domingo, 23 de fevereiro de 2014

O Dia dos Compadres


O Dia dos Compadres é um dia importante no calendário da minha vida.

Habituei-me desde criança a ver este como um dia grande. Um dia de amizade, de comunidade, de confraternização, influenciado pelo meu pai que vivia este dia em pleno. Fazia sempre questão de ir aos compadres de Marvão e levar os companheiros da Beirã para uma noite de convívio, farra e folia que terminava sempre madrugada adentro. Nem interessava se quem o acompanhava eram padrinhos de alguém ou não. Pouco interessava se eram compadres. Naquela altura era um convívio de machos e os compadres eram todos. Bastava ser macho e querer alinhar, para ir. De boina basca enfiada na cabeça e com a guitarra sempre às costas, ajudava a festa como poucos. Se calhar como nenhum outro. Quem o acompanhava nesses tempos áureos da sua boémia sabe bem do que falo. No outro dia perguntei ao meu primo Carlos junto à muralha onde vimos o por do sol quando saí do serviço, se ia aos compadres. “Nunca mais fui desde que o teu pai morreu.” Será jura, será birra? Para ele, se calhar é como pensar num jogo de futebol onde falta a bola, ou o árbitro, se quiserem. Deixa de fazer sentido.
                                                                     
Apesar de ter presenciado pouco essas atuações (pela diferença de idades), também senti que o jantar dos compadres deixou de ter aquele élan sem ele. Comecei a ir há alguns anos quando morava em Marvão e quando mudei para Santo António sempre insisti comigo em não faltar (por ser filho de quem era). Mas de festa dos compadres, de fados, guitarradas, copos e animação noite dentro já havia pouco. Ou nada. Cada um trazia o seu talher, comia, marchava, boa noite, até amanhã se Deus quiser e dá cá um o preço exorbitante para a farinheira que se comia. Diz que era assim porque se tinha de pagar às mulheres da cozinha. Está bem, abelha…

Como não sou como cantava o Júlio Iglesias de “tropezar de nuevo con la misma piedra” e como o dia de compadres é o mesmo do Algarve até ao Minho, mudei-me. Não fui para tão longe quanto isso mas como o meu amigo Sérgio Bernardo começou a organizar um jantar para os da terra que não estavam para ir lá acima gastar gasolina e andar a fugir do balão, passei a alinhar. Era uma alternativa. Uma boa alternativa.

È óbvio que para mim não era a solução final. Essa seria sempre voltar a ter o tradicional Jantar dos Compadres como era dantes, em Marvão que é a sede do concelho. Sabendo que já nunca poderia ser com o João Sobreiro, haveríamos de o viver como ele o vivia. A solução para recuperar a glória dos velhos tempos seria dar a oportunidade aos restaurantes dos diferentes pontos do concelho de o organizarem aleatoriamente. Não por concurso, não por guerra de preços porque por aí os mais pequenos seriam sempre engolidos, mas dando oportunidade de nos reunirmos no nosso concelho que é a nossa casa que alberga cada vez menos gente, dando hipótese a um de cada vez. Umas vezes melhor, outras não tão bem. Mas de todos e para todos.

Para que isso fosse possível, teria de ser a Câmara Municipal de Marvão, entidade que nos tutela, a arregaçar as mangas e a falar por todos. Mas parece que a Câmara agora é Município e está mais preocupada com outras coisas que não aquelas que nos preocupam a nós que aqui vivemos. Há horários a cumprir quase todos dias às 9h e às 16h a caminho de Portalegre e não é preciso dizer mais nada porque para bom entendedor (os meus leitores) meia palavra basta e não gosto aqui de peixeiradas na taberna senão fica aqui um bafio a sardinha que não se pode.

