quinta-feira, 11 de março de 2010

Dizer não! de vez (em memória do Leandro)


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Acordou em sobressalto, com um grito que tentou abafar para não incomodar o irmão que ainda dormia tranquilo a seu lado. Ficou sentado na cama, o corpo frágil num frémito, os olhos baços colados à única fisga de claridade que entrava pela janela. Chovia muito lá fora. Chovera toda a noite, como na outra e na outra e em tantas outras antes. Há muito que as noites tinham deixado de ser um período de descanso e aconchego para ele. As noites agora eram um castigo. Adormecer era entrar num mundo de desassossego povoado por mil assombrações, seres bizarros, gritos, precipícios, terramotos e tudo aquilo que mais o assustava. Umas vezes perseguido por alcateias de lobos famintos em florestas geladas, outras vezes acossado por ondas gigantes que nunca o deixavam chegar são e salvo ao areal, outras ainda caindo do alto de arranha-céus sem fim, acordava sempre assim, arfando. Cansado. Com a cabeça a zunir, com aquele uivo do vento a varrer tudo lá dentro.

Olhou o gémeo na cama à sua direita. Apesar de serem exactamente iguais, sorriu e suspirou quando pensou na sorte tão diferente de cada um, mas corrigiu o pensamento no segundo seguinte e ficou aliviado por saber que tinha sido ele o escolhido para tão triste sina. Gostava tanto do irmão que achava tudo preferível assim. Nessa manhã, a gripe haveria de lhe roubar a companhia.

Caminhou descalço até à pequena casa-de-banho do fundo do corredor e fez a higiene da manhã em movimentos quase mecânicos. Sentia-se assim muitas vezes, como se estivesse em piloto automático.

Vestiu a roupa de ontem que também tinha sido a de anteontem e sentou-se na cozinha para tomar o pequeno-almoço. Fitou o relógio de parede e ficou imóvel, como que hipnotizado pelo movimento repetitivo do pêndulo. Sentia nisso um estranho conforto que não conseguia explicar. A televisão ficou mais uma vez desligada. Bebeu uma chávena de leite frio e levou à boca o resto de uma carcaça que tinha sobrado do jantar da véspera. Nem manteiga, nem fiambre. Pão apenas para que não lhe ralhassem por uma vez mais ter saído de estômago vazio.

O caminho até à escola era uma antecâmara do que viria a ser o sofrimento do dia. Em cada passeio, cada viela, cada rua, cada estrada ia mentalmente antevendo tudo aquilo que já sabia que lhe iria acontecer quando chegasse. Já assim era há muito tempo e já há muito tinha também decidido desistir de fazer com que os outros o compreendessem e lhe pudessem valer. Nem os pais que nunca o defenderam com a força necessária, nem os professores que sempre acharam que aquilo era brincadeira de miúdos, nem sequer os amigos que sempre temeram serem eles o próximo alvo da ira dos maiores. Ninguém. Porque aquilo era só ele e com ele. Não poderia escapar ao destino, por mais que dele fugisse.

Já nem se lembrava como tudo aquilo tinha começado mas podia ter sido como uma pequenina bola de neve que foi crescendo, crescendo, até se tornar numa enorme avalanche que agora descia tresloucada a montanha em direcção a ele. Sabia que ia ser engolido.

Podia ter sido por alguma coisa que tivesse dito fora de tempo ou de maneira menos adequada. Podia ter sido uma piada que caiu mal. Podia ter sido uma roupa qualquer que vestiu… um corte de cabelo…um tique estranho… um olhar incómodo mas agora… depois de tanto ter apanhado, de tanta ferida, tanto soco, tanto estalo, tanta nódoa negra, até de internamentos… já nada disso importava. Para quê saber da faísca, agora que tudo ardia à sua volta.

Esperavam-no ao portão. Não para começar logo ali, mas para marcar território. Tinham o mesmo olhar de escárnio de sempre, os mesmos sorrisos de gozo e raiva. Um deles, o loiro, o mais pequeno, o que servia tanta vez de isco para o que viria a seguir, saltou do muro e aproximou-se, seguindo as instruções superiores. Debruçou-se e cuspiu por entre as grades de ferro , acertando-lhe em cheio na face, à frentes de todos mas sem que ninguém tivesse visto. Tanto pai, tanta mãe, tanto funcionário e professor, todos eles preocupados com tudo… à excepção dele.

