João Oliveira correu 246 quilómetros em 34 horas
Por João Pedro Barros
In Público, 06.12.2009
O maratonista foi o segundo português a terminar a Spartathlon, a rainha das ultramaratonas de estrada
A lenda que sustenta a existência da maratona é relativamente popular: Filípides, um soldado grego, terá corrido os cerca de 42 quilómetros entre Maratona e Atenas para anunciar a vitória sobre os persas, em 490 a.C, falecendo logo após cumprir a missão. Mas esta história tem um lado B, bem menos conhecido do que o lado A: segundo algumas fontes, o mesmo Filípides teria percorrido anteriormente 246 quilómetros, sem parar, entre Atenas e Esparta, para chamar reforços. É nesta lenda que se baseia a Spartathlon, uma ultramaratona de 246 quilómetros cuja 27.ª edição, que se realizou no final de Setembro, foi terminada por João Oliveira, do Porto Runners, no 64.º lugar, com o tempo de 34h01m52s. Antes dele, só outra portuguesa - Alzira Portela Lário, em 2001 - tinha sido capaz de concluir a prova grega. O percurso foi cumprido com muitas dificuldades, até porque o atleta, que treina de forma amadora - apesar de cumprir um plano de treino - não levou ninguém para o apoiar.
"Quando cheguei à mesa da organização, para me identificar, perguntaram-me qual era a minha equipa de apoio. Eu disse que não tinha, e eles não se riram às gargalhadas mas riram-se entre eles. Participei na mesma, mas por volta dos 70 quilómetros vi pessoal a estacionar, a trocar de sapatilhas, com roupa seca. A partir daí é que percebi: afinal isto vai doer", contou João Oliveira. Nessa altura, a meio da tarde, a temperatura rondaria os "32 graus", mas desceria abaixo dos 5 graus durante a noite. "Os pés ferveram e tinha bolhas nos dedos. Foi a catástrofe, queria correr, correr, mas a dor era infernal. Foi aí que comecei a reduzir a passada, porque antes dos 70 quilómetros era quinto ou sexto". A dureza foi agravada pela falta de apoio, mas uma desgraça nunca vem só: "De madrugada, começou uma chuva gelada. Já estava cheio de frio, e por mais que a gente corra nunca aquece. O meu objectivo passou a ser chegar ao checkpoint". Ao longo do percurso há 75 destes pontos, onde os corredores (maioritariamente mais velhos do que o português, que se sentiu um "puto") têm de passar antes de um determinado tempo-limite e onde se podem reabastecer.
Vício de correr
Chegados a este ponto da história, coloca-se a pergunta: o que pode levar alguém a, voluntariamente, querer correr durante mais de um dia, ininterruptamente, passando as passas do Algarve? Para João Oliveira, a corrida tornou-se um vício e um desafio de superação quase sem limites. No seu caso, esse vício foi ainda mais estimulado a partir de 2004, quando se juntou ao Porto Runners, um clube formado por amadores que se encontravam habitualmente no Parque da Cidade.
No ensino secundário, este guarda prisional de 31 anos gostava de correr, porque "ganhava aos outros". Em Chaves, de onde é natural, os cinco quilómetros entre casa e a escola serviam de treino. Por isso, quando chegou ao serviço militar tinha "pedalada": "Fiz as provas para as Forças de Operações Especiais e entrei na equipa deles, a competir com outros quartéis. Quando fui dar instrução em Chaves, um tenente, também das operações especiais, percebeu que eu tinha mais rendimento nos 10.000 metros", explica. Passou pelas meias-maratonas e pelas maratonas, até que, no regresso de uma prova de montanha de 101 quilómetros, em Ronda, no Sul de Espanha, ouviu falar da Spartathlon, onde um dos mínimos exigidos é cumprir 100 quilómetros em menos de 10h30. João Oliveira é detentor da melhor marca nacional, com 8h29m33s, obtidos numa prova no Norte de Espanha.
Para chegar a este nível, são precisos muitos quilómetros nas pernas e espírito de sacrifício. Cinco a seis dias por semana, o flaviense corre cerca de três horas. Um mês antes das provas, as três horas passam a cinco. O treino militar também foi uma grande ajuda, porque, garante, houve momentos em que pensou que devia ter ficado em casa. Quando o ritmo é bom, "não há problema", mas nos instantes de sacrifício é preciso adoptar estratégias que afastem da mente a sensação de dor, como pensar em assuntos profissionais. "Um comando não desiste de uma luta, enquanto tiver sangue nas veias luta, e agarrei-me a essa ideia. Nestas provas, para chegar ao fim é preciso sofrer", assume. A noção de que dezenas de corredores estavam atrás de si, num sofrimento ainda maior, foi outro pensamento que, ironicamente, o confortou.
Lágrimas na chegada
Os últimos quilómetros de Oliveira na Spartathlon foram bem a prova disso: o português cortou a meta ao lado de um francês que corria "com os pés de lado" e de um japonês que "só caminhava". "Eu ia de calcanhares, para evitar os choques no pé, mas o francês ainda ia pior. Já que não ia ganhar, disse-lhe que terminávamos a prova juntos. Sem dar conta, apanhámos o japonês, que estava ainda pior do que nós os dois." Os números finais são claros: 380 inscritos, 320 atletas à partida, apenas 133 a terminaram. "Quando se entra na avenida da meta, vê-se ao fundo a estátua do rei Leónidas. Foi aí que acreditei que ia mesmo acabar e fiz um esforço para não chorar. Quando terminei não aguentei, caíram mesmo umas lagrimazinhas", recorda. No final, recebeu uma coroa de oliveira e água do mítico rio Eurotas. Esta é uma história de desporto por puro prazer (ou sofrimento, dependendo da perspectiva): não só não há prémios como cada participante tem ainda de pagar 250 euros pelo alojamento, transporte e alimentação, sem contar com a deslocação à Grécia.
Agora, João Oliveira quer regressar ao Spartathlon, para baixar para um tempo a rondar as 28 horas.
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