sexta-feira, 3 de janeiro de 2014

Quando a bússola (que norteia os nossos dias) falha







 Era a última noite de 2013 e eu tinha de ir ver delas. Tinha de ir à Beirã para de lhes dar o último beijo do ano. Tinha de ir à Beirã, a minha Beirã, à qual me custa cada vez mais regressar, de tão triste, tão de memórias, tão esquecida e cada vez mais só. Na forja levava dois polvorones, um tradicional doce espanhol para cada uma. Anos houve, há muitos anos, em que a Cali os comprava às dúzias em Valência para nosso regozijo. Agora a Troika fez um rateio de uma dúzia cá para casa e dessa dúzia saquei dois, sem saquinho, sem rodeios, sem salamaleques. Entrei na loja que outrora via sempre cheia de mercearias, luz, gente e homens na taberna com o meu pai. Agora estava às escuras e elas dormiam, à braseira, com o terço na rádio Renascença de fundo, como sempre.
  
         Silencioso, sentei-me e fitei-as. A Cali dormia tranquilamente, com a cabeça tombada sobre a mesa. A Maria, num sono mais de vigília, dormia de cabeça erguida, encostada às escadas. Meti um polvorón à frente de cada uma. Esperei que uma acordasse. Olhei e recordei. Tanta coisa que passou no filme da minha cabeça… Minutos que foram horas.

         Muito tempo depois, a Maria acordou e riu-se quando me viu. Admirada, perguntou-me o que fazia ali. As perguntas perderam-se noutras que nasceram sobre o presente que levava. Curiosa, abrindo a embalagem, riu pela lembrança. Começou logo a comê-lo e a colega acordou minutos depois, pela conversa. Saborearam-no com prazer, com o ar que eu queria quando me lembrei de lhos dar. De tantos que me deram em garoto, retribuí com um. Valeu pela recompensa.
        
A Cremilde, a do poupo, tem tido uma velhice mais irregular, menos condizente com a mulher que foi durante a vida. Sempre esmerada, muito cuidada, muito perfeitinha em tudo o que fazia, viveu sempre dedicada aos outros, à família, a mim que sempre me quis como um filho. Pelos outros, abdicou de casar, de procriar e vê-se agora na última reta da vida, a precisar de todos nós. Tem dias em que sinto que não me conhece, em que é apenas simpática só por ser. Tem outros em que a sinto como ela era, sempre bem disposta, mexida, animada. Uma ou outra vez experimentei-a para ver se me reconhecia. Num dia não, a reação perante o meu passo em falso foi tão evidente que não me deixou vontade de o repetir.  

A irmã, sempre companheira, nunca a larga mas a Beirã já vai conhecendo a forma como a cabeça a trai e a leva para a parte das tabernas a ver do irmão que já morreu há quase 20 anos, ou a leva à unidade de cuidados continuados da Anta à procura da mãe, que nos deixou também nessa terrível altura. Conhecendo a sua boa maneira de ser e o seu bom trato sempre simpático, costumam levá-la na carrinha à procedência, de volta à loja. Loja onde já nada se vende mas que continua a funcionar como “Ponto de Convívio” das mulheres que se prezam por continuar a resistir conta a solidão e isolamento. Sentam-se à braseira, bebem um cafezinho, comem um bolo, riem, falam, vivem.

Desta vez, quando acordou, a Cali ficou muito admirada por me ver ali.

- “Então mas tu! O que fazes aqui?!?!” (não me esperava…)

- “Vim-te ver a dormir. Apareci do nada. É uma magia que eu aprendi a fazer. Já aqui estou há horas.” (mentira)

Quando olhou o presente que lhe levei, “E esto niño? Que es?” (viveu anos em Valência de Alcântara, quando o meu avô foi ali chefe da estação, antes de se reformar como inspetor e fala fluentemente castelhano).

“Pues, un dulce de alli. A ver si te gusta. Lo conoces? A ver…”

“Hum… que rico. (provando) Muy bueno”.

Depois começou a balbuciar algumas palavras sem nexo. Fazia expressões faciais de acordo com o que dizia mas eu não a conseguia perceber. Fazia o ar de quem falava e percebia o que dizia mas era imperceptível para mim.

         “Quando ele ia… lá para mim” e ria. “E ela não podia…” dizendo que não com a cabeça e sorria. Ria e parava de falar.

A Ti Bia, companheira de todos os dias e todas as noites, companheira de cama e refeições, perguntou-lhe baixinho:

- “O que é Cali? Ele ia lá para o pé de ti quando era pequenino, era?”

Que sim com a cabeça.

- “E os pais iam trabalhar, era?

Que sim, que sim.

- “Tu gostas muito dele?”

Que sim, olhando com ternura para mim.

- “E o pai dele? Quem era?”

- “Era eu. Eras tu.”

- “Não Cali, diz lá quem era o pai dele. Lembraste?”

Que não, a cabeça a dizer que não.

- “O João, Cali. Era o nosso João”.

E os olhos foram ficando sérios. Foram-se transformando, ficando tristes, perdidos, fundos. Tão tristes que se encheram de lágrimas e começou um chorar triste. Silencioso, de falta, de saudade.

Agarrei-a junto a mim. “Já passou, Cali. Já passou”. E ficámos os três em silêncio, de mãos dadas, a pensar, a sentir a força uns dos outros.


Feliz ano novo, pensei. Esperança no bem… (num bom ano novo)

2 comentários:

Helena Barreta disse...

Que tenha um bom ano, junto das suas pessoas e com saúde.

Um abraço

zira disse...

A intensidade do que falas, só a entende mesmo quem a conheceu.E sim, todos lhe devemos muito e eu que a tive sempre do meu lado...custa muito .Ela que fazia voltar cabeças em C.Branco com a elegância espanhola que lhe era natural.A vida e a saúde foram injustas.