Álbum de memórias: momento da entrega do relógio novo ao Abel, que o segura e exibe na mão |
Este artista já não é
novidade aqui no palco de variedades que é esta taberna virtual (taberna com b
em vez de v no novo acordo ortográfico do vosso Tio Sabi) ou seja, neste
blogue. Mas justifica-se. Porque o Abel, como ele se apresenta sempre, é bom. “O
Abel é bom”, dito por ele, pelo Abel, pode parecer uma redundância mas não é.
Quem o conhece, sabe bem que é verdade. É um bom coração, um pobre diabo que
não faz mal nem quer mal a ninguém. Só o vejo zangado comigo de vez em quando e
tem razão para estar. Eu gosto tanto dele que quando o apanho distraído, como
ele é tão maneirinho e tão pequenino, o agarro por trás e o levanto no ar, o meu
amor pequenino. Ele fica bruto, quer-me morder e dar murros e dá uma série
deles no ar. Só que nunca me apanha com um gancho daqueles. Também… eu gosto do
risco e se me acertar, não lhe posso levar a mal porque quem brinca com o fogo,
arrisca-se a queimar o rabo.
Quando alguém de novo
assiste às nossas brincadeiras, ele explica baixinho, como se estivesse a traduzir,
“somos muito amigos…”. E somos. Adoro quando ele me dá um abraço apertado e me
diz a sorrir: “olha o meu grande amigo…”
O Abel vive hoje na
Santa Casa da Misericórdia. Que é mesmo santa, mesmo grande casa e tem a enorme
misericórdia de albergar estes homens como ele, filhos de Marvão perdidos. Lá
come, dorme e veste. Lá é bem tratado. Isso vê-se. Isso sente-se quando se fala
com ele.
Não resisto a contar
e a publicar esta história porque é mesmo deliciosa e sem maldade.
Eu sei que ele faz 66
anos a 23 de Outubro. Sei porque ele mo disse. E quando me disse a data
cravou-me logo para lhe oferecer um relógio.
Eu tenho em casa uma coleção
considerável de Swatches. Adoro relógios e na impossibilidade de ter um caro,
tenho comprado estes são mais económicos e sempre marcam momentos da minha
vida. Não passam de 10. Mas sempre são alguns e como sou vaidoso, reconheço-o,
vou variando diariamente, consoante a toilette.
Há dias, o Abel
disse-me que precisava de uma pilha para o antigo dele que tinha deixado de
trabalhar. “Mas para quê é que tu queres uma pilha nesse relógio se te vou
oferecer um nos anos, Abel ?! E o Gonçalo já me disse que te ofereceu um!”
“Mentira! É mentira.”
Respondeu. “Ele disse que m’ia dar um mas não deu. Diz que não tem pilha.”
“Ai Abel, Abel que és
tão chato!” e lá vim eu com o bom do relógio à Casa Moura, na hora do almoço. A
pobre da Susana fartou-se de tentar mas não conseguiu abrir a caixa do aparelho.
Ela mostrou-me e o relógio tinha uma grande pancada na caixa atrás que não
deixava mudar a pilha. Tentou, tentou com uma navalha mas nada. Aquilo deve ter
sido feito numa noite de vida artística quando eu o conheci, há muitos, muitos
anos atrás. Num baile qualquer e quando as cervejas o tornavam por vezes mau e
agressivo por ser gozado pelos outros, pelos homens maus, por ser o elo mais
fraco.
Disse-lhe então para
deitar o relógio fora, que não tinha arranjo, que eu tinha tentado mas não fui
capaz, que o tinha levado à loja mas não se tinha safado na autópsia. “Deixa
Abel… não fiques triste. Eu vou –te oferecer um. Já não é novo, mas é meu, jóia
de família e uma recordação antiga. (Uma mentirinha para fazer alguém ainda mais
feliz não é pecado.) E é especialmente dedicado a ti, Abel!
O tempo passou e como
ele não foi insistindo, pensei que a febre tinha terminado.
Até há dias. Eu vinha
almoçar e ele mandou-me parar o carro junto à GNR. “O que é que se passa, patrão?”,
perguntei-lhe.
Com um ar muito
triste. “É o relógio… Não funciona mesmo. Nada!”
“Mas qual é a
urgência do relógio, Abel?!? Tu não tens de cumprir horas porque não trabalhas.
Não tens de ir buscar os putos à escola, para quê o raio do relógio se tu és
livre?”
“Eaaaaaaahhh… para
saber as horas!”
Boa resposta! “Então
fica descansado que eu trago-te um logo lá de casa. Mas olha que era aquele que
era para te dar nos anos! Se to dou agora, depois não te dou nada!”
“Tá bem! Trás lá! A
que horas vais ao correio?”, perguntou.
“Eu não sei se hoje há
correio para ir levar. Mas deixa lá que eu não me esqueço e quando sair vou ver
de ti ao Jorge.”
“A que horas?”
“5 e meia, Abel. 5 e meia.”
E havia mesmo correio
para ir levar. Não me esqueci do relógio, que levei no bolso escondido e ia à
espera de o encontrar. Mas nada.
Quando chego ao bar “o
Castelo” lá estava ele, à porta.
“Ai meu menino, tenho
aqui uma prendinha guardada para ti…”, disse-lhe.
Adorou. Agarrou-se
logo a mim. Tirámos uma foto para a posteridade, para o meu álbum de
fotografias, para meter na pasta “Amigos”. Se as vir aqui no blogue, fica todo
contente. No outro dia mostrei-lhe a dos óculos escuros através do wi-fi do bar
e ele disse logo ao Fernando: “tás a ver coméque é! Aqui no computador?” (todo
convencido!)
O meu primo Jorge,
como é bom homem, quis assinalar o momento solene da prenda com uma bebida
oferta da casa. E levantou o castigo ao Abel que estava proibido de beber
álcool ali. Alguma boa deve ter feito. Um tintinho para ele e uma imperialzinha
cá para mim. Oferta da casa, uma categoria! Estava eu a refrescar-me com aquela
delícia quando me engasguei de tanto rir e ia ficando sem ar para respirar.
Estava eu a dar um gole quando o Abel me pergunta com a maior desfaçatez:
“Então e agora nos anos,
o que é que me dás?”
Quando consegui falar,
disse: “Ó Abel, por mais que eu te dê, tu nunca estás satisfeito!”
“Pssssssssshiiiiiiiiiiiiiiiuuuuuuuuuuu”
(metendo a mão na boca para me calar)
“Se te dou o relógio,
que é um bom relógio e é caro e é igual ao meu, queres mais coisas. As minhas
camisas estão-te grandes. A minha roupa está-te larga. Mas deixa lá que eu
hei-de ver se o meu sogro que é assim pouco mais alto que tu lá tem alguma coisa
de sobra.
Este Abel é demais…
(olhando em volta) se te dou corda metes-me uma coleira e andas-me a passear
como o Boris ao cabo Simão!
Fazer feliz faz-me
feliz.
Ser bom não custa! E
vale tanto a pena…
Dá tanto sentido à
vida. J
Lindo, mostrando o novo exemplar. Parece uma capa de revista masculina. Ainda mo levam p'ra modelo... |
Argumentando com o Jorge já com o bébé no braço esquerdo... |
2 comentários:
O teu bom coração, a tua sensibilidade sempre presente, a tua maneira de ser e estar.Bj grande-
Ficaram ambos felizes, o Abel com o seu relógio novo e o Pedro por proporcionar tamanha alegria.
Um abraço
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