O Dia dos Compadres é um dia
importante no calendário da minha vida.
Habituei-me desde criança a ver este como
um dia grande. Um dia de amizade, de comunidade, de confraternização, influenciado
pelo meu pai que vivia este dia em pleno. Fazia sempre questão de ir aos
compadres de Marvão e levar os companheiros da Beirã para uma noite de
convívio, farra e folia que terminava sempre madrugada adentro. Nem interessava
se quem o acompanhava eram padrinhos de alguém ou não. Pouco interessava se
eram compadres. Naquela altura era um convívio de machos e os compadres eram
todos. Bastava ser macho e querer alinhar, para ir. De boina basca enfiada na
cabeça e com a guitarra sempre às costas, ajudava a festa como poucos. Se
calhar como nenhum outro. Quem o acompanhava nesses tempos áureos da sua boémia
sabe bem do que falo. No outro dia perguntei ao meu primo Carlos junto à
muralha onde vimos o por do sol quando saí do serviço, se ia aos compadres.
“Nunca mais fui desde que o teu pai morreu.” Será jura, será birra? Para ele, se
calhar é como pensar num jogo de futebol onde falta a bola, ou o árbitro, se
quiserem. Deixa de fazer sentido.
Apesar de ter presenciado pouco essas
atuações (pela diferença de idades), também senti que o jantar dos compadres
deixou de ter aquele élan sem ele. Comecei a ir há alguns anos quando morava em
Marvão e quando mudei para Santo António sempre insisti comigo em não faltar
(por ser filho de quem era). Mas de festa dos compadres, de fados, guitarradas,
copos e animação noite dentro já havia pouco. Ou nada. Cada um trazia o seu
talher, comia, marchava, boa noite, até amanhã se Deus quiser e dá cá um o preço
exorbitante para a farinheira que se comia. Diz que era assim porque se tinha
de pagar às mulheres da cozinha. Está bem, abelha…
Como não sou como cantava o Júlio
Iglesias de “tropezar de nuevo con la misma piedra” e como o dia de compadres é
o mesmo do Algarve até ao Minho, mudei-me. Não fui para tão longe quanto isso
mas como o meu amigo Sérgio Bernardo começou a organizar um jantar para os da
terra que não estavam para ir lá acima gastar gasolina e andar a fugir do
balão, passei a alinhar. Era uma alternativa. Uma boa alternativa.
È óbvio que para mim não era a solução
final. Essa seria sempre voltar a ter o tradicional Jantar dos Compadres como
era dantes, em Marvão que é a sede do concelho. Sabendo que já nunca poderia
ser com o João Sobreiro, haveríamos de o viver como ele o vivia. A solução para
recuperar a glória dos velhos tempos seria dar a oportunidade aos restaurantes
dos diferentes pontos do concelho de o organizarem aleatoriamente. Não por
concurso, não por guerra de preços porque por aí os mais pequenos seriam sempre
engolidos, mas dando oportunidade de nos reunirmos no nosso concelho que é a
nossa casa que alberga cada vez menos gente, dando hipótese a um de cada vez. Umas
vezes melhor, outras não tão bem. Mas de todos e para todos.
Para que isso fosse possível, teria de
ser a Câmara Municipal de Marvão, entidade que nos tutela, a arregaçar as
mangas e a falar por todos. Mas parece que a Câmara agora é Município e está
mais preocupada com outras coisas que não aquelas que nos preocupam a nós que aqui
vivemos. Há horários a cumprir quase todos dias às 9h e às 16h a caminho de
Portalegre e não é preciso dizer mais nada porque para bom entendedor (os meus
leitores) meia palavra basta e não gosto aqui de peixeiradas na taberna senão
fica aqui um bafio a sardinha que não se pode.
