As últimas notícias que tive tuas eram tudo menos animadoras. Chegavam-me através do teu irmão e falavam-me de um lento e longo arrastar, do teu estado letárgico, preso à pouca vida que te restava por intermédio das máquinas e de um tubo de oxigénio.
Foi tudo rápido demais.
Lembro-me que faz agora por estas alturas, um ano que tiveste a tua primeira quebra. Eu regressava de um exame das Finanças em Lisboa e soube pelo telefone que não estavas bem.
Liguei para o hospital, lá consegui o contacto do enfermeiro responsável e foi nessa conversa que soube que o cenário era pouco animador.
Não era fácil cumprimentar-te através das luvas… ouvir a nossa voz filtrada pelas máscaras que nos obrigavam a usar. Levei-te a “Bola” e a “Nova Gente” e pareceu-me que dificilmente voltaríamos a falar fora dali. Depois, com a força que era tão tua, arribaste e voltaste a levantar-te.
Saíste e surpreendeste tudo e todos.
Tornaste-te agricultor de mão cheia na horta que tanto estimavas. Trabalhaste os dias inteiros, na dura labuta da vida agrícola, e ainda arranjavas sempre tempo para desenrascar um amigo num biscate.
Montado no motocultivador emprestado, eras rei em trono de pleno direito, sempre sorrindo, com o ar de quem a tinha olhado de frente e lhe tinha conseguido escapar.
Quando vias um amigo por perto, não perdias a oportunidade de mostrares, orgulhoso, a tua produção: as couves e os variados vegetais, as tuas galinhas, os teus coelhos e restante bicharada, e até o porco, gordíssimo, belíssimo e já prometido ao nosso Tomané, Presidente da Junta, para a próxima matança da freguesia. A que não terás a felicidade de ver.
Ainda há dias te ajudei a desenrascar o escoamento da produção de cebolas, com uma cunha bem aplicada a um colega proprietário. A manobra de marketing resultou em cheio. Disse-me depois que eram enormes e de alta qualidade, que te tinha ficado com a mercadoria toda. Vi-o mostrá-las orgulhoso a alguns clientes, “a verdadeira produção do concelho de Marvão!”. Já não comemos é o tal almoço que prometeste se o negócio te corresse bem.
Como nunca mais trarei as tais alfaces que levavas à loja das minhas tias, de propósito para a Leonor, porque sabias que ela tanto as adora.
Nunca sabemos o dia de amanhã, mas na festa dos teus anos, tive a sensação que provavelmente seria a última. Foi por isso que me custou tanto quando viste que faltavam muitos comensais, que a quantidade enorme de comer iria sobrar e foste, na tua bondade, bater à porta de cada um deles para lhes pedires que não falhassem.
Tão feliz que te vi na despedida de solteiro do Manel Coelho, dando “Ordem Unida” a trinta e tal magalas já meio torcidos. Vestidinho de azul, com a t-shirt comprada no mercado de Santo António. “Havia lá mais baratas, mas eu vi logo a qualidade desta e que se amolem os euros!”.
Tenho falado muito em ti porque sou teu fã. Fã da tua maneira de ser. Falei em ti nos “Desabafos” e nunca pensei que pudesses ler as cópias que a Batistinha te arranjou, e gostar tanto do que sobre ti disse. “Tá porreiro, aquilo!”.
Tive ainda oportunidade de te levar à “Gala das 7 Maravilhas” ao Campo Pequeno e há um mês atrás, antes da última recaída, ao “Música no Coração”.
Bebemos a tal cervejinha na marisqueira ao lado e o camarãozinho em promoção que estava divinal.
Um senhor onde quer que pisavas porque em toda a parte te conheciam.
O polícia de Lisboa que tem família cá, parou a mota só para te cumprimentar e te oferecer dormida e estadia.
O empregado que nos serviu as bifanas em Vendas Novas, tinha sido um soldado teu colega e só por isso me segredaste ao ouvido: “para a próxima vimos cá que o gajo já disse que paga o jantar!”.
No autocarro confidenciaste, “dói-me o corpo da viagem. Amanhã durmo toda a manhã”, para te poderes livrar do aperto que te sugava as forças.
Agora dormes para sempre, livre da carga que cá deixaste.
Não sei se lá em cima haverá horta. Se houver, eles que se preparem para uma verdadeira reforma agrária. Não vai ficar pedra sobre pedra.
Que descanses em paz, Carcacinha.
Até sempre, companheiro!
Foi tudo rápido demais.
Lembro-me que faz agora por estas alturas, um ano que tiveste a tua primeira quebra. Eu regressava de um exame das Finanças em Lisboa e soube pelo telefone que não estavas bem.
Liguei para o hospital, lá consegui o contacto do enfermeiro responsável e foi nessa conversa que soube que o cenário era pouco animador.
Não era fácil cumprimentar-te através das luvas… ouvir a nossa voz filtrada pelas máscaras que nos obrigavam a usar. Levei-te a “Bola” e a “Nova Gente” e pareceu-me que dificilmente voltaríamos a falar fora dali. Depois, com a força que era tão tua, arribaste e voltaste a levantar-te.
Saíste e surpreendeste tudo e todos.
Tornaste-te agricultor de mão cheia na horta que tanto estimavas. Trabalhaste os dias inteiros, na dura labuta da vida agrícola, e ainda arranjavas sempre tempo para desenrascar um amigo num biscate.
Montado no motocultivador emprestado, eras rei em trono de pleno direito, sempre sorrindo, com o ar de quem a tinha olhado de frente e lhe tinha conseguido escapar.
Quando vias um amigo por perto, não perdias a oportunidade de mostrares, orgulhoso, a tua produção: as couves e os variados vegetais, as tuas galinhas, os teus coelhos e restante bicharada, e até o porco, gordíssimo, belíssimo e já prometido ao nosso Tomané, Presidente da Junta, para a próxima matança da freguesia. A que não terás a felicidade de ver.
Ainda há dias te ajudei a desenrascar o escoamento da produção de cebolas, com uma cunha bem aplicada a um colega proprietário. A manobra de marketing resultou em cheio. Disse-me depois que eram enormes e de alta qualidade, que te tinha ficado com a mercadoria toda. Vi-o mostrá-las orgulhoso a alguns clientes, “a verdadeira produção do concelho de Marvão!”. Já não comemos é o tal almoço que prometeste se o negócio te corresse bem.
Como nunca mais trarei as tais alfaces que levavas à loja das minhas tias, de propósito para a Leonor, porque sabias que ela tanto as adora.
Nunca sabemos o dia de amanhã, mas na festa dos teus anos, tive a sensação que provavelmente seria a última. Foi por isso que me custou tanto quando viste que faltavam muitos comensais, que a quantidade enorme de comer iria sobrar e foste, na tua bondade, bater à porta de cada um deles para lhes pedires que não falhassem.
Tão feliz que te vi na despedida de solteiro do Manel Coelho, dando “Ordem Unida” a trinta e tal magalas já meio torcidos. Vestidinho de azul, com a t-shirt comprada no mercado de Santo António. “Havia lá mais baratas, mas eu vi logo a qualidade desta e que se amolem os euros!”.
Tenho falado muito em ti porque sou teu fã. Fã da tua maneira de ser. Falei em ti nos “Desabafos” e nunca pensei que pudesses ler as cópias que a Batistinha te arranjou, e gostar tanto do que sobre ti disse. “Tá porreiro, aquilo!”.
Tive ainda oportunidade de te levar à “Gala das 7 Maravilhas” ao Campo Pequeno e há um mês atrás, antes da última recaída, ao “Música no Coração”.
Bebemos a tal cervejinha na marisqueira ao lado e o camarãozinho em promoção que estava divinal.
Um senhor onde quer que pisavas porque em toda a parte te conheciam.
O polícia de Lisboa que tem família cá, parou a mota só para te cumprimentar e te oferecer dormida e estadia.
O empregado que nos serviu as bifanas em Vendas Novas, tinha sido um soldado teu colega e só por isso me segredaste ao ouvido: “para a próxima vimos cá que o gajo já disse que paga o jantar!”.
No autocarro confidenciaste, “dói-me o corpo da viagem. Amanhã durmo toda a manhã”, para te poderes livrar do aperto que te sugava as forças.
Agora dormes para sempre, livre da carga que cá deixaste.
Não sei se lá em cima haverá horta. Se houver, eles que se preparem para uma verdadeira reforma agrária. Não vai ficar pedra sobre pedra.
Que descanses em paz, Carcacinha.
Até sempre, companheiro!
8 comentários:
(...)
não o conhecia Pedro. mas vejo que estás a sofrer.
a ti (que à família não conheço, embora lh'os estenda) os meus sentidos pêsames pela perda desse amigo.
a malta há-de ir lá ter com ele. entretanto... força.
abraço
Quando vi a notícia do falecimento do João Paulo senti aquela melancolia, tristeza, amargura, infelicidade que nos assola, nos transtorna e nos faz reflectir sobre o que, afinal, fazemos aqui.
Achei estranho tal sentimento. Conheci pouco , só das consultas , só de quando ia a pedir-me conselho, uma opinião ou para arranjar os papeis, nunca privei com ele. Reflecti o porquê de tamanha tristeza e de tanto apego. E acabei a reflexão no principio, onde tudo começou para mim aqui no posto medico de Santo António das Areias.
Senti-me como uma pessoa que na vida adulta fala daquele familiar perdido quando ainda era bébé, que, mesmo sem memórias suas, se entristece quando pensa nele. É que, mesmo sem memórias suas, possui as memórias da família, de quem privou com a pessoa desaparecida.
E deixem-me que vos diga. A memória que você apresenta do João Paulo é demasiado intensa para se lhe ficar indiferente. Sinto-me em casa, em família quando estou em Santo Antonio, bebo e como com alguns de vós. E por isso o João Paulo fará parte dessa memória colectiva que, num belíssimo testemunho de convivência, solidariedade e dor humana, você aqui têm deixado.
