quinta-feira, 25 de janeiro de 2018

Porra, Dimássseee... Tava nada à espera desta... Até sempre, meu!

Foto do mural do facebook, do amigo Rui Caldeira


A notícia entrou em mim com uma força, de uma forma quase subliminal. Alguém entrou no meu serviço e disse:

- E aquela história do rapaz, ãh?

- Mas… que história?

- Do rapaz… que morreu…

- Mas que rapaz? Não ouvi nada, não sei quem é…

- O rapaz que morava aqui em Marvão.

- Em Marvão?!?!?

- Não, no caminho… ali por cima da Fonte da Pipa.

Lentamente comecei a juntar as peças. Quando subia apressado, para conseguir estar lá em cima às 9h, para abrir a porta à hora precisa (por mais cedo que me levante, e costumo sempre levantar-me quase 2 horas antes!!!, acabo sempre por deixar que o tempo se esgote, sei lá gasto onde, de forma a que chego sempre a correr contra os últimos 10 minutos), notei ali muita movimentação estranha na estrada, naquele sítio. Agora que me disseram, e penso nisso, creio que me lembro de ter visto por lá, forças de segurança, GNRs a pé, parados.

- E que idade tinha?, perguntei.

- Ah… 46… ou 48… Era novo. E da Beirã…

Com esta palavra fez-se o clique, e no meu cérebro, parou tudo.

O Leonel!

Mas como é que se chamava? (por descargo de consciência, que eu já sabia a resposta)

- Ai… não sei… (e já nem me consigo recordar com quem tive esta conversa…)

- O Leonel?

- SIM! SIM! Foi esse!

(“Porra pá!”, pensei.) - E foi…

- Enforcou-se! Fez tudo nas calmas, tinha lá o maço de cigarros que acabou de fumar, e pendurou-se.

E, naqueles instantes tão breves, mas que na minha cabeça tiveram uma amplitude tão vasta, pensei tanta coisa, tão de repente, que o mais natural é ter ficado sem responder a alguém que me fez alguma pergunta. Não ouvi.

Fui pensando… o Leonel, porra! Porquê?!?!? Para uma pessoa conseguir colocar termo à vida, tem de ter um sangue frio, uma coragem, uma determinação, uma força, uma vontade só explicáveis pelo desespero profundo, e mais do que isso, por não conseguir vislumbrar uma saída possível. É que, no meu modo de ver, por mais dramático que seja o cenário, pode sempre tentar-se algo diferente daquele fim, que sim é o definitivo, e sem volta atrás.
A única exceção que torna compreensível essa saída terrível, por mais incompreensível que ela sempre seja, é a doença profunda, dolorosa, galopante, que conduz inexorávelmente à morte, e leva para o sofrimento por arrasto, todos os entes queridos mais próximos.

Depois… pelo que soube, por enforcamento… ainda torna tudo mais bizarro, e obtuso.

Segundo aquilo que sei, e não sei nada (tudo ainda está muito fresco, e eu tenho de escrever, para ver se me resolvo), o Leonel era um homem saudável, com uma família bem formada que lhe dava enquadramento e amparo (mulher trabalhadora, sempre bem disposta e disponível, na Santa Casa da Misericórdia; uma filha pequenita, adolescente, que estuda aqui na escola, e que costumava encontrar na catequese), um emprego fixo e estável (na Câmara de Marvão, um porto seguro, num Alentejo seco de emprego)… tudo peças que encaixam bem, e não se enquadram neste puzzle macabro, que colocou termo a tudo.

Alguma coisa se irá saber?
Nada se irá saber, porque nada havia a saber?

Soube que ele tinha tido uns problemas de saúde há tempos, coisas ver com a tensão, coisas anormais, de base, mas creio que andava melhor agora. Poderia haver ali toques de um consumo por vezes a mais, mas nunca ouvi que fosse nada de completamente fora. Nada que conduzisse a este extremo.

O Leonel, para mim, era o “Dimássseee”, nome de personagem com que o tinha batizado há uns anos… quer dizer, umas décadas, quando ele costumava mostrar na discoteca “A Cave” de Santo António das Areias, o seu enorme cabedal. Quer-se dizer, o Leonel nunca foi assim muito cabedaludo. Era assim mais para o gordote.
De camisola de braceletes, abria os braços, como se estivesse a fazer um solo, ao som do rock’n’roll, tocando numa guitarra imaginária com a qual curtia, curtia, e fazia curtir, quem estava a gozar o prato. Um mimo!
Mas a dada altura, andou a levantar uns pesos, fazer umas cenas a puxar pelo físico, e a malta, na brinca, começou a gabar-lhe a estrutura.

