quarta-feira, 31 de outubro de 2007

O Tal Canal


A clausura de estudo fiscal em que me encontro está prestes a deixar-me plantado na berma da auto-estrada da loucura. De há 3 noites para cá, sonho em articulado e as imagens chegam-me divididas por capítulos, secções e sub-secções, artigos, alíneas e anotações. Impostos, estatutos, decretos e diplomas tomaram conta do meu ser e hoje eu não sou muito mais que uma publicação do “Rei dos Livros”: lombada grossa, 400 páginas vazias de alma e substracto. Dou por mim às vezes a namorar a tranquilidade da rua deserta que vejo à minha frente e a desejar ardentemente que haja um cataclismo nuclear qualquer que não mate ninguém mas devolva toda a humanidade ao verdadeiro sentido da vida. E já me imagino semi-desnudado, debaixo de uma árvore, a pentear a barbicha e a tocar flauta de pan enquanto guardo um rebanho de não mais que 20 cabrinhas. Não mais que 20 porque se mais forem, já tenho um rendimento acima dos 149.000 euros e passo a ser obrigado a ter contabilidade organizada. Isso não!

Penso muitas vezes que não nasci para isto, que estou metido numa história que não é a minha mas que fazer? O dinheiro faz falta a tanta gente e é uma profissão honrada como outra qualquer. O fisco. De gravata? O senhor das finanças. Mas se o Adolfo Luxúria Canibal, um dos meus heróis desde a adolescência, um dos únicos que nunca me defraudou, pode ser jurista de dia e estrela incandescente do Rock à noite, eu também tenho de suportar a barra. E no fundo, no fundo, se os heróis não servem para isso, para nos iluminar e orientar a existência, para que servem então?

Toda a gente sabe que saber fazer uma liquidação de IRS à mão nunca foi um dos meus sonhos de infância, mas segundo os meus projectos de adolescente, por estas idades eu já devia estar casado com a Brooke Shields e ainda nem sequer a conheci.

Meus amigos… o Tratado dos Tratados: a vida nunca é aquilo que nós queremos, mas sim aquilo que ela própria quer. Lixada, a gaja!

São muitas horas de estudo por dia. Das 9 à 13, das 14 às 17, das 18 às 20 e às vezes até depois das 21 ou 9, como queiram. São 7 códigos e muitos diplomas e brochuras e encadernações. É muita coisa mesmo… E são 3 provas, uma em cada ano e esta é apenas a segunda, o que significa que para o ano levo com eles outra vez. A dobrar, porque na prova final entram os impostos todos. O nosso país é uma injustiça pegada! Se os polícias tivessem de provar tanto quanto nós, os do fisco, para subirem de nível, não havia tantas barrigas e bigodes e os bandidos morriam só do susto de olhar para eles.

Não saindo de casa, resumindo a minha errática existência a dias inteiros de fato de treino (mas continuo a tomar banhinho todos os dias! Olé!), a única réstia de salvação é… a televisão.

A televisão, a televisão… eu amo a televisão. De vez em quando descanso os rins, sento-me no sofá e espreito. Que saudades dos tempos em que passava tardes inteiras a surfar pelos canais, saltando dos filmes para os documentários, das notícias internacionais para os canais de música, dos cartoon channels para os desportivos, dos históricos para os generalistas, num mundo fascinante, sem dúvida.

Os canais abertos, regra geral, venderam a alma ao diabo e estão cheiinhos de refugo de terceira mas ainda há coisas muito boas:

Numa destas noites, estando todo o agregado de 3 anichado no sofá, compondo um quadro familiar bucólico e enternecedor, assistíamos a um dos programas de eleição da pequena, um dos mais populares nas conversas de recreio da escola: os Batanetes, da TVI. Na primeira piada a que assistimos, uma jovem pergunta ao médico: “Ó Shôtor, o sexo anal engravida?”. Resposta: “Claro que sim. Como é que acha que nascem os advogados?”. Silêncio total. Troca de olhares. Segunda tentativa. Na mercearia: “Ó Dona não sei quantas, tem tofu à venda?”. “Não, tofu não tenho, mas tenho vibradores”. “Vibradores? E o que é isso tem a ver?”. “Simples, são os dois substitutos da carne!”. Fiz como o Gabriel, o Pensador: “achei melhor desligar!”. Ser pai hoje em dia não está fácil.

Nas notícias, uma história enternecedora: um bombeiro do norte foi apanhado pela Brigada a conduzir uma ambulância com a cabeça cheia de bebida. O homem, inconsciente ao ponto de transportar doentes estando completamente ébrio, teve a desculpa do juiz, apesar de já ser reincidente. Duas pérolas que destaco. A primeira é que o sujeito, num laivo de brilhantismo, alegou que a bebida não era desse dia, mas da bubedeira que apanhou no dia anterior nos anos de um amigo. Genial! A segunda, o Juiz perdoou mais porque parece que acusou 1 e tal e ali para aqueles lados, tudo o que for menos de 3 ou 4 é para esquecer. É nestas alturas que me dá vontade de mandar fazer umas t-shirts a dizer: "EU AMO SER PORTUGUÊS!”.

À noite vejo pelo canto do olho, um dos múltiplos programas de procura de talentos que inundam os horários nobres. Neste quem manda é a família, uma família superstar em que estão todos convencidos que vão daqui direitinhos para o Olympia em Paris, como o nosso primo Carreira. Uns melhores, outros piores e a Bárbara Guimarães com um decote que lhe mostrava até os tornozelos. Ainda está para nascer quem me vai explicar como é que o Carrilho se aguenta com um Boeing 747 destes. Onde é que a mulher tinha a cabeça quando para ali se virou? Que mezinha terá feito o gajo para a conquistar? Para mim, este é um dos mistérios insondáveis da humanidade, ao nível mesmo da origem das estátuas da Ilha da Páscoa. Mas bem, voltando aos concorrentes: aparece-me lá um cachopinho assim todo bem parecido, com um brinquinho no queixo e tudo, a cantar o “She” do Elvis Costello. Para já, para já, esta não é uma música qualquer, de um filme qualquer (magistral “Notting Hill”) e o rapaz até não se saiu mal. O mais bonito de tudo foi que dedicou a música à avó, que estava na plateia e eu fiquei louco só de ver a alegria da mulher a ver aquilo tudo. Estava num estado de êxtase tal que mais parecia uma das fãs do Elvis num dos concertos esgotados de Las Vegas, na fase final dos cocktails de drogas e lantejoulas. Que alegria aquela a da senhora, certamente à beira de lhe dar uma coisa qualquer ruim, mas deixando que ainda assim com um som péssimo, a televisão cumpra o seu propósito de fazer sonhar as pessoas.

Vou-me armar em Marcelo e destacar também a reportagem da SIC sobre as plantações de cannabis lá bem no norte do país. Um mimo autêntico. As respostas dos arguidos entrevistados são mesmo do melhor artesanato que já vi. Um deles tinha uma produção brutal de “erva” no quintal e disse que “achou piada às sementes”. Assim sendo, deitou-as a um canto e “via-as crescer todos os dias”. Só por isso não as cortou antes!!! Outro, que se dizia com fortes aspirações políticas e era inclusivamente membro da Assembleia de Freguesia lá do sítio, lamentou-se de se ver envolvido naquela história toda. Apesar de ter estado emigrado muitos anos, apesar de ter 3 brincos numa orelha e uma t-shirt dos “Cradle of Filth”, disse que não, nunca tinha ouvido falar em tal planta que por acaso lhe apareceu na horta. Estranho! Todos a fazerem lembrar a anedota do cigano que quando questionado pelas autoridades acerca do porco morto que levava ao ombro, o que tinha acabado de matar e roubar, respondeu: “porco!!! Qual porco, senhor agente?”. “Esse que leva aí ao ombro”. “Ao ombro??? Ena! O tonto do bicho. Que raio de sítio escolheu para vir pousar!!!”.

Na Argentina um artista qualquer levou um cão para uma exposição e deixou-o morrer à fome. Não sou nada adepto dos tontinhos que defendem os animais em detrimento dos homens mas esta ultrapassa todas as marcas. A este eu fazia-lhe o que disse o tal Talião: ia direitinho para uma gaiola e fazia-lhe precisamente o mesmo. Haviam de ver como se lhe acabavam logo os devaneios artísticos.

Tanta loucura e tanta tonteria só poderiam terminar da melhor forma, com a jóia da coroa, os “Sopranos” ou a melhor série de todos os tempos, agora na sua 6ª e derradeira temporada. Os “Sopranos” não são apenas uma série de televisão. Para mim, que a sigo com fervor e devoção desde o primeiro dia, esta série é o maior tratado de relações humanas, filosofia, sociologia, inteligência, família, estratégia, humor, gestão, prazer, risco e vida, que alguém pode um dia criar. Ainda faltam uns episódios. Já tenho saudades.

Agora se me dão licença, faço como o grande Tony, o único mafioso que teve coragem de fazer psicanálise: vou vestir o meu roupão branco e vou estudar finanças, com uma ligeira diferença, ele vai fazer as contas dos lucros que as porto-riquenhas lhe deram ontem no Bada Bing, e eu vou mergulhar nos benefícios fiscais da Zona Franca da Madeira.

Bem pior! Paciência! Quem é que manda a mim não ser mafioso?

1 comentário:

Catarina disse...

Cá em casa temos visto muito o Nip Tuck (fox life), um bocado doentio mas viciante, como todas as boas séries. Os Sopranos não se dispensam, pois tá claro, até temos a banda sonora original...é o que vai safando a porcaria que é a televisão