quinta-feira, 21 de março de 2024

93...

 


Todas as semanas, com fé devota, certo da certeza do Amor de Mãe que sempre nutriste por mim, caminho para a tua cama para te afagar, te beijar, te pentear os cabelos, te recordar o assobio de família com que o teu pai, o meu avô Sobreiro, vos chamava a todos, para uma reunião de alcateia. O nunca teres tido um outro homem oficial na tua vida, a não ser uma paixão de juventude albicastrense que se perdeu na bruma dos tempos, o nunca teres gerado uma outra, depositou em mim, ao mesmo tempo que carregava nos meus ombros, uma aura de príncipe da tua existência, que a proximidade com que vivemos, ao fundo da rua, um do outro, me recordou a cada dia dessa feliz, e saudosa coabitação. 

 

Nessa Santa Casa onde estás, para a qual tive um dia uma luz que me iluminou o caminho, consegui arranjar-te uma alcofa de fim de vida condigna, como aquela que me garantias nos lençóis de flanela quentes da tua cama, quando o frio da noite aconselhava os meus pais a deixarem-me à tua guarda. Ali, onde estás, tens tido tanto Amor, tanto Carinho, tantas calor das funcionárias que se metem contigo de cada vez que se cruzam comigo, “Ai Cali… quem cá está hoje… o teu menino…” (risos), de mais de 50 anos, com já mais do que aqueles que o teu irmão, meu Pai, alguma vez teve, mas que ali, contigo, junto a ti, me transforma sempre naquele bébé gorducho, muito bem agasalhado em fatinhos de lã, com ar aburguesado, que sempre se sentiu o centro das atenções quando por ali estava, perto de ti.


Eu, com meses, tu com 42...

Se há horas felizes, essa que te encaminhou para ali, foi por certo uma delas, porque em mais nenhum lado conseguiria encontrar um berço onde te alimentem à boca, e te garantam sempre um cheirinho tão agradável, um ar tão satisfeito e descansado, mesmo que o suporte de oxigénio nunca te possa deixar.

 

De todos… fiquei eu, já viste como isto é...

Quis o tempo, e a distância, e a vida… como ela é, que fosse a lamparina que te acompanha sempre como último bastião da família Sobreiro, com o meu escapulário de Nossa Senhora do Carmo, a guiar-te de noite e dia.

 


93 já, Cali, ou Caly, como tu assinavas, num gesto clássico de modernidade. 93 anos, com os 10 últimos vividos aí, numa chegada conjunta com a mana Maria, que partiu na noite seguinte ao desembarque, quero eu recordar que não com o desgosto de ali estar, porque sempre quis foi estar contigo, mas com o descanso de sentir que já não era indispensável para tu estares assim, bem.

 

Já há muito, muito mesmo, que me fui apercebendo que a consciência ia abandonando o corpo que nos habituámos a amar, mas o teu jeito silencioso, elegante, cada vez mais calado, ia encobrindo as falências que só quem partilhava contigo os dias se poderia aperceber mais. Também eu estive “fora” por uns meses, por consequência de erros meus que apenas por proteção divina não me colocaram fora de jogo. Apenas quando regressei lentamente às minhas plenas faculdades, me apercebi realmente do “abismo de esquecimento” onde tinhas caído.







Saber que estás e continuas bem, é realmente a única grande certeza, e valência a que nos podemos agarrar todos os que te queremos tão bem.

 

As perguntas do “porquê assim?”, do “até quando?”, do “porquê ela, quando ele…?”, são aquelas interrogações dos mortais, naturais dos finitos, que apenas uma ordem divina poderá responder, e nesse domínio devemos continuar a manter, apesar de serem tão estranhas e absurdas como estas palavras que insisto em te escrever apesar de saber que nunca as irás ouvir, e servem apenas para saciar o meu egoísmo pueril, e ilusório, de quase tentar conseguir visualizar a tua satisfação se fosses capaz de percebe-las, como se isso fosse possível! (pode ser sentados na marquise das traseiras, no primeiro andar, a dar para o quintal do primo Zé Amieira, onde passámos tantas, tantas, tantas tardes sem fim, sentados à camila de picão… eu, tu, a Ti Bia e a Avózinha, enquanto ela me penteava os caracóis com a canoa que tirava da cabeça, quando eu tinha a minha pousada sobre o tampo, ao quentinho, enquanto (ou)víamos a chuva a cair, lá fora.

 

A fé, a religião, a relação com a divindade, são questões do foro mais pessoal de cada um, e não ter qualquer postura face a elas é também ela própria uma posição a considerar. Qualquer uma que tenhamos pode estar sempre sujeita a alterações, por estarem em constante mutação.

 

Não acreditando em tal coisa como o céu cheio de querubins a tocarem harpas num tom angelical, nem nos mais fundos dos infernos onde as labaredas de lava derretem as almas malignas. Sou mais pelas dimensões de existência, e pela evolução das almas, numa espécie de adaptação da reencarnação, confirmada pela simples constatação de que há algumas (almas) que se sentem tão experientes, vividas, sábias, enquanto que outras há que parecem que foram instantâneas, e acabadas de parir

Sendo assim, e nessa linha, as almas partem… ou quando não fazem cá falta neste mundo dos vivos, a elas, ou a alguém próximo; ou quando são chamadas para outro lugar.

 

Peço sempre para que não tenhas dor, não sofras, não te doa, porque não mereces, e que Deus reserve sempre o melhor para ti, minha Grande e Sempre Amiga, que esteve Sempre por MIM.

 

Parabéns, minha querida Caly. Oxalá tivéssemos uma hora, uma manhã, um dia de lucidez…

Tanto quem havia para contar…


Sem comentários: