Era a última noite de 2013 e eu tinha de ir
ver delas. Tinha de ir à Beirã para de lhes dar o último beijo do ano. Tinha de
ir à Beirã, a minha Beirã, à qual me custa cada vez mais regressar, de tão triste,
tão de memórias, tão esquecida e cada vez mais só. Na forja levava dois
polvorones, um tradicional doce espanhol para cada uma. Anos houve, há muitos
anos, em que a Cali os comprava às dúzias em Valência para nosso regozijo.
Agora a Troika fez um rateio de uma dúzia cá para casa e dessa dúzia saquei
dois, sem saquinho, sem rodeios, sem salamaleques. Entrei na loja que outrora via
sempre cheia de mercearias, luz, gente e homens na taberna com o meu pai. Agora
estava às escuras e elas dormiam, à braseira, com o terço na rádio Renascença
de fundo, como sempre.
Silencioso, sentei-me e fitei-as. A
Cali dormia tranquilamente, com a cabeça tombada sobre a mesa. A Maria, num
sono mais de vigília, dormia de cabeça erguida, encostada às escadas. Meti um
polvorón à frente de cada uma. Esperei que uma acordasse. Olhei e recordei. Tanta
coisa que passou no filme da minha cabeça… Minutos que foram horas.
Muito tempo depois, a Maria acordou e
riu-se quando me viu. Admirada, perguntou-me o que fazia ali. As perguntas
perderam-se noutras que nasceram sobre o presente que levava. Curiosa, abrindo
a embalagem, riu pela lembrança. Começou logo a comê-lo e a colega acordou
minutos depois, pela conversa. Saborearam-no com prazer, com o ar que eu queria
quando me lembrei de lhos dar. De tantos que me deram em garoto, retribuí com um.
Valeu pela recompensa.
A Cremilde, a do poupo, tem tido
uma velhice mais irregular, menos condizente com a mulher que foi durante a
vida. Sempre esmerada, muito cuidada, muito perfeitinha em tudo o que fazia,
viveu sempre dedicada aos outros, à família, a mim que sempre me quis como um
filho. Pelos outros, abdicou de casar, de procriar e vê-se agora na última reta
da vida, a precisar de todos nós. Tem dias em que sinto que não me conhece, em
que é apenas simpática só por ser. Tem outros em que a sinto como ela era,
sempre bem disposta, mexida, animada. Uma ou outra vez experimentei-a para ver
se me reconhecia. Num dia não, a reação perante o meu passo em falso foi tão
evidente que não me deixou vontade de o repetir.
A irmã, sempre companheira,
nunca a larga mas a Beirã já vai conhecendo a forma como a cabeça a trai e a
leva para a parte das tabernas a ver do irmão que já morreu há quase 20 anos,
ou a leva à unidade de cuidados continuados da Anta à procura da mãe, que nos
deixou também nessa terrível altura. Conhecendo a sua boa maneira de ser e o
seu bom trato sempre simpático, costumam levá-la na carrinha à procedência, de
volta à loja. Loja onde já nada se vende mas que continua a funcionar como “Ponto
de Convívio” das mulheres que se prezam por continuar a resistir conta a
solidão e isolamento. Sentam-se à braseira, bebem um cafezinho, comem um bolo,
riem, falam, vivem.
Desta vez, quando acordou, a
Cali ficou muito admirada por me ver ali.
- “Então mas tu! O que fazes
aqui?!?!” (não me esperava…)
- “Vim-te ver a dormir. Apareci
do nada. É uma magia que eu aprendi a fazer. Já aqui estou há horas.” (mentira)
Quando olhou o presente que lhe
levei, “E esto niño? Que es?” (viveu anos em Valência de Alcântara, quando o
meu avô foi ali chefe da estação, antes de se reformar como inspetor e fala
fluentemente castelhano).
“Pues, un dulce de alli. A ver
si te gusta. Lo conoces? A ver…”
“Hum… que rico. (provando) Muy
bueno”.
Depois começou a balbuciar
algumas palavras sem nexo. Fazia expressões faciais de acordo com o que dizia
mas eu não a conseguia perceber. Fazia o ar de quem falava e percebia o que
dizia mas era imperceptível para mim.
“Quando ele ia… lá para mim” e ria. “E
ela não podia…” dizendo que não com a cabeça e sorria. Ria e parava de falar.
A Ti Bia, companheira de todos os
dias e todas as noites, companheira de cama e refeições, perguntou-lhe baixinho:
- “O que é Cali? Ele ia lá para
o pé de ti quando era pequenino, era?”
Que sim com a cabeça.
- “E os pais iam trabalhar,
era?
Que sim, que sim.
- “Tu gostas muito dele?”
Que sim, olhando com ternura para
mim.
- “E o pai dele? Quem era?”
- “Era eu. Eras tu.”
- “Não Cali, diz lá quem era o
pai dele. Lembraste?”
Que não, a cabeça a dizer que
não.
- “O João, Cali. Era o nosso
João”.
E os olhos foram ficando sérios.
Foram-se transformando, ficando tristes, perdidos, fundos. Tão tristes que se encheram
de lágrimas e começou um chorar triste. Silencioso, de falta, de saudade.
Agarrei-a junto a mim. “Já passou,
Cali. Já passou”. E ficámos os três em silêncio, de mãos dadas, a pensar, a sentir
a força uns dos outros.
Feliz ano novo, pensei.
Esperança no bem… (num bom ano novo)
2 comentários:
Que tenha um bom ano, junto das suas pessoas e com saúde.
Um abraço
A intensidade do que falas, só a entende mesmo quem a conheceu.E sim, todos lhe devemos muito e eu que a tive sempre do meu lado...custa muito .Ela que fazia voltar cabeças em C.Branco com a elegância espanhola que lhe era natural.A vida e a saúde foram injustas.
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