O
telefone tocou de tarde quando estava a trabalhar, e o número era desconhecido,
daqueles que geralmente não tenho por hábito atender, receoso pelas manigâncias
das tecnologias de hoje me dia que vemos por todo o lado, do tipo “chamadas do
estrangeiro a cobrar um balúrdio no destinatário”, esquemas em pirâmide, e
outros enredos do género.
Aquele,
não sei explicar porquê, atendi.
-
Sou “não sei quem”, (já não me consigo lembrar, acho que desliguei a ficha) a
vizinha da Fatinha.
Espequei-me.
Fatinha…
Lisboa… já foi…. Pensei.
-
Já a meto a falar com ela, disse.
Respirei
fundo mas, ainda assim, fiquei em suspenso.
- O
Carlos…, disse ela com voz trémula.
- O
que foi Fatinha?
-
Balbuciou qualquer coisa terminada em …eu
.
Sim?
-
Morreu.
E
aqui cai sempre a ficha, não é?
Todos
nós vamos aprendendo ao longo da vida que não há desfecho mais certo que este.
Daqui ninguém sai vivo, mas apesar de todos sabermos isso, temos uma
dificuldade imensa em lidar com a efemeridade da vida, com a impossibilidade da
nossa eternidade, como se o mundo não pudesse continuar despois de partirmos
sabe-se lá para onde, quando todos temos mais que a certeza que é assim que vai
ser.
-
Mas como?!? Estava doente?
A
velha história que já imaginava, mas não queria acreditar que pudesse ser de
facto assim: muita dificuldade em respirar, uma respiração sempre ofegante,
como se tivesse sempre acabado de correr os 110 metros barreiras em loop,
dificuldades em movimentar-se, mas ainda assim… a fumar, refém desse vício
completamente tenebroso, que pode assumir proporções absurdas e malévolas que
chegam a roçar a demência.
Fumou
até se ficar. Ele, como ela… que foram sempre dois parceiros insaciáveis à
mercê da dependência do fumo, e cafés.
A
minha madrinha tem 72, como a minha mãe. Ele seria um pouco mais velho, e
fizeram tooooooooooooooooooooooooooda a vida assim: a fumar e a beber cafés
como se não houvesse amanhã nos calendários. Foram 50 e muitos anos, talvez
mais perto dos 60 que outra coisa qualquer, com este vertiginoso modo de vida,
que não poderia acabar bem. Imagino aqueles pulmões… com a quantidade de
nicotina, e substancia tóxicas que já processaram.
Conheci
o Carlos quando era puto (14, 15?), e regressou de Lisboa a Marvão, que era a
sua terra, depois de ter por lá vivido, casado e gerado descendência. Começou a
deitar a asa à Fatinha que, solteira e levando uma vida errante e solitária,
muito amparada na amizade da querida Lurdes Efe, cedeu aos seus encantos.
Quem
não viu isso com os melhores olhos foi a minha tia Maria, sua mãe, que lidou
muito mal com o facto da filha única casar assim, não com um esbelto jovem
solteiro da sua idade, mas com alguém com um passado às costas e sobretudo, com
uma relação complicada com o álcool.
O
Carlos foi mais Homem que isso tudo, alinhou num tratamento com o saudoso Dr.
Pedro, que sucumbiu bem jovem vergado por um cancro, e nunca mais tocou no
álcool, porra! Uma cena mesmo assim do outro mundo! Nem nas provas mais
difíceis que se possa imaginar, como a mesa longuíssima de Natal da Covilhã,
cheia de convivas, belos petiscos e vinho com fartura, ele largou o Sumol, a
Cola ou o RIcal.
O
Carlos adorava Marvão, o Centro Cultural e o ténis de mesa, um desporto onde
era mesmo craque, tendo até participado em inúmeros torneios por aqui.
Nessa
fase mais difícil, trabalhou na Câmara, quando andou com o dumper, e depois
conseguiu entrar na Pousada de Marvão, de onde se veio a reformar, já há algum
tempo.
Eu
recordo que perdi um Amigo, que esteve sempre presente nas fases mais difíceis
da minha vida e que nunca faltou, como quando fui operado às costas, ou quando
estive em coma durante mês e meio depois do acidente de Vespa, como quando lhe
pedi que me tirasse de lá porque os gajos “limpavam o sebo” aos doentes, que
era a forma que eu encontrava para explicar como eles calavam os que de noite
não sossegavam e se silenciavam; ou como se preocupava em dar uma volta à noite
com a Cristina e a Fatinha, para desanuviar do stress de me verem ali assim, ligado
às máquinas.
Foi
cedo demais, poderão pensar muitos. A verdade é que poderia ter ainda muitos
anos para viver com qualidade, caso tivesse saúde mas… os que não fumam também
morrem, muitas vezes bem mais cedo, até.
Levou-a
como quis!, e fica o consolo disso, até porque acredito que todos trazemos um
prazo, só que a magia disto tudo, é vivermos sem pensar no nosso.
Por
vontade da família, o Carlos voltou ao pó, de que todos somos feitos, estado ao
qual todos iremos regressar.
Que
esteja em paz, rezo eu, entre o esplendor da luz que nunca se apaga.
Até
um dia, Amigo!
(Não vai haver mais nenhum dia que coma
pão de alho, que não me lembre de ti...)
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