelos sulcos da idade, enquanto relatava os sucessos da descendência. Os termos que utilizava e o seu expressar tão nosso eram um regalo. Levou-me uma garrafinha de vinho “para beber com os amigos ou convidados” embora ressalvasse que não era para pagamento de nada “que estes favores não se pagam”. Saiu uma hora depois com um “não o empato mais” que eu refutei porque me sentia francamente bem junto a ele.
Fiquei-lhe com os papéis, comprei e preenchi os impressos que deveria assinar e estranhei nunca mais o ter visto por aqui. Como não dava notícias, procurei por ele no Centro de dia da Casa do Povo, do qual era utente e lá me disseram “que estava muito mal porque lhe “tinha dado” uma coisa qualquer”. Tinham-no encontrado caído em casa e levado dali para o hospital de onde só tinha saído para a casa da filha em Castelo de Vide. Como regressaria ao Centro no dia seguinte, deixei a documentação para que a assinasse, com a promessa de voltar para a apanhar e fazer a entrega final.
Perguntei depois como o tinham achado. “Em baixo, muito abatido… Dizia que estava acabado”. Conhecendo a sua tenacidade, a sua fibra, devo ter comentado que “não, que um homem daqueles não se vai assim abaixo. Pode dizer isso porque se vê diminuído mas ainda vai arribar”. Disseram-me ainda que me tinha mandado um abraço e agradecido a ajuda. Disse-nos “que você era um grande amigo que ele tinha”.
Ainda pensei em pedir o número de telefone e ligar-lhe para a vila a desejar as melhoras mas foi passando…
Ontem de manhã, a Cris surpreendeu-me com um sms: “Morreu o vizinho Bicho. Bj”.
Já não fui a tempo.
A morte é sempre estranha e incompreensível, apesar, por vezes, da doença e da idade. Custa pensar que nunca mais o vamos ver, que o seu vulto esguio nunca mais há-de passar pela minha janela, que aquela esquina nunca mais vai ter o ânimo da sua presença.
O bairro, a terra e todos os que tínhamos o prazer de poder contar com ele ficámos mais pobres. Perdeu-se uma figura carismática e se todas custam, estas custam sobremaneira.
A minha filha deu-me a notícia com espanto assim que me viu e perguntou-me o que é que estavam lá a fazer no funeral. Eu disse-lhe que o corpo estava em câmara ardente, que os familiares e amigos o estavam a velar antes de o devolverem à terra. Ela respondeu-me: “os amigos? Então tenho de lá ir!”. “Ai sim? Então tu também eras amiga dele?”. “Eu era! Ele dava-me gomas e pacotes de batatas fritas…”.
Esteja lá ele onde estiver, há-de seguramente estar bem, a espalhar charme e gabarito pelas novas amizades.
Quem nele investisse dois dedos de conversa acabava sempre por ficar pelo menos meia hora, seduzido pela natural eloquência e pela clareza e autenticidade do seu discurso. As histórias encadeavam-se umas nas outras e nós deixávamo-nos ir, embalados pelos seus inenarráveis enredos.
O meu vizinho Bicho morava ao fundo da minha rua, umas casas a seguir à minha e nós encontrávamo-nos com frequência. Ele no quintal, de volta das flores e das suas culturas, eu de passagem para despejar o lixo ou em descompressão após uma das minhas corridas. “Então onde foi hoje a volta, ó vizinho?”. Eu lá lhe contava e a sua reacção era sempre a mesma: "assoprava" (como só ele sabia fazer), batia com a mão na perna em sinal de espanto e dizia-me: “você é o maior valentão que por aqui há. As pessoas até se admiram como é que corre tanto, tanto… Veja lá não lhe faça mal…” e eu descansava-o dizendo que não, que já estava habituado. E por ali ficávamos de cavaqueira, sempre menos tempo do que eu gostaria mas ele, vivendo só, tinha todo o tempo do mundo e eu sempre tantas coisas por fazer que me impediam a demora.
Quando ia ao supermercado e o encontrava no Tapas, sentado com os seus amigos, convidava-me sempre a uma bebida, com as mãos abertas em direcção ao balcão e a cabeça ligeiramente inclinada em sinal de verdadeira boa vontade.
O meu vizinho era uma galã. Tirava sempre o chapéu quando cumprimentava uma senhora.
Há dias veio-me pedir ajuda para preencher o IRS. Estava confundido com as datas… dizia que dantes tinha prédios arrendados que agora já não estavam… entretanto tinha feito uma venda e não sabia em que fase deveria apresentar a declaração. Eu tranquilizei-o e disse-lhe que desde que me deixasse consultar os documentos lhe tratava de tudo. Que ficasse descansado…
Foi a minha casa num dia em que toda a família estava de férias, pela Páscoa. Sentou-se confortavelmente no meu sofá e por ali ficámos. Gabou-me a moradia, a vida, as filhas… Falou-me nos netos que tanto adorava e os olhos brilharam-lhe na cara pálida traçada pelos sulcos da idade, enquanto relatava os sucessos da descendência. Os termos que utilizava e o seu expressar tão nosso eram um regalo. Levou-me uma garrafinha de vinho “para beber com os amigos ou convidados” embora ressalvasse que não era para pagamento de nada “que estes favores não se pagam”. Saiu uma hora depois com um “não o empato mais” que eu refutei porque me sentia francamente bem junto a ele.
