sexta-feira, 9 de maio de 2008

A promessa


Prometi-lhe que acontecesse o que acontecesse, era eu quem a ia buscar hoje à escola.

Eu sabia que jamais se iria esquecer.

Foi por isso que não me surpreendi quando o telemóvel acusou o toque da Secretaria, ainda antes das 5 e meia.

“Está Pedro? Olhe… ela diz que é o pai que a vem buscar. Pediu-me para lhe ligar… Diz que hoje não é a avó… é o pai. E como não se cala… é que o professor de ginástica faltou e ela já está despachada…”.

“Vou num momento”.

Quando cheguei, estava deitada na portaria, abraçada à amiga Beatriz, debaixo de um casaco, fingindo que estavam a dormir. Eu entrei na dança e foi com uma gargalhada das duas que lhes descobri a careca.

Já no carro, perguntou-me, “onde é que vamos?”.

“Tu é que sabes. Foi por isso que te vim buscar”.

Primeiro era andar de bicicleta mas como já não tem as rodinhas pequenas e desequilibra… passou a ser a trotinete, mas depois cansa muito e acabou por ser só… andar.

“Hoje não vamos para ao miradouro”, disse-lhe, “hoje vamos para o outro lado, para o lado da natureza” e enfiámo-nos por um trilho que está ao fundo do bairro e em breves segundos nos despejou em pleno campo, num território de grilos e perdizes que fugiam assustadas com a nossa presença.

“Eu nem sabia que isto estava aqui…Mas o que é que queres dizer com ser só natureza, pai?”.

Reparei então que se desviava de todos os insectos que lhe apareciam à frente e que parava desconfiada de cada vez que saía um ruído estranho da vegetação. Quando tinha a idade dela, este mundo era o meu. Como tudo mudou, no espaço de uma geração.

Subimos às pedras, ladrámos aos cães presos no terreno do Caldeira e expliquei-lhe outra vez porque é que devemos sempre caminhar pelo lado esquerdo da via.

“Epá, tu falas a toda a gente! Conheces todos os que passam por nós?”.

“Eu sou daqui. Nasci cá. Vivi sempre aqui. É natural que conheça as pessoas, não achas?”.



“Então?!? Não falaste a este que passou?”.

“Este não é de cá. Deve de ser viajante…”.




Rimos já não sei do quê, expliquei-lhe o que era um estaleiro e parámos junto a um pequeno canavial. Parei para a apanhar uma cana. Apercebi-me naquele preciso momento que há muitos anos que não tinha assim uma cana na mão.

Lembrei-me que na minha infância, as canas representavam para nós o mesmo que os búfalos para os índios: eram pura e simplesmente a base de tudo. Os búfalos eram sagrados porque eram simultaneamente a base da alimentação, a matéria-prima para o vestuário e para a construção das habitações, o genérico primordial da medicina e ainda os fornecedores de elementos para adorno e para artefactos bélicos.

Eram os búfalos para os nativos e as canas para nós. Com as canas construíamos as barracas nos altos das pedras, com as canas fazíamos os arcos e as flechas com que brincávamos nas acácias, e com as folhas das canas inventávamos armaduras e capacetes. Com elas até fazíamos apitos, como se lembrou o Luís Barradas que passou por nós então de bicicleta. È verdade… disso já nem eu me recordava.

Para ela a cana era um nada, mas mesmo assim lhe descasquei uma que trouxe pelo bairro fora, como se fosse uma bandeira.

Conversámos muito de muita coisa e eu tive pena que não pudesse ser assim todos os dias.

Em casa preparei-lhe um banhinho morno de espuma cheirosa e deixei-a estar de molho quanto tempo quis. Sequei-a com cuidado para não a magoar na ferida minúscula que fez com uma folha na sala de aula. Passei-lhe creme hidratante pelo corpito ainda de bebé e vesti-lhe um pijama verde às bonecas. Sequei-lhe o cabelo como nas cabeleireiras, penteei-o com uma escova suave e pensei o quanto adoro poder tomar conta dela assim.



Nas notícias da televisão, ouvi o relato do depoimento que o assassino da Mari Luz, a ciganita de Huelva, fez em tribunal. Santiago del Valle, de 52 anos, contou como aliciou a pequena com um ursinho de peluche branco que atirou propositadamente para a rua. Confessou como foi incapaz de lidar com o desejo, como não resistiu à menina, como a chamou para o seu apartamento com um olhar de promessa de algo mais. Quem poderia saber então, se mais um peluche, um chocolate ou uma guloseima?

Ouvi então também a história que inventou para se ilibar, alegando que a pequenita teria perdido o equilíbrio e caíra inanimada no fundo do corrimão.

Qualquer atenuante que pudesse daqui advir esfumou-se quando relatou friamente, a forma como a meteu num carro de supermercado, como a tapou com um casaco e a levou até o esgoto das redondezas para onde a atirou, sem esboçar a mais menor reacção emocional.

30 anos de prisão é pouco. 30 anos é muito pouco tempo para tanta maldade. Nesses 30 anos que podem sempre ser menos por bom comportamento, por atenuantes diversas, até mesmo por uma visita papal ao país, Santiago vai poder comer, beber, dormir, ler, levar uma vida normal suportada pelos impostos dos contribuintes espanhóis que se horrorizaram com os seus actos.

Como pai, digo que para um crime destes não há perdão possível.

Perante um crime destes, o mundo torna-se pequeno demais para o progenitor e o criminoso e um tem de desaparecer.

Como pai, arrepiando a minha consciência por segundos pela terrífica suposição do “se fosse comigo” digo com certeza que quando nos roubam a razão de viver, nada nos resta senão fazer pelas nossas mãos aquilo que sabemos que o sistema judicial jamais fará: justiça.

Não descansaria um segundo que fosse, até que lhe rebentasse de vez os miolos com um tiro certeiro.

Direito ao inferno, de onde nunca haveria de ter saído.

3 comentários:

Clarimundo Lança disse...

Boas
Os Guardas prisionais têm uma palavra a dizer, era deixá-lo fugir, avisando a família e a populaça, que era que nem ginjas.

Gi caldeira disse...

OLA
Foi com a mesma revolta que ouvi a noticia. Nós pais, nunca poderemos conpreender esta justiça dos homens. Quantas vidas seriam necessáris passar na cadeia para pagar a atrocidade de matar uma criaça. Partilho a mesma opinião, este homem , merecia ir para o inferno, de onde nunca deveria ter saido. Isto (só mesmo á bala).

carrilho disse...

defendo que todos os cidadaos na plena faculdade das suas capacidades mentais, deveriam poder, por vias legais, declarar o fim da sua vida por um meio também legal, caso alguma vez cometessem este tipo de atrocidades ou equiparados; eu preencheria esse documento, porque considero que um indivíduo assim, nao merece continuar vivo. que deus livre os nossos filho(a)s de tais monstros.Bem hajam.