quinta-feira, 26 de janeiro de 2023

O Carlos (Bugalhão) já foi, na frente...


Numa foto ultra-pirosa, daquelas tiradas por fotógrafos que não largam as mesas feitos sanguessugas a chuparem dinheiro, que foi vergonha muitos anos depois, e hoje sabe tão bem ver, numa franganada na Guia, certamente há mais de 25 anos. O Carlos naquela altura usava um bigode bem preto ao melhor estilo mexicano. Saudades, ópa...

O telefone tocou de tarde quando estava a trabalhar, e o número era desconhecido, daqueles que geralmente não tenho por hábito atender, receoso pelas manigâncias das tecnologias de hoje me dia que vemos por todo o lado, do tipo “chamadas do estrangeiro a cobrar um balúrdio no destinatário”, esquemas em pirâmide, e outros enredos do género.

 

Aquele, não sei explicar porquê, atendi.

 

- Sou “não sei quem”, (já não me consigo lembrar, acho que desliguei a ficha) a vizinha da Fatinha.

 

Espequei-me.

Fatinha… Lisboa… já foi…. Pensei.

 

- Já a meto a falar com ela, disse.

 

Respirei fundo mas, ainda assim, fiquei em suspenso.

 

- O Carlos…, disse ela com voz trémula.

- O que foi Fatinha?

-  Balbuciou qualquer coisa terminada em …eu

. Sim?

- Morreu.

 

E aqui cai sempre a ficha, não é?

 

Todos nós vamos aprendendo ao longo da vida que não há desfecho mais certo que este. Daqui ninguém sai vivo, mas apesar de todos sabermos isso, temos uma dificuldade imensa em lidar com a efemeridade da vida, com a impossibilidade da nossa eternidade, como se o mundo não pudesse continuar despois de partirmos sabe-se lá para onde, quando todos temos mais que a certeza que é assim que vai ser.

 

- Mas como?!? Estava doente?

A velha história que já imaginava, mas não queria acreditar que pudesse ser de facto assim: muita dificuldade em respirar, uma respiração sempre ofegante, como se tivesse sempre acabado de correr os 110 metros barreiras em loop, dificuldades em movimentar-se, mas ainda assim… a fumar, refém desse vício completamente tenebroso, que pode assumir proporções absurdas e malévolas que chegam a roçar a demência.

 

Fumou até se ficar. Ele, como ela… que foram sempre dois parceiros insaciáveis à mercê da dependência do fumo, e cafés.

 

A minha madrinha tem 72, como a minha mãe. Ele seria um pouco mais velho, e fizeram tooooooooooooooooooooooooooda a vida assim: a fumar e a beber cafés como se não houvesse amanhã nos calendários. Foram 50 e muitos anos, talvez mais perto dos 60 que outra coisa qualquer, com este vertiginoso modo de vida, que não poderia acabar bem. Imagino aqueles pulmões… com a quantidade de nicotina, e substancia tóxicas que já processaram.

 

Conheci o Carlos quando era puto (14, 15?), e regressou de Lisboa a Marvão, que era a sua terra, depois de ter por lá vivido, casado e gerado descendência. Começou a deitar a asa à Fatinha que, solteira e levando uma vida errante e solitária, muito amparada na amizade da querida Lurdes Efe, cedeu aos seus encantos.

 

Quem não viu isso com os melhores olhos foi a minha tia Maria, sua mãe, que lidou muito mal com o facto da filha única casar assim, não com um esbelto jovem solteiro da sua idade, mas com alguém com um passado às costas e sobretudo, com uma relação complicada com o álcool.

 

O Carlos foi mais Homem que isso tudo, alinhou num tratamento com o saudoso Dr. Pedro, que sucumbiu bem jovem vergado por um cancro, e nunca mais tocou no álcool, porra! Uma cena mesmo assim do outro mundo! Nem nas provas mais difíceis que se possa imaginar, como a mesa longuíssima de Natal da Covilhã, cheia de convivas, belos petiscos e vinho com fartura, ele largou o Sumol, a Cola ou o RIcal.

 

O Carlos adorava Marvão, o Centro Cultural e o ténis de mesa, um desporto onde era mesmo craque, tendo até participado em inúmeros torneios por aqui.

 

Nessa fase mais difícil, trabalhou na Câmara, quando andou com o dumper, e depois conseguiu entrar na Pousada de Marvão, de onde se veio a reformar, já há algum tempo.

 

Eu recordo que perdi um Amigo, que esteve sempre presente nas fases mais difíceis da minha vida e que nunca faltou, como quando fui operado às costas, ou quando estive em coma durante mês e meio depois do acidente de Vespa, como quando lhe pedi que me tirasse de lá porque os gajos “limpavam o sebo” aos doentes, que era a forma que eu encontrava para explicar como eles calavam os que de noite não sossegavam e se silenciavam; ou como se preocupava em dar uma volta à noite com a Cristina e a Fatinha, para desanuviar do stress de me verem ali assim, ligado às máquinas.

 

Foi cedo demais, poderão pensar muitos. A verdade é que poderia ter ainda muitos anos para viver com qualidade, caso tivesse saúde mas… os que não fumam também morrem, muitas vezes bem mais cedo, até.

 

Levou-a como quis!, e fica o consolo disso, até porque acredito que todos trazemos um prazo, só que a magia disto tudo, é vivermos sem pensar no nosso.

 

Por vontade da família, o Carlos voltou ao pó, de que todos somos feitos, estado ao qual todos iremos regressar.

 

Que esteja em paz, rezo eu, entre o esplendor da luz que nunca se apaga.

 

Até um dia, Amigo!

 

(Não vai haver mais nenhum dia que coma pão de alho, que não me lembre de ti...)


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