Se não fosse por mais nada, este simples, mas rico testemunho da vossa amizade, poderia ser a única razão para eu aqui continuar.
Cada um da familia está no meu coração, (a Francisca e a Ana, aos quais mais conheço) e aos outros e por isso, a vossa tristeza é a minha tristeza. Partirei daqui a nada para, mais do que acompanhar o João Paulo ajudar-vos a carregar o fardo da vossa tristeza.
Siento mucho tu pena, vuestra pena por haber perdido ese amigo y dice mucho de ti, Pedro, el que hableS con tanto cariño y tanto dolor de esa ser humilde y trabajador, que sin ser de tu sangre, tanto vas a echar de menos. Pero yo que convivo día a día con la muerte lo veo desde otro punto de vista y cada vez más pienso que la muerte es un paso más y se acabó.... todo llegaremos allí, antes o después y , al final..... Que más da un poco ante que un poco después?...... es una reflexión, soy agnóstica y me gustaría creer que despues de aqui hay algo mejor, pero no lo creo y eso no se puede evitar.....
Deberian prepararnos desde el momento de nacer para aprender a morir y que el dolor no fueran tan intenso en nuestros seres queridos....
SI LLORAS PORQUE SE HA PUESTO EL SOL, LAS LÁGRIMAS TE IMPEDIRAN VER LAS ESTRELLAS. ...
Un abrazo y suerte la tuya que todavía conservas la fe y puedes soñar que tu amigo puede estar plantando ricas cebollas y lechugas en algún lugar precioso que nadie conoce y del que nadie nunca volvió.
Uma palavra de condolências para toda família e, em particular, para o amigo com quem tenho o prazer de mensalmente conviver.
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Infelizmente… temo que a Govi tem razão! Tal como ela também, ainda, não fui bafejado pela sorte… da FÉ; do acreditar em algo transcendental para além da morte!
O seu comentário, naturalmente arrepiante para muitos, define de uma forma simples e pragmática a minha opinião sobre o assunto. E digo “o assunto” e não “este assunto”. Porque este é “o assunto” dos assuntos que leva, sempre, à mais aliciante e inconclusiva das discussões.
Genial mesmo, este pequeno comentário. Não porque seja incontestável, mas sim porque, de uma forma são simples, transmite claramente uma das perspectivas sobre “o assunto”.
Enfim, também ainda não vi a “luz”. Também sou agnóstico… até ver!
Grande Abraço
Bonito Dias
digo "tão"
A MORTE, ESSA MAGANONA…
Dois pensamentos:
“…pensa por exemplo, mais na morte…e seria estranho, em verdade, que não tivesses de conhecer, por esse facto, novas representações, novos âmbitos da linguagem…”
Wittgenstein
“…morrer, é um problema consigo mesmo.”
João Bugalhão
Conhecia o João Paulo, nunca convivi com ele, mas recordo este episódio com ele, no princípio da minha profissão.
Um dia cruzei-me com ele na “tasca” do ti Felino e dito João Paulo, já bem “untado” chutou-me com esta à queima-roupa:
“gosto de si, porque você, no outro dia, tratou bem a minha sobrinha…”
Nunca mais voltei a falar com ele…
J. Buga
Não tenho por hábito comentar as declarações de quem por aqui passa. Não o faço por qualquer motivo especial, confesso até que me sinto muitas vezes tentado, mas evito-me, porque me parece que o meu papel aqui é outro.
Mais do que argumentar ou conta-argumentar as posições dos clientes habituais, o meu trabalho aqui consiste sobretudo em municiar com a melhor lenha de azinho, a fogueira que arde na página-mãe, a que afinal dá sentido a este miradouro virtual e a que faz com que quem gosta de cá vir, se possa sentir tentado a voltar outra vez.
No entanto, atendendo à delicadeza e ao melindre do último post, não posso deixar de agradecer reconhecidamente as palavras amigas do Luís Bugalhão (essa de nos sentirmos amigos sem nos conhecermos pessoalmente dava uma boa tese de mestrado! Mas há-de acontecer em breve!); da Goyi (sempre certeira, com o passo e o pensamento muito definidos, com classe, com saber e arte! Muita vontade de te conhecer, também!) e do Victor. Sobretudo do Victor, pela profundidade e pela novidade. Sejas bem vindo! Não são só as minhas palavras que te impressionam. As tuas fizeram ricochete e falaram fundo em mim. Belíssimo o teu testemunho e reconhecido por o merecer. É incrível ver como aprendemos todos aqui, a olhar para os outros de maneira bem diferente. Obrigado.
Um grande bem hajam aos três, sobretudo por não terem cedido à tentação fácil de dizerem apenas o que pensam de si para si, mas compreendendo a dor alheia, que souberam fazer vossa.
Reconhecido,
Pedro
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