O dia dos compadres é importante para mim por isso. Mas é também ainda mais importante ainda porque foi no dia 20 de Fevereiro de 2000, há 14 anos que me apresentei como estagiário no Serviço de Finanças de Nisa e comecei a minha carreira na casa fiscal onde estou. Na altura, estava em Castelo Branco a trabalhar na Amatoscar-Opel e soube pela minha Cristina que me tinham chamado das finanças. Como o tempo de antiguidade contava e quanto mais depressa me apresentasse, melhor, fiz os contatos, dei as explicações com agradecimentos a quem as merecia (justificando a celeridade da mudança que já estava prevista e anunciada), não perdi mais tempo e como ficava de caminho… apresentei-me.

O serviço de finanças de Nisa era naquela altura uma repartição e tinha imensos funcionários. Uns 7 ou 8. Era um grande edifício com uma enorme escadaria em mármore. Subi-as pela primeira vez pensando nos degraus da minha vida e quando cheguei lá acima tinha muitas secretárias, muita gente, parecia um aeroporto. Entrei, temeroso, a apalpar terreno e volta-se o meu querido Tonho Joaquim que tinha entrado à minha frente e deve ter regressado de beber o cafezinho naquela que era chamada a 2ª repartição, a Colmeia, o café do Senhor Joaquim, o “Montesinho”.

- “Diga se faz favor”, com os óculos ao fundo do nariz.

- “Eu fui admitido no estágio e vinha-me apresentar”.

- “É só um momento que vou avisar o chefe”.

Foi atravessando a sala e eu fiquei assim com ar aparvalhado a tentar-me arranjar para causar a melhor impressão possível. Senti-me assim como um novo membro da cosa nostra que aguarda para ser visto pelo Padrinho. Entrei no gabinete e encarei com um dos homens que marcaram a minha vida. Pelo humor e pela forma como via o mundo. Delfino da Graça Bento Amaro, atleta da caneta, como gostava de se apresentar porque já era chefe desde muito novo, em Lisboa.

Primeiras impressões, quem é que eu era, de onde era e logo percebemos que a afinidade vinha de trás. O meu pai, mais uma vez. Sempre ele. Tinha sido colega no Liceu de Castelo Branco. “O seu pai era esse?!?!? O Sobreiro? O baterista? Epá…. Isso era levado da diabo.” O meu pai era muito mais velho mas vieram logo à baila as brigas em que andava sempre metido, as noitadas com os amigos que eram mais que muitas e os namoricos com as cachopas que não largavam o Ringo Star de Castelo Branco, da banda recentemente homenageada pela Câmara Municipal. Que era feito dele…”.

Eu contei-lhe que já não existia e ganhei logo ali um pai. Nas finanças e na vida. Almoços lá em casa como se tivesse sido aperfilhado. Grandes conversadas. Grande companheiro. Nesse dia dos compadres convidou-me para tomar um copo para celebrarmos o dia. Aceitei de bom grado para quebrar o gelo. Apresentou-me aos colegas, apresentou-me a todos os serviços públicos e ensinou-me que Nisa é mesmo com lhe chamam: o centro do mundo. Uma coisa de categoria. Digna dele.

Chegamos à Colmeia e perguntou-me o que tomava. Como era de manhã, pedi uma água. Primeira tirada emblemática: “está a ouvir? Faça sempre isso! Nunca beba!”

- “E você sr. Delfino?”, perguntaram-lhe.

Um clássico na resposta. Como o “Play it again, Sam” do Humphrey Bogart no Casablanca. “Um copo de vinho branco natural traçado com gasosa fresca”. Aposto que o Rui Miguel Pescada Ribeirinho Pinheiro, o meu amor Bitchi, o tanganho que se me juntou dias depois para ajudar a criar a mais mítica dupla de estagiários da história da vila (mais por causa dele), disse esta frase de cor ao ler isto. E a frase fazia sentido. Claro que fazia sentido. Se pensarem bem nisso, o Chefe tinha razão, como sempre tinha. Se se misturasse o vinho branco fresco com a gasosa natural não era bem a mesma bebida. Não percebem logo?!?!? Eu percebo que haja quem não perceba porque a cultura, por mais que se estude, quando não nasce com a pessoa… é complicado...

Conversa para aqui, conversa para ali e sentia-me permanentemente a ser estudado. Portanto, “olho vivo, pé ligeiro”. Entre risos, conversas, estórias passadas nos últimos dias… uma pergunta de chofre: “Pedro Alexandre (como sempre me tratava. Assim com os dois seguidos, como só a minha mãe quando estava zangada comigo”), sabe quem foi Frei Luca Pacioli?”

“Ó senhor Delfino… Não estou a ver…”

Com o ar triunfante digno de um Chefe, de quem sabe mais que eu: “Frei Luca Pacioli foi o inventor das partidas dobradas, o pai da contabilidade moderna. Diz esta que quem deve, tem a haver.”

Satisfeito com o ensinamento, memorizei e sorri. Nisto chega o Marquês para tomar café e meteu-se outra conversa qualquer. Muitos minutos depois, já os três juntos, decidiu fazer uma coisa que adorava: meter os outros no lugar para poder brilhar ainda mais.

“Ó Marquês, você sabe quem foi Frei Luca Pacioli?”

Enrolando um cigarrinho… “Eu chefe? Sei lá!”, porque isso não lhe interessava para nada e o Delfino era um dicionário de expressões e histórias fantásticas, se se quisesse ler nele. Para quem não queria era um chato e as pessoas desligavam logo. Um “sei lá” assim seco e a ligar logo a outra conversa qualquer.

“E você, Pedro Alexandre? Sabe quem foi Frei Luca Pacioli?”

Não estava à espera de ter um flanco assim todo aberto para avançar defesa adentro e fazer logo golo na primeira oportunidade mas avancei com precaução e sem grande espalhafato que podia espantar a presa. “Frei Luca Pacioli? Oh Chefe, então (com ar convencido) foi o inventor das partidas dobradas e hoje em dia é reconhecido pela comunidade científica (meti-lhe uns pózinhos para refinar a coisa) o pai da contabilidade moderna. Há quem discorde mas eu acho que é, sem dúvida.”

Comentou para o lado que eu ouvi: “epá, este indivíduo tem uma cultura extraordinária.”

E prontos, assim começou uma bela história de amizade com um homem que considero uma grande referência na minha Vida. Marcou.

Quanto ao dia… a escolha dos meus compadres pode não ter sido muito inteligente da minha parte, nem da deles, mas há razões que a razão desconhece. Foi uma reciprocidade que blinda a relação porque é mútua. Ser compadre é uma grande responsabilidade porque a gente sabe que se um dos pais faltar, o padrinho tem de lá estar para o que der e vier. Eu vivo assim e sou compadre com consciência. Sou padrinho da minha sobrinha Maria que amo como filha, pela parte do sangue da minha mulher; e padrinho do meu sobrinho João, rei judoca dos Algarves pela parte do meu irmão. Poderíamos ter chamado grandes amigos para a família com este título mas assim fica guardado a sete chaves que é mais tranquilo. Por isso, a Leonor tem como padrinho o meu irmão, na altura solteiro, sendo madrinha a tia Cali; e a Alice, os meus cunhados. Estão bem entregues e acho que vice-versa, não será?

Por tudo isto, vivi o dia dos compadres com grande alegria e saudade. Lamentei não ter os meus dois compadres junto a mim, mas a vida é mesmo assim. Se me deixassem beber, arrumava-lhe um tinto por cada um. Assim, foi uma cerveja preta sem álcool por cada um. No Sérgio, mais uma vez coube-me a honra de fazer um minuto de silêncio por ele. Esteja lá onde estiver, sei que apreciou. Eu, resignado com a sua falta, também.


















1 comentário:

Helena Barreta disse...

Tanto o meu filho como os meus sobrinhos têm como madrinhas as tias.

Um abraço