terça-feira, 27 de março de 2018

(Quando chegou) A vez do Ti Tó



A música de fundo tem de ser esta, porque é... a certa.

Algo morre na minha alma, quando um amigo se vai. Com ele, morre parte de mim.


Quando o telefone tocou, e vi no ecrã, a carinha do meu primo "Cadorin", cumprimentei-o com o "eh,meu irmão" de sempre, mas… do outro lado, não me chegou o habitual afecto
 alegre, mas antes uma voz séria e pesada... 


Claro que só pude deixar fugir um derrotado… "então... o que há?"


Do outro lado: "o Ti Tó".



Aí, meio que desliguei. O cérebro  continua a trabalhar, claro está, mas apenas no rés do  chão, em piloto automático, a fazer as perguntas, e a dar as respostas óbvias. O centro    das operações vai para o sótão, porque é aí  que se situam as recordações, a memória, ou seja, aquilo  que realmente somos. Para mim, é a memória,  e não a inteligência, que nos faz grandes. 


Quando não nos lembramos, sequer do nome de quem amamos, como é  o infeliz caso da minha Cali, a nossa existência resume-se à caixa da CPU, dos antigos computadores, sem motherboard, ou processador. Quem nos habituámos a tanto admirar, pela riqueza que     tinha dentro de si, já não mora mais ali.


Na altura do telefonema não percebi, ou não  consegui perceber, os contornos do que se  passou. Não  tinha ideia que estivesse doente. Creio que recordo qualquer coisa como uma operação, abrirem, e fecharem, de seguida. Não percebi. Na altura, apenas fiquei a       lamentar, muito, que tivesse acontecido. Mas a verdade é que aquela, é a certeza que 
nós temos mais segura na vida. Aquela é a que nenhum de nós poderá escapar.

Era assim... Os quadros ainda frescos na memória são estes...

O Ti Tó era um Homem bom. Tranquilo, Pai de família, de três filhos de quem sempre esteve muito próximo, extraordinário cozinheiro (tenho ideia que o Manuel Luís  Goucha,       quando se celebrizou por ser um grande e excelente  comunicador entre os tachos, ainda bem antes de ser esta bichona louca que só apresenta programas tarecos; chegou a fazer um   programa com ele, creio que na Barroca do Lobo, na Covilhã, onde vivia), um           enorme Socialista (militante de toda a vida, que bem conhecia e muito de cerca privou   com Sócrates e Guterres, que certamente se lhe dissessem, no olho do furacão, onde      estão, que faleceu o Galvão da Covilhã,  não  teriam corrido para o primeiro avião, para   terem podido vir ao seu funeral, mas, de certeza que o lamentariam); mas era também  um grande pescador (como recordo os dias que pareciam imensos, de tão grandes, com     ele, na barragem da Póvoa, do Poio, ou da Covilhã, na serra, a pescar. A pescar... bem... eu nem para enviar a porcaria do isco prestei, quanto mais...

Com o meu irmão Miguel, em 1980

O Ti Tó era também um enorme, ENORME lagarto (leia-se Sportinguista!)  Daqueles         mesmo... GRANDES! (que na minha família, eram... todos! Ele, os filhos, o meu pai, o    meu irmão, os filhos deste, a minha madrinha... Quanto a mim, alguém tinha de ser a
 ovelha         negra... ou o filho pródigo, capaz de ver a luz. Piada ruça, de gasta, mas 
enfim... é minha.)

Longas horas à mesa, em conversa, a confraternizar... recordo sempre assim

Apesar do seu indiscutível talento entre as panelas e os fogões, o Ti Tó nunca se conseguiu afirmar como empreendedor na área. Chegou a ter um restaurante com o vizinho e amigo Zé Prata, a "Ti Emília", que nunca chegou a vingar. Isto porque, creio eu, que ninguém mo disse, sempre teve uma visão despreocupada e distante com o vil metal. É bom recordar  que tudo isto são memórias, ideias do baú, que por este infeliz motivo, abri. Como de      resto, o baú  das fotografias que tenho guardadas numa caixa hermética, que trouxe da     casa da minha mãe. Aquando deste trágico acontecimento, sensibilizado por esta triste   notícia, subi literalmente ao sótão, para ir buscar estas fotografias que sabia que lá        estavam, a fim de ilustrar este meu texto,. Parece incrível,  não é?, mas eu lembrava-me de cada uma destas. Há anos que não  lhes tocava, mas entre muitas outras que não        pensava que tinha (seria tão  rico, caso tivesse tempo para arrumar aquilo), era estas que procurava. Estes olhares, estes sorrisos, estes momentos de alegria cristalizados, que nos fazem mergulhar no passado, e ir beber a essa felicidade implícita. Não há nada que        chegue ao poder de uma imagem. Nada!



A memória mesmo que guardo dele, é à mesa, quando íamos todos daqui passar o fim de 
semana à Covilhã. Sabíamos que não  poderia ser uma casa faustosa (a minha tia Maria     Irene, sempre foi muito doente do coração, nunca teve um trabalho convencional fixo, e sempre tomou imensa medicação), mas a verdade era que aqueles dias, eram plenos de   alegria. As minhas tias, Maria  e Cremilde, sempre atrás de mim, a fazerem - me            marcação cerrada, tiki-taka-tiki-ta: "filho, não  andes descalço que o chão está gelado;    filho, não   mexas na cadela que levas as mãos  à  boca e podes ficar doente; filho não  comas mais, que ficas mal disposto; filho,  vai vestir um casaquinho que está frio, e te podes  constipar; filho vai para a cama, que já  são  horas (eu fui criado assim, neste a
ambiente... com os pais a trabalharem, sem infantário, com estas duas jóias... Três!, com a minha avó Joaquina. COMO É QUE QUERIAM QUE EU NÃO FOSSE MIMADO?!?!?! Só se  fosse o Super-Homem. Perante esta pressão  tremenda, só  recordo a minha tia Canina     (diminutivo, o mesmo que pequanina, por ser a mais nova deles todos), aos gritos, de braços no   ar: OPÁÁÁÁÁ DEIXEM-ME ANDAR O GAROTO!!!!! A CASA É MINHA!!!!!"


Eu adorava-a. Aqueles filhos foram criados naquele ambiente e não se perderam. Talvez   tivessem inteligência para terem estudado mais, mas, seguiram a sua vida, geraram           outras,  formaram lares, educaram filhas, uma das quais, a minha prima Catarina, é        cidadã do mundo! Estudou chinês (?!?!?) e anda aí, pelo globo, a trabalhar. Coisa de alto    nível!

Eu e a Céu, no seu casamento


Com o meu Cadorin

O Ti Tó fumava, não compusivamente, mas saboreando o fumo, como eu faço. O Ti tó       tinha o rádio do quarto sempre ligado, e isso era algo que fascinava a minha ignorância    inocente de criança. Aquele conceito de rádio como som de fundo, de companhia, 24       horas por dia, foi algo que aprendi e tem sido uma constante da minha vida, desde os      tempos de estudante. Diariamente, ouço à volta de 16 horas de radio. Nunca me deixa.      Assim, tenho sempre companhia.


Nunca vi o Ti Tó zangado.  Bem, quando o chateavam, zangava-se, claro. Mas era um       homem, perdão, um Homem (com H maiúsculo), bem resolvido. Vivia de bem com a vida, apesar das contrariedades. Não  tinha carro  (vinham sempre de comboio, antes do carro do genro. Dantes tiveram um muita velho, que acabou), creio que viviam na casa da firma onde trabalhava (enooooooooorme, com uma varanda  com vista de cortar a respiração,    virada para a serra; uma cozinha gigantesca, corredores, e mais corredores, uma sala         enorme, 5 ou 6 quartos, mais o sótão que ocupava a área da casa toda.


Era um Homem bem resolvido mas… sofrido. Tinha perdido a companheira há mais de 25  anos, e também  o seu filho João, o benjamim, caiu há meia dúzia de anos atrás, quando tinha a minha idade hoje, traído por um coração que tem feito marcas na minha história  familiar. Quando os imans se perderam (o meu pai, de cá; a tia Mirene de lá), os              continentes foram-se também perdendo à deriva, no oceano da distância familiar. Quando a filha da minha prima Céu nasceu , a primeira do lado de lá, lembro-me perfeitamente de, na loja das minhas tias, da Beirã, ter ouvido um "vamos já vê-la", da boca do meu pai.
E  fomos!


Sábio é o povo quando diz que… longe da vista, longe do coração.


Hoje passam - se meses, anos, sem nos vermos. Há sempre muitas promessas, mas, a       distância... afasta. A última vez que nos vimos, foi no funeral da Tia Bia. Andamos assim, presos pelos resquícios do passado.


Depois do funeral, naqueles breves instantes de confraternização (compromissos me        chamavam do lado de cá, nessa tarde), fica sempre aquele saber agridoce, que em mim,  cria sempre um desconfortável mau estar. Sabemos que o fenómeno aglutinador não podia ter sido pior, mas não conseguimos esconder a alegria de nos sabermos família, do mesmo sangue, no mesmo barco. Se podiamos ter ficado ali mais tempo? Claro que sim!
Então, deixando para trás aquilo que já passou, porque já passou, há que fazer um          esforço, para se abra uma nova era, mais próxima.  


Bem sei que a Covilhã, não é já ali. Mas aquela epopeia de antigamente, de curvas, e       curvinhas, de uma Gardunha sem túnel mas com muitos Ssssss a subir e a descer, de        estradas secundárias e municipais, já lá vai.  Mas também, o motivo é forte demais para  não ser considerado: são os meus!



Posso ser mais tonto que todos, mas eu acredito que isto não acaba aqui, quando se morre neste mundo, e o que sobra do corpo que nos revestiu a alma, é devolvido à terra, para   um banquete dos vermes. Acredito que agora, os que já passaram a linha, estão juntos,   se encontram.


Posso estar errado, mas vivo tão mais feliz, nesta crença…


Até um dia, Ti tó!

Com a neta Adriana. Uma grande companheira...
Ele e o seu ar fantástico de crooner... sempre o conheci assim...
Deixas muitas saudades


Os dois que já foram (a Ti Mene e o filho João), com a cadelinha Laica, e o Miguel pequenino, a fazer-lhe
festas na cabeça.
À direita, as minha primas na moda, quais Salt and Pepa, de gofias enfiadas na cabeça. A fazerem pendant.

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