Foto do mural do facebook, do amigo Rui Caldeira |
A
notícia entrou em mim com uma força, de uma forma quase subliminal. Alguém
entrou no meu serviço e disse:
-
E aquela história do rapaz, ãh?
-
Mas… que história?
-
Do rapaz… que morreu…
-
Mas que rapaz? Não ouvi nada, não sei quem é…
-
O rapaz que morava aqui em Marvão.
-
Em Marvão?!?!?
-
Não, no caminho… ali por cima da Fonte da Pipa.
Lentamente
comecei a juntar as peças. Quando subia apressado, para conseguir estar lá em cima
às 9h, para abrir a porta à hora precisa (por mais cedo que me levante, e
costumo sempre levantar-me quase 2 horas antes!!!, acabo sempre por deixar que
o tempo se esgote, sei lá gasto onde, de forma a que chego sempre a correr
contra os últimos 10 minutos), notei ali muita movimentação estranha na estrada,
naquele sítio. Agora que me disseram, e penso nisso, creio que me lembro de ter
visto por lá, forças de segurança, GNRs a pé, parados.
-
E que idade tinha?, perguntei.
-
Ah… 46… ou 48… Era novo. E da Beirã…
Com
esta palavra fez-se o clique, e no meu cérebro, parou tudo.
O
Leonel!
Mas
como é que se chamava? (por descargo de consciência, que eu já sabia a
resposta)
-
Ai… não sei… (e já nem me consigo recordar com quem tive esta conversa…)
-
O Leonel?
-
SIM! SIM! Foi esse!
(“Porra
pá!”, pensei.) - E foi…
-
Enforcou-se! Fez tudo nas calmas, tinha lá o maço de cigarros que acabou de
fumar, e pendurou-se.
E,
naqueles instantes tão breves, mas que na minha cabeça tiveram uma amplitude
tão vasta, pensei tanta coisa, tão de repente, que o mais natural é ter ficado
sem responder a alguém que me fez alguma pergunta. Não ouvi.
Fui
pensando… o Leonel, porra! Porquê?!?!? Para uma pessoa conseguir colocar termo
à vida, tem de ter um sangue frio, uma coragem, uma determinação, uma força,
uma vontade só explicáveis pelo desespero profundo, e mais do que isso, por não
conseguir vislumbrar uma saída possível. É que, no meu modo de ver, por mais
dramático que seja o cenário, pode sempre tentar-se algo diferente daquele fim,
que sim é o definitivo, e sem volta atrás.
A
única exceção que torna compreensível essa saída terrível, por mais
incompreensível que ela sempre seja, é a doença profunda, dolorosa, galopante,
que conduz inexorávelmente à morte, e leva para o sofrimento por arrasto, todos
os entes queridos mais próximos.
Depois… pelo que soube, por enforcamento… ainda torna tudo mais bizarro, e obtuso.
Segundo
aquilo que sei, e não sei nada (tudo ainda está muito fresco, e eu tenho de
escrever, para ver se me resolvo), o Leonel era um homem saudável, com uma
família bem formada que lhe dava enquadramento e amparo (mulher trabalhadora,
sempre bem disposta e disponível, na Santa Casa da Misericórdia; uma filha
pequenita, adolescente, que estuda aqui na escola, e que costumava encontrar na
catequese), um emprego fixo e estável (na Câmara de Marvão, um porto seguro,
num Alentejo seco de emprego)… tudo peças que encaixam bem, e não se enquadram
neste puzzle macabro, que colocou termo a tudo.
Alguma
coisa se irá saber?
Nada
se irá saber, porque nada havia a saber?
Soube
que ele tinha tido uns problemas de saúde há tempos, coisas ver com a tensão,
coisas anormais, de base, mas creio que andava melhor agora. Poderia haver ali
toques de um consumo por vezes a mais, mas nunca ouvi que fosse nada
de completamente fora. Nada que conduzisse a este extremo.
O
Leonel, para mim, era o “Dimássseee”, nome de personagem com que o tinha
batizado há uns anos… quer dizer, umas décadas, quando ele costumava mostrar na
discoteca “A Cave” de Santo António das Areias, o seu enorme cabedal. Quer-se
dizer, o Leonel nunca foi assim muito cabedaludo. Era assim mais para o
gordote.
De
camisola de braceletes, abria os braços, como se estivesse a fazer um solo, ao
som do rock’n’roll, tocando numa guitarra imaginária com a qual curtia, curtia,
e fazia curtir, quem estava a gozar o prato. Um mimo!
