segunda-feira, 4 de novembro de 2019

Partidas...


Hoje de manhã, quando cheguei à cozinha, fui, como sempre, dar-lhe os bons dias. Fui meter-me com ele, dar-lhe carinhos, mudar a água, deitar as cascas da alpista fora do comedouro, meter nova, e mudá-lo cá para o alpendre das traseiras, onde começava a cantar para o dia.

Eu era quase sempre o primeiro a fazê-lo, porque a dona, que madruga sempre antes: se perde sempre primeiro de olhos e mimos para o menino (Sizzle), e deixa o amarelinho, do qual nunca morreu de amores, para segundo plano.

Assim que lhe meti os olhos em cima, entristeci, e pasmei. Estava caído, de olhos pequeninos, quase inerte.


Reagiu ao tom da minha voz, e estremeceu, tendo-se movido com muita dificuldade.

- “Hum”, pensei, “deve ser um daqueles “trangolomangos” que às vezes lhe dão, e depois lhe passam como se não tivesse sido nada”.

Mas não. Enfiei a mão dentro da gaiola e ainda o afaguei. Cheguei a metê-lo na mão, dei-lhe calor e mimei-o. Ficou como que em repouso.

O que se seguiu não foi agradável, e tive de me bater para que não tivesse ido logo fora, com a gaiola incluída. Mas quando um ser vive tanto tempo junto a nós, e nos dá tanta alegria como ele já me deu a mim, merece ter outro apoio, outro carinho, e, se o seu fim por acaso estivesse próximo, outro calor humano à sua volta.

Soube a meio da manhã que tinha ido cantar para outra galáxia, ou que sua alma já viverá noutro ser vivo qualquer.

Oxalá seja feliz, tão bem tratado, e respeitafdo, como foi aqui na minha casa.

Agora que foi, como os animais que nos fazem tanta falta, devem ser substituídos quanto antes para que o amor que temos para dar seja entregue e recebido de volta; está aberta a guerra da sucessão. Por incrível que possa parecer, mais ninguém quer um passarinho aqui em casa. As donzelas, uma por não querer de volta a gaiola que suja, e não aceitar que é minha e eu zelarei por ela, não tendo que estar sempre um brinco como tudo o resto que por aqui supervisiona, porque é a casinha de um animal, que suja; outra porque defende que os animais não nasceram para estarem aprisionados e é contra essa detenção, não compreendendo que depois de nascidos aqui no nosso ponto do mundo, lhe dou teto, comida, amor, e de mais não precisam porque é tudo o que queremos; e uma outra porque “EU QUERO CÁ O RAIO DE OUTRO PÁSSARO A ARMAR UMA BARULHEIRA ESTRIDENTE NO FIM DE SEMANA QUANDO VENHO, E EU QUERO É DORMIREEEEEEEEEEEE!!!!!!

“Criança sofre…”, vou pensando, enquanto me faço forte para não vergar, e poder voltar a estar sentado ao sol, olhando a minha laranjeira da Baía, assistindo ao recital maravilhoso de canto assobiado, de meu Pelé barítono de penas.

Com digo sempre de cada vez que se marcha uma alma que quero bem, “que fiques em paz, entre o esplendor da luz perpétua (que é uma imagem tão em paz), muitos anos sem nós. Isto porque teremos toda a eternidade pela frente.

Mas hoje o dia é de choque e perda, não por este motivo que me entristece, mas sobretudo porque uma alma que vivia num corpo como o nosso, também partiu. Ao balcão das finanças, vai-se sabendo de tudo em primeira mão; e sempre que há notícias trágicas, de mortes, multiplicam-se mais rápido que a luz.

Alguém comentou mas… “será mesmo?”, pensei. Fiz uma chamada para um amigo que está mais naquela área e sim… o Calças, o nosso quinto Zé António, de 74, já expirou, também.

47, apenas...
Aqui, numa foto tirada no 2º encontro de quintos, em 2004, no Zé Calha, há 15 anos atrás... 
Terias tu 32, ou por aí.
De ti me recordarei sempre assim.


Que dor, meu Deus… que vida adiada… que existência em falso.
Foi tão pouco aproveitado...

O Zé António estava sempre bem disposto, e recordo-me dele a rir-se. A sua vida foi sempre muito pouco concreta, tendo andado sempre ao sabor dos acontecimentos. Com poucos estudos, chegou a encontrar abrigo na firma Sequeira, onde trabalhou muitos anos, e aí ganhou a estabilidade que lhe permitiu andar na boa vida da qual tanto gostava. Foi um autêntico artista das pegas nas touradas à vara larga, e o seu nome chegou a ser popular no distrito onde quer que as havia, porque toda a gente conhecia o Calças.

Sendo uma figura da vida boémia, também toda a gente conhecia a forma abusadora com se relacionava com o álcool, ao ponto de ter estado por diversas vezes internado, e ter sido bem avisado pelos médicos. Muito mais magro, e algo apático, fez o mais difícil, sobretudo para quem não tem âncoras que o segurem à vida, como mulher e filhos, ou pelo menos, namorada séria e fixa; e chegou a deixar de beber. Neste nosso mundo local, pequenino, onde o álcool é o cimento que une o ambiente masculino, fez o mais extremamente difícil, mas… segundo soube ultimamente, cedeu. Vergou. E tive conhecimento informalmente, sem querer, que ia tenho percalços na Associação Humanitária dos Bombeiros Voluntários de Marvão, à qual tinha tanto orgulho em pertencer, que revelavam que estava a atingir um ponto de não retorno.

O meu “Eh, QUINTO!”, como me tratava sempre, já partiu. Com tanta pena minha e de quem sempre o tentou ajudar, por não ter conseguido evitar que esta espiral de destruição o levasse ao fim.

Que descanses em paz, meu velho amigo.

Ao teu pai, irmã, irmão e demais familiares, envio um forte abraço de condolências, que tentarei dar amanhã antes de ir para cima, trabalhar.

Até um dia, querido.

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