Dizia-lhe eu:
- Ouve, Dimásssseee, tás com um cabedal, mano! Eu tembém quero! Coméquefaço? Conta aí!

E ele contava.
- Começas a levantar assim uns bichinhos destes (alteres) que eu lá tenho, e o que estava aqui (apontando para a barriga), passa todo para aqui (enchendo o peito de ar).

- Ouve meu, eu adorava… (Mas nunca lá cheguei! O melhor que consegui fazer foi uns abdominais com os pés presos no bidé, quando vivia no Espírito Santo, em Marvão, e o melhor que fiz, foi dar cabo dos tubos que levavam a água, onde prendia os pés; e rebentar com os meus discos na coluna, nas vértebras L5 / S1, que me levaram duas vezes à faca! Esqueceram-se cá de um milímetro de osso, as dores duplicaram e… pimba! Vais de vela, vais de vela, ai vais mesmo de vela!)

O Leonel sempre foi um puto, que se distinguiu de todos os outros lá na Beirã, porque era muito solitário, um engenhocas, que andava sempre a inventar as suas merdas. Ainda há tempos nos encontrámos no Adro, ao final do dia, e comentámos que ele também fumava tabaco de enrolar, como eu. Quando se fuma cigarros destes, o problema é sempre quando chegam ao final. Queima os deditos. Por precaução, poupo no tabaco, e deixo-lhe uma margem de segurança, uma caixa de ar, digamos assim, para poupar na substância, e não queimar os aivecos.

Ele, que tinha o mesmo problema, ripa-me de uma boquilha feita de uma bala usada, mesmo à medido do cigarro. Nível! Ainda lá devo ter o queixo no chão... Eina bem… eu fiquei todo mamado!

- Fónix, man. Granda pinta! Onde é que arranjaste! (para saber onde iria a correr, comprar uma, a seguir)

- Ah, fui eu que fiz! (Claro, pensei! Em silêncio, à espera que ele me dissesse: “ah, mas se gostas, eu arranjo-te uma)

Vai-se o Leonel, vai-se um contemporâneo meu. Fica assim uma cena esquisita, cá dentro. Nós somos também um pouco, aquilo, e aqueles que estão à nossa volta.

Ainda hoje, por outro motivo qualquer, tive esta conversa ao balcão. Lembro-me perfeitamente do dia em que senti, que não era mais o Pedro, mas sim o pai da Leonor. Ia a dar a curva aqui em Santo António, junto à antiga farmácia, perto do Grupo Desportivo, e um puto, de cabeça baixa, quase embate comigo. Quando vê as minhas pernas mesmo à sua frente, levanta cabeça, encara comigo, e exclama:
- IÔÔÔÔÔ… o pai da Leonor!!!!!!

E pronto. Já estás! Já foste! Ardeu a tenda. Tu és o pai, da menina que nasceu, e se Deus quiser, e a ordem da vida for respeitada (oxalá que assim seja, e eu peço tanto a Deus…), há-de durar muito mais que tu. Ciclo da vida!

Habituo-me, habituei-me a uma vida feita de pessoas minhas contemporâneas, que existem ao mesmo tempo. Quando desaparece uma, (e o meu tratamento com o Leóonidas Brejnev, outro nome que lhe dava, era circunstancial, que acontecia quando nos encontrávamos, fortuitamente), parece que desaparece também uma parte de mim. Nós somos feitos daquilo que está à nossa volta, também.

Tenho imensa pena do Leonel. Rezarei por ele, para que tenha encontrado a paz, e esteja em descanso. Como rezarei muito pela sua esposa e filha, que agora terão da minha parte, um tratamento, a todos os títulos, especial. Pela amizade que lhe tinha. E tenho! Tudo farei para que naquilo que lhes possa ajudar, não lhes falte nada. Sei que a pequena era muito apegada ao pai…

(Suspiro.)

Amanhã, mesmo que me seja muito difícil por estar a trabalhar, tudo farei para lho dizer pessoalmente, olhos nos olhos.

Dimásssssssssssss, fica em paz, companheiro.


Mais um…

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