Mas
a dada altura, andou a levantar uns pesos, fazer umas cenas a puxar pelo
físico, e a malta, na brinca, começou a gabar-lhe a estrutura.
Dizia-lhe
eu:
-
Ouve, Dimásssseee, tás com um cabedal, mano! Eu tembém quero! Coméquefaço?
Conta aí!
E
ele contava.
-
Começas a levantar assim uns bichinhos destes (alteres) que eu lá tenho, e o
que estava aqui (apontando para a barriga), passa todo para aqui (enchendo o
peito de ar).
-
Ouve meu, eu adorava… (Mas nunca lá cheguei! O melhor que consegui fazer foi
uns abdominais com os pés presos no bidé, quando vivia no Espírito
Santo, em Marvão, e o melhor que fiz, foi dar cabo dos tubos que levavam a água, onde prendia
os pés; e rebentar com os meus discos na coluna, nas vértebras L5 / S1, que me
levaram duas vezes à faca! Esqueceram-se cá de um milímetro de osso, as dores
duplicaram e… pimba! Vais de vela, vais de vela, ai vais mesmo de vela!)
O
Leonel sempre foi um puto, que se distinguiu de todos os outros lá na Beirã,
porque era muito solitário, um engenhocas, que andava sempre a inventar as suas
merdas. Ainda há tempos nos encontrámos no Adro, ao final do dia, e comentámos
que ele também fumava tabaco de enrolar, como eu. Quando se fuma cigarros
destes, o problema é sempre quando chegam ao final. Queima os deditos. Por
precaução, poupo no tabaco, e deixo-lhe uma margem de segurança, uma caixa de
ar, digamos assim, para poupar na substância, e não queimar os aivecos.
Ele,
que tinha o mesmo problema, ripa-me de uma boquilha feita de uma bala usada,
mesmo à medido do cigarro. Nível! Ainda lá devo ter o queixo no chão... Eina bem… eu fiquei todo mamado!
-
Fónix, man. Granda pinta! Onde é que arranjaste! (para saber onde iria a correr,
comprar uma, a seguir)
-
Ah, fui eu que fiz! (Claro, pensei! Em silêncio, à espera que ele me dissesse: “ah,
mas se gostas, eu arranjo-te uma)
Vai-se
o Leonel, vai-se um contemporâneo meu. Fica assim uma cena esquisita, cá
dentro. Nós somos também um pouco, aquilo, e aqueles que estão à nossa volta.
Ainda
hoje, por outro motivo qualquer, tive esta conversa ao balcão. Lembro-me
perfeitamente do dia em que senti, que não era mais o Pedro, mas sim o pai da
Leonor. Ia a dar a curva aqui em Santo António, junto à antiga farmácia, perto
do Grupo Desportivo, e um puto, de cabeça baixa, quase embate comigo. Quando vê
as minhas pernas mesmo à sua frente, levanta cabeça, encara comigo, e exclama:
-
IÔÔÔÔÔ… o pai da Leonor!!!!!!
E
pronto. Já estás! Já foste! Ardeu a tenda. Tu és o pai, da menina que nasceu, e
se Deus quiser, e a ordem da vida for respeitada (oxalá que assim seja, e eu
peço tanto a Deus…), há-de durar muito mais que tu. Ciclo da vida!
Habituo-me,
habituei-me a uma vida feita de pessoas minhas contemporâneas, que existem ao
mesmo tempo. Quando desaparece uma, (e o meu tratamento com o Leóonidas Brejnev,
outro nome que lhe dava, era circunstancial, que acontecia quando nos
encontrávamos, fortuitamente), parece que desaparece também uma parte de mim.
Nós somos feitos daquilo que está à nossa volta, também.
Tenho
imensa pena do Leonel. Rezarei por ele, para que tenha encontrado a paz, e
esteja em descanso. Como rezarei muito pela sua esposa e filha, que agora terão
da minha parte, um tratamento, a todos os títulos, especial. Pela amizade que
lhe tinha. E tenho! Tudo farei para que naquilo que lhes possa ajudar, não lhes
falte nada. Sei que a pequena era muito apegada ao pai…
(Suspiro.)
Amanhã,
mesmo que me seja muito difícil por estar a trabalhar, tudo farei para lho
dizer pessoalmente, olhos nos olhos.
Dimásssssssssssss,
fica em paz, companheiro.
Mais
um…
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