Levou a mão à cara para se limpar e continuou no seu passo curto e nervoso até à sala de aula. Directo. Apesar de já não se conseguir concentrar, de saber que nada iria aprender, que tudo o que fizesse seria mal feito, continuava a fazer um esforço para se comportar como os demais. Para que ninguém notasse. Podia ser que assim passasse... Se um dia ao menos se esquecessem dele…

A sua rotina era marcada pelo medo. Medo de entrar na casa-de-banho sozinho, medo de se cruzar com eles no bar ou no refeitório, medo de partilhar o balneário, medo de estar no mesmo pátio, na mesma escola, na mesma terra, no mesmo mundo. E apesar de evitar a todo o custo os sítios mais recônditos e de fazer tudo para andar acompanhado, eles arranjavam sempre forma de o caçar. Ele era uma presa fácil. Todos os outros tinham fechado os olhos.

Naquela manhã, que já ia longa e tinha sido anormalmente tranquila, nem ele poderia imaginar o que o esperava. Quando saiu do bloco em direcção à aula de Inglês, no momento em que atravessava a espessa neblina que tudo encobria, foi abraçado por trás, por dois deles, que mais uma vez se fizeram passar por seus amigos e assim o desviaram para junto dos carvalhos na traseira do campo de jogos. Os murros e os pontapés foram tantos, tão rápidos e tão violentos que perdeu os sentidos de imediato. Entrou em si no chão, já com o sabor metálico do sangue na boca e o corpo num torpor. Eles riam e vociferavam, divertiam-se com o seu sofrimento. Na posição em que estava só conseguia ver formas difusas, vultos que chocavam contra si. Esteve ali durante muito tempo, muito mais do que aquele que realmente passou e nem deu conta quanto abalaram.

Assim que conseguiu reunir forças para voltar a caminhar teve a certeza que tudo aquilo teria de ter um fim e que a solução estava apenas na sua mão. “Não apanho mais…” e o cenário que tantas vezes viveu mentalmente ganhou vida e afigurou-se como sendo a única saída possível.

Sabia que era pequeno, frágil e que as soluções mais óbvias escolhidas por outros homens da terra de que tinha ouvido falar estavam longe demais para poderem ser alcançadas por si. Foi avançando a custo até ao portão e fingindo ir para casa, saiu. Assim que começou a descer a rua sentiu logo que um novo ânimo ganhava forma dentro dele. Não sabia o que viria a seguir mas pouco importava, desde que se soltasse de vez desta amarra que o agrilhoava. Apesar de ferido, sorriu, quando passou em frente ao quiosque e viu que a ponte estava deserta.

Tudo o resto foi um ritual, um despertar. Desfez-se ali mesmo das roupas que trazia consigo, como se quisesse deixar para trás tudo o que o prendia a este mundo, subiu ao muro da ponte e olhou o rio. O Tua ia largo e vigoroso, enfurecido pela força das chuvas e de toda a natureza. A corrente era forte e seria uma aliada poderosa sobretudo para quem não sabe nadar. Só o rio o poderia levar tão longe quanto queria. Nem os gritos assustados dos amigos que se aproximaram a correr para o parar, o conseguiram demover.

Abriu os braços, olhou em frente e saltou para o desconhecido.

Antes a corrente gelada que a insensatez e a crueldade dos outros.

O Leandro Pires escolheu a morte a ter de viver assim. Tinha 12 anos.


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Nota: ligação para a notícia inicial clicando aqui

4 comentários:

Helena Barreta disse...

Queria dizer alguma coisa, mas não consigo. Tenho a alma dorida e a visão desfocada pelas lágrimas.

Estou triste!

Helena

fate disse...

Que mundo cruel... crianças..., à medida que ia lendo o artigo, não consegui segurar as lágrimas e pensar " existem situação na vida muito, muito injustas e de uma crueldade horrivel, de uma falta de humanidade, de amor pelo próximo. Cada vez mais o homem só mostra o seu lado mau.
Bem hajam a todos.
Fate

Jorge Miranda disse...

Só posso dizer que este relato não é o pior que eu conheço.
O problema começa nos vários cenários que são criados, e nas várias facetas que agressor e vitima podem representar e todos os outros ao seu redor ( e quantos de nós na escola não gozamos_ ou fomos vitimas por sermos mais frágeis?).
Aconselho a quem se interessar pelo tema, um livro da Professora Doutora Maria José D. Martins ( foi minha professora na cadeira de Populações em Risco)" Maus tratos entre adolescentes na escola", é da editorial Novembro.
Reflecte esse fenómeno no distrito de Portalegre.
É uma boa obra cientifica.
E uma realidade nua e crua, sem sentimentalismo ou bondade bacoca.
Um abraço
Jorge Miranda

Pescada disse...

Muito boa redação e, infelizmente....verdade!
Abraço