Fiquei-lhe com os papéis, comprei e preenchi os impressos que deveria assinar e estranhei nunca mais o ter visto por aqui. Como não dava notícias, procurei por ele no Centro de dia da Casa do Povo, do qual era utente e lá me disseram “que estava muito mal porque lhe “tinha dado” uma coisa qualquer”. Tinham-no encontrado caído em casa e levado dali para o hospital de onde só tinha saído para a casa da filha em Castelo de Vide. Como regressaria ao Centro no dia seguinte, deixei a documentação para que a assinasse, com a promessa de voltar para a apanhar e fazer a entrega final.
Perguntei depois como o tinham achado. “Em baixo, muito abatido… Dizia que estava acabado”. Conhecendo a sua tenacidade, a sua fibra, devo ter comentado que “não, que um homem daqueles não se vai assim abaixo. Pode dizer isso porque se vê diminuído mas ainda vai arribar”. Disseram-me ainda que me tinha mandado um abraço e agradecido a ajuda. Disse-nos “que você era um grande amigo que ele tinha”.
Ainda pensei em pedir o número de telefone e ligar-lhe para a vila a desejar as melhoras mas foi passando…
Ontem de manhã, a Cris surpreendeu-me com um sms: “Morreu o vizinho Bicho. Bj”.
Já não fui a tempo.
A morte é sempre estranha e incompreensível, apesar, por vezes, da doença e da idade. Custa pensar que nunca mais o vamos ver, que o seu vulto esguio nunca mais há-de passar pela minha janela, que aquela esquina nunca mais vai ter o ânimo da sua presença.
O bairro, a terra e todos os que tínhamos o prazer de poder contar com ele ficámos mais pobres. Perdeu-se uma figura carismática e se todas custam, estas custam sobremaneira.
A minha filha deu-me a notícia com espanto assim que me viu e perguntou-me o que é que estavam lá a fazer no funeral. Eu disse-lhe que o corpo estava em câmara ardente, que os familiares e amigos o estavam a velar antes de o devolverem à terra. Ela respondeu-me: “os amigos? Então tenho de lá ir!”. “Ai sim? Então tu também eras amiga dele?”. “Eu era! Ele dava-me gomas e pacotes de batatas fritas…”.
Esteja lá ele onde estiver, há-de seguramente estar bem, a espalhar charme e gabarito pelas novas amizades.
Hoje de tarde, depois do treino, não resisti a fotografar a sua roseira de eleição. Haveria de gostar de a ver.
Uma última nota de rodapé: Quando vou a um funeral, gosto de estar em silêncio. No meu entender, um funeral deve ser um motivo de introspecção. Custa-me que muitas pessoas (a maioria, infelizmente) tornem a ocasião num ponto de encontro e se esqueçam que estão a velar um morto, uma pessoa que partiu. Parecem lembrar-se de tudo menos do que realmente os deveria ter ali conduzido. É pena… Um pouco mais de respeito era capaz de não ficar mal...
6 comentários:
É um privilégio conviver com pessoas com a elevação e educação, como podemos depreender das suas palavras, do Senhor Bicho.
Mesmo não conhecendo o Senhor, fiquei emocionada, é que sou uma eterna apaixonada pelos cavalheiros, fazem-me lembrar o meu pai, também ele gentil, educado e vosso conterrâneo.
Um abraço
Também tive o privilegio de conhecer o Sr.Bicho. Ainda me lembro qd fiz voluntariado no Centro de Dia e todas as tardes nos reuniamos para nossas jogadas ao dominó. Ele decia: Esta espanhola é danada!. Tava sempre na brincadeira com ele e o Sr. Tomás. Foi uma experiência muito boa q nunca vou esquecer, com tardes de muitas historias e conversa amena. Um grande senhor. Descanse em paz.
ÉS UM GRANDA FILHO DA PUTA!
Pedro, não resisto a comentar este artigo porque fui apanhado de surpresa. Também eu era amigo do Sr. Bicho, assim como os meus pais e os meus avós. Foi também com ele que aprendi o que fazer para verificar que existe água no subsolo. Era de facto um bom homem, muito educado, de bom trato e com uma deferência especial na companhia de senhoras.
Era uma figura distinta sempre com o seu chapéu que utilizava como pouca gente o consegue fazer!
É com muito pesar que tomo conhecimento deste facto.
Olá, Pedro.
Eu também conheci o Senhor Bicho. Sempre que desenvolvemos actividades da Biblioteca Escolar com o Centro de Dia, na Escola ou no Centro de Dia, ele estava presente. Custou-me saber que faleceu. Era, de facto, uma pessoa muito gentil e animada, sempre com vontade de conversar.
No link que deixo aqui estão 2 fotos do Senhor Bicho numa actividade que decorreu na biblioteca para comemoração do Dia do Idoso.
http://bibliotecaescolararnense.blogspot.com/2009/10/dia-internacional-do-idoso-2009.html
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