O dia dos compadres é importante para
mim por isso. Mas é também ainda mais importante ainda porque foi no dia 20 de
Fevereiro de 2000, há 14 anos que me apresentei como estagiário no Serviço de
Finanças de Nisa e comecei a minha carreira na casa fiscal onde estou. Na
altura, estava em Castelo Branco a trabalhar na Amatoscar-Opel e soube pela
minha Cristina que me tinham chamado das finanças. Como o tempo de antiguidade
contava e quanto mais depressa me apresentasse, melhor, fiz os contatos, dei as
explicações com agradecimentos a quem as merecia (justificando a celeridade da
mudança que já estava prevista e anunciada), não perdi mais tempo e como ficava
de caminho… apresentei-me.
O serviço de finanças de Nisa era
naquela altura uma repartição e tinha imensos funcionários. Uns 7 ou 8. Era um
grande edifício com uma enorme escadaria em mármore. Subi-as pela primeira vez
pensando nos degraus da minha vida e quando cheguei lá acima tinha muitas
secretárias, muita gente, parecia um aeroporto. Entrei, temeroso, a apalpar
terreno e volta-se o meu querido Tonho Joaquim que tinha entrado à minha frente
e deve ter regressado de beber o cafezinho naquela que era chamada a 2ª
repartição, a Colmeia, o café do Senhor Joaquim, o “Montesinho”.
- “Diga se faz favor”, com os óculos
ao fundo do nariz.
- “Eu fui admitido no estágio e
vinha-me apresentar”.
- “É só um momento que vou avisar o
chefe”.
Foi atravessando a sala e eu fiquei
assim com ar aparvalhado a tentar-me arranjar para causar a melhor impressão
possível. Senti-me assim como um novo membro da cosa nostra que aguarda para
ser visto pelo Padrinho. Entrei no gabinete e encarei com um dos homens que
marcaram a minha vida. Pelo humor e pela forma como via o mundo. Delfino da
Graça Bento Amaro, atleta da caneta, como gostava de se apresentar porque já
era chefe desde muito novo, em Lisboa.
Primeiras impressões, quem é que eu
era, de onde era e logo percebemos que a afinidade vinha de trás. O meu pai,
mais uma vez. Sempre ele. Tinha sido colega no Liceu de Castelo Branco. “O seu
pai era esse?!?!? O Sobreiro? O baterista? Epá…. Isso era levado da diabo.” O
meu pai era muito mais velho mas vieram logo à baila as brigas em que andava
sempre metido, as noitadas com os amigos que eram mais que muitas e os
namoricos com as cachopas que não largavam o Ringo Star de Castelo Branco, da
banda recentemente homenageada pela Câmara Municipal. Que era feito dele…”.
Eu contei-lhe que já não existia e
ganhei logo ali um pai. Nas finanças e na vida. Almoços lá em casa como se
tivesse sido aperfilhado. Grandes conversadas. Grande companheiro. Nesse dia
dos compadres convidou-me para tomar um copo para celebrarmos o dia. Aceitei de
bom grado para quebrar o gelo. Apresentou-me aos colegas, apresentou-me a todos
os serviços públicos e ensinou-me que Nisa é mesmo com lhe chamam: o centro do
mundo. Uma coisa de categoria. Digna dele.
Chegamos à Colmeia e perguntou-me o
que tomava. Como era de manhã, pedi uma água. Primeira tirada emblemática:
“está a ouvir? Faça sempre isso! Nunca beba!”
- “E você sr. Delfino?”, perguntaram-lhe.
Um clássico na resposta. Como o “Play
it again, Sam” do Humphrey Bogart no Casablanca. “Um copo de vinho branco
natural traçado com gasosa fresca”. Aposto que o Rui Miguel Pescada Ribeirinho
Pinheiro, o meu amor Bitchi, o tanganho que se me juntou dias depois para
ajudar a criar a mais mítica dupla de estagiários da história da vila (mais por
causa dele), disse esta frase de cor ao ler isto. E a frase fazia sentido.
Claro que fazia sentido. Se pensarem bem nisso, o Chefe tinha razão, como
sempre tinha. Se se misturasse o vinho branco fresco com a gasosa natural não
era bem a mesma bebida. Não percebem logo?!?!? Eu percebo que haja quem não
perceba porque a cultura, por mais que se estude, quando não nasce com a
pessoa… é complicado...
Conversa para aqui, conversa para ali
e sentia-me permanentemente a ser estudado. Portanto, “olho vivo, pé ligeiro”.
Entre risos, conversas, estórias passadas nos últimos dias… uma pergunta de
chofre: “Pedro Alexandre (como sempre me tratava. Assim com os dois seguidos, como
só a minha mãe quando estava zangada comigo”), sabe quem foi Frei Luca Pacioli?”
“Ó senhor Delfino… Não estou a ver…”
Com o ar triunfante digno de um Chefe,
de quem sabe mais que eu: “Frei Luca Pacioli foi o inventor das partidas
dobradas, o pai da contabilidade moderna. Diz esta que quem deve, tem a haver.”
Satisfeito com o ensinamento, memorizei
e sorri. Nisto chega o Marquês para tomar café e meteu-se outra conversa qualquer.
Muitos minutos depois, já os três juntos, decidiu fazer uma coisa que adorava:
meter os outros no lugar para poder brilhar ainda mais.
“Ó Marquês, você sabe quem foi Frei
Luca Pacioli?”
Enrolando um cigarrinho… “Eu chefe?
Sei lá!”, porque isso não lhe interessava para nada e o Delfino era um
dicionário de expressões e histórias fantásticas, se se quisesse ler nele. Para
quem não queria era um chato e as pessoas desligavam logo. Um “sei lá” assim
seco e a ligar logo a outra conversa qualquer.
“E você, Pedro Alexandre? Sabe quem
foi Frei Luca Pacioli?”
Não estava à espera de ter um flanco
assim todo aberto para avançar defesa adentro e fazer logo golo na primeira
oportunidade mas avancei com precaução e sem grande espalhafato que podia
espantar a presa. “Frei Luca Pacioli? Oh Chefe, então (com ar convencido) foi o
inventor das partidas dobradas e hoje em dia é reconhecido pela comunidade
científica (meti-lhe uns pózinhos para refinar a coisa) o pai da contabilidade
moderna. Há quem discorde mas eu acho que é, sem dúvida.”
Comentou para o lado que eu ouvi:
“epá, este indivíduo tem uma cultura extraordinária.”
E prontos, assim começou uma bela
história de amizade com um homem que considero uma grande referência na minha
Vida. Marcou.
Quanto ao dia… a escolha dos meus
compadres pode não ter sido muito inteligente da minha parte, nem da deles, mas
há razões que a razão desconhece. Foi uma reciprocidade que blinda a relação
porque é mútua. Ser compadre é uma grande responsabilidade porque a gente sabe
que se um dos pais faltar, o padrinho tem de lá estar para o que der e vier. Eu
vivo assim e sou compadre com consciência. Sou padrinho da minha sobrinha Maria
que amo como filha, pela parte do sangue da minha mulher; e padrinho do meu
sobrinho João, rei judoca dos Algarves pela parte do meu irmão. Poderíamos ter
chamado grandes amigos para a família com este título mas assim fica guardado a
sete chaves que é mais tranquilo. Por isso, a Leonor tem como padrinho o meu
irmão, na altura solteiro, sendo madrinha a tia Cali; e a Alice, os meus
cunhados. Estão bem entregues e acho que vice-versa, não será?
Por tudo isto, vivi o dia dos
compadres com grande alegria e saudade. Lamentei não ter os meus dois compadres
junto a mim, mas a vida é mesmo assim. Se me deixassem beber, arrumava-lhe um
tinto por cada um. Assim, foi uma cerveja preta sem álcool por cada um. No
Sérgio, mais uma vez coube-me a honra de fazer um minuto de silêncio por ele.
Esteja lá onde estiver, sei que apreciou. Eu, resignado com a sua falta,
também.
1 comentário:
Tanto o meu filho como os meus sobrinhos têm como madrinhas as tias.
